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Educação indígena no Rio Negro se destaca em meio a histórico violento de missões religiosas

Jornal da USP - https://jornal.usp.br/diversidade/
28 de Ago de 2023

Educação indígena no Rio Negro se destaca em meio a histórico violento de missões religiosas
Escolarização em comunidade baniwa se pauta na curiosidade de alunos e na participação ativa da comunidade; plurilinguismo e falta de formação de professores são empecilhos

Texto: Laura Pereira Lima*
Arte: Carolina Borin**
Publicado: 28/08/2023

Grupos tribais de alunos - Imagem: Miguel Blanco/Arquivo da Diocese de São Gabriel da Cachoeira via Instituto Socioambiental

A cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, coleciona recordes trágicos. Em 2018, o município liderou o ranking de casos de malária falciparum no Brasil e, dois anos depois, atingiu o maior número de casos de dengue da região amazônica. O histórico de crises sanitárias e omissões governamentais ficou ainda mais extenso com a pandemia, quando a cidade ocupou, em junho de 2020, a liderança no ranking proporcional de diagnóstico de covid-19.

Para além dos índices sanitários, São Gabriel da Cachoeira coleciona um outro superlativo: é conhecida como a cidade mais indígena do Brasil e é referência no campo da escolarização dos povos tradicionais. Essas inovações pedagógicas são tema da pesquisa da Faculdade de Educação (FE) da USP Trilhas da educação escolar indígena: inovação em Cabari, São Gabriel da Cachoeira, AM, produzida pelo linguista Antônio Góes.

Para a pesquisa, Góes passou longas temporadas na comunidade Cabari, localizada na Terra Indígena (TI) Médio Rio Negro II, aplicou diversas oficinas de pesquisa na escola e acompanhou os processos pedagógicos. "Foi uma pesquisa bem colaborativa", conta Góes, que trabalhou diretamente com docentes baniwa do ensino fundamental e apresentou o resumo da tese também em línguas nheengatu e baniwa. "Eles eram bem abertos a esse contato, desde que os não indígenas oferecessem contrapartidas interessantes", explica. Como compensação, o pesquisador montava atividades educativas na escola, voltadas para a sistematização e estudo das línguas indígenas, especialmente o nheengatu, sua área de especialização. Entre as atividades propostas, Góes destaca o jogo do Urutu. "Foi uma forma de subverter o jogo da forca, que é muito punitivo. Ao invés de desenharmos a pessoa enforcada, íamos guardando as letras que eles não acertavam em uma cesta baniwa", conta.
Antônio Fernandes Góes Neto - Foto: Arquivo Pessoal
Antônio Fernandes Góes Neto - Foto: Arquivo Pessoal

"Procurei entender como os baniwa ressignificaram o histórico das missões religiosas na região", conta o pesquisador, que constatou que a escola indígena da comunidade Cabari teve um papel fundamental nesse processo. A partir de um método de ensino que valoriza a cultura e saberes locais e enfatiza a participação da comunidade e dos alunos, a escola indígena ressignificou o passado marcado por repressão e imposição religiosa. "A educação permitiu que eles narrassem as histórias que não puderam narrar durante muito tempo", destaca Góes.
Escolarização cidadã e comunitária

O pesquisador explica que um dos fundamentos da educação indígena é a participação comunitária nas decisões pedagógicas, baseadas nas demandas particulares da região. "A educação indígena não é uma só. Cada comunidade tem um caminho próprio", conta.

Essa autonomia escolar é reforçada por um método de ensino pela pesquisa, que convida crianças e jovens a investigar temas relacionados à região, formando um currículo flexível e sensível às demandas e curiosidades dos alunos.

Nas disciplinas, os docentes de Cabari mesclam elementos do currículo básico com aspectos culturais e saberes da comunidade. Dentro do curso de história, estudam temas como História das frutas nativas, e a aula de geografia se debruça sobre elementos do cotidiano e da paisagem local, como igarapés, trilhas e canoas. O método sistematiza os saberes regionais, alfabetização em línguas indígenas e projetos socioambientais voltados para a atividade econômica.
Alunos são convidados a pesquisar sobre elementos presentes na região. Uma das ilustrações mostra o manakhe, açaizeiro (espécie Euterpe precatoria, no português) - Foto: Reprodução/" Trilhas da educação escolar indígena: inovação em Cabari, São Gabriel da Cachoeira, AM" de Antônio Goés
Projetos educacionais trabalham aspectos da atividade econômica local (feito por Cleberson, Sandra, Marieme e Carmem) Foto: Reprodução/" Trilhas da educação escolar indígena: inovação em Cabari, São Gabriel da Cachoeira, AM" de Antônio Goés

"É uma região muito rica em tradição visual", conta Góes, que fez pesquisas de campo entre 2018 e 2020, e o conhecimento é tradicionalmente passado por meio da linguagem visual: os anciãos utilizam desenhos para recordar narrativas e repassá-las aos mais jovens. Os materiais didáticos oferecidos pelas Secretarias de Educação da região precisaram ser reformulados para se adaptar a essas tradições. "O desafio dos professores é trabalhar a trajetória, memória de povoamento da região, a partir dessas tradições orais e visuais", destaca.
Saberes tradicionais, como o preparo da mandioca, compõem parte importante do currículo - Foto: Reprodução/" Trilhas da educação escolar indígena: inovação em Cabari, São Gabriel da Cachoeira, AM" de Antônio Goés
A sistematização dos saberes tradicionais é um eixo fundamental da escola indígena. O desenho ilustra a planta medicinal saracura - Foto: Reprodução/" Trilhas da educação escolar indígena: inovação em Cabari, São Gabriel da Cachoeira, AM" de Antônio Goés
Palco de disputas

De acordo com o pesquisador, as primeiras iniciativas em prol de uma educação propriamente indígena no noroeste amazônico apareceram somente na década de 1980. Até então, a escolarização era dominada por iniciativas religiosas, que buscavam a conversão da população local.

