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Educação ambiental viaja de barco

OESP, Vida, p. A26-A27
25 de Set de 2011

Educação ambiental viaja de barco
Projeto da ONG Conservação Internacional ensina a crianças da Indonésia o valor da preservação da natureza

"O que é que dá cor aos corais?", pergunta o professor em voz alta. "Zooxantelas!", respondem os alunos à sua frente, com a empolgação de uma torcida de futebol, referindo-se às microalgas fotossintetizantes que vivem dentro dos tecidos dos corais, fornecendo-lhes pigmentos e nutrientes essenciais.
Não estamos numa sala de aula convencional nem de escola nem de universidade. Os alunos são crianças de 10 a 12 anos, filhos e filhas de simples pescadores da Baía de Mayalibit, na região de Raja Ampat, um conjunto de ilhas selvagens que pontuam a chamada Cabeça do Pássaro, no extremo noroeste de Papua. A sala de aula é o colorido convés do Kalabia, um velho atuneiro de madeira convertido em barco-escola pela ONG Conservação Internacional, ancorado em frente à vila de Warsambin, na entrada da baía.
A pergunta, valendo 500 pontos na categoria Recifes de Coral, faz parte de uma gincana para testar o conhecimento das crianças sobre o funcionamento e a importância de ecossistemas marinhos. Após três dias de curso, três grupos de sete crianças competem pelo prêmio de "quem aprendeu mais": os Bubaras, os Lemas e os Nemos - dois nomes de peixes na língua local e um, herdado de Hollywood.
Quem comanda o jogo é o educador Marcho Imbir, de 32 anos, nativo do arquipélago de Ayau, no norte de Raja Ampat. É uma competição das mais amigáveis. Sempre que um grupo acerta a resposta, todos comemoram com uma salva de palmas e gritos de "benar" (correto). A alegria das crianças em aprender é contagiante. E a velocidade com que aprendem, surpreendente.
"Os cérebros deles são como esponjas", diz a bióloga e educadora canadense Angela Beer, responsável pelo projeto. Desde 2008, o Kalabia viaja pelas ilhas de Raja Ampat, parando de vila em vila para ensinar às crianças conceitos básicos de biologia e as educando sobre a importância de conservar os ecossistemas marinhos dos quais suas comunidades dependem para sobreviver.
Qual é a importância de um recife de coral e que tipos de atividades podem ser nocivas a ele? Quais são as funções ecológicas de um manguezal e o que acontece com o solo quando ele é desmatado? Qual a diferença entre lixo orgânico e inorgânico? Quanto tempo leva uma garrafa plástica para se decompor no ambiente? Quantos anos vive uma tartaruga? E para que serve uma Área Marinha Protegida (AMP)? Coisas desse tipo. Tudo ensinado por meio de músicas, jogos e brincadeiras, na língua nativa da crianças - uma mistura de indonésio com dialetos tribais que variam de ilha em ilha.
É a segunda vez que o Kalabia retorna a Warsambin, a primeira vila visitada pelo projeto, em março de 2008. A próxima parada é Kalitoko, uma vila menor e mais afastada, uma hora de lancha baía adentro. Lá, as crianças se dividem entre os Teterugas (tartarugas), Lumba-Lumbas (golfinhos) e Buayas (crocodilos).
Ao final