"As missões religiosas tiveram um eco, um trauma na escolarização dos povos indígenas"
Antônio Goés

A missão católica, instaurada na região no início do século 20, deixou marcas profundas na educação das crianças indígenas - hoje já adultos e anciãos. Segundo Góes, os internatos salesianos buscavam apagar a cultura local, proibindo costumes e até mesmo a prática das línguas maternas. "Se falassem em alguma língua indígena, ficavam sem comida, apanhavam e trabalhavam mais", conta o pesquisador. Os salesianos também tinham o hábito de enclausurar, durante todo o fim de semana, jovens indígenas que manifestassem sua cultura materna.

As empreitadas salesianas eram financeiramente apoiadas pelo governo, como parte de um projeto de homogeneização cultural. "O ponto da escola, no século 20, era integrar, transformar os indígenas em trabalhadores brasileiros", explica o pesquisador.

O afastamento não era somente cultural, mas também físico: os internatos eram construídos somente nas cidades, o que causou um êxodo de indígenas para áreas urbanas. A concentração da educação gerava ainda uma falta de acesso ao ensino por parte de povos mais isolados, como os baniwa.
Aula no internato de Taracuá, Rio Uaupés - Foto: Reprodução/Arquivo da Diocese de S. Gabriel da Cachoeira via Instituto Socioambiental
Registro da acusação dos salesianos - Imagem: Reprodução/Folha de S.Paulo via Instituto Socioambiental

Após denúncias de perseguições e assassinatos de indígenas brasileiros, a Ordem dos Padres Salesianos foi condenada internacionalmente pelo Tribunal Russell, em 1980, e reformulou seus métodos pedagógicos.

A ordem salesiana não foi a única influência religiosa na região. Com o enfraquecimento da presença católica, grupos evangélicos começaram a se envolver com a educação da população local, construindo escolas bíblicas. Diferentemente dos salesianos, eles buscavam criar vínculos com os locais, construindo escolas dentro das próprias comunidades e permitindo o uso das línguas indígenas. Ainda assim, as tradições culturais e saberes locais eram inferiorizados, como conta Góes. "Eles proibiam, em língua indígena, os saberes indígenas".
Desafios do ensino indígena
Por se tratar de um território formado por diversas culturas tradicionais, a educação inclusiva é um desafio para os docentes. São Gabriel da Cachoeira é lar de 19 línguas distintas e a tendência, segundo Góes, é que as crianças de Cabari falem pelo menos duas línguas - além do português. Alfabetizar as crianças de forma plurilíngue requer esforços e infraestrutura, o que, segundo o pesquisador, leva alguns professores a trabalharem somente com o português, optando pela praticidade.
Geografia

Paisagem - Floresta
Igarapé
Igapó
Trilha
Canoa-Remo
Barraca

Português

Produção de textos
Frases
Separação de Sílabas
Nome de árvores - Ditado
Alfabetos - Baniwa e Português
Soletrando
Cruzadinhas

Matemática

Quantidade
Distância
Tempo
Kilo
Diferença

Serra do Capibari
História
História das frutas nativas
Período de tempo frutífero
Variedade das frutas

Artes
Paisagens
Cores
Artesanatos

Educação Física
Jogos
Entrevistas aos mais velhos

Esquema com principais conteúdos trabalhados em cada uma das áreas do conhecimento - Fonte: "Trilhas da educação escolar indígena: inovação em Cabari, São Gabriel da Cachoeira, AM" de Antônio Goés- Elaboração: Jornal da USP

A manutenção desses alunos na rede escolar é outro desafio: em 2020, havia somente 26 mil alunos indígenas matriculados no ensino médio, frente a 166 mil no ensino fundamental. A oferta de ensino médio indígena é escassa, e os poucos que decidem seguir nos estudos precisam se afastar de suas famílias e migrar para os centros urbanos, onde se concentram as oportunidades de educação. A falta de indígenas cursando ensino médio e superior resulta em uma falta de docentes nas comunidades. "Um dos grandes desafios é fazer com que esse sistema se retroalimente de um modo intercultural", explica o pesquisador, que defende uma maior implementação de licenciaturas voltadas aos povos tradicionais.
A educação indígena é um direito assegurado pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Aula do professor Plácido Luciano na Escola Indígena Cabari (Einc), em 2017. A - Foto: Arquivo do pesquisador.

Ainda que a escolarização indígena tenha resultados inovadores no noroeste amazônico, ainda há ceticismo dentro das comunidades, especialmente por parte dos mais velhos. "Tem choques geracionais, porque algumas das pessoas mais velhas foram formadas nos internatos religiosos e têm receio que, ensinando um pouco de tudo, não ensinem nada", explica Góes.

*Estagiária sob orientação de Tabita Said
**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado

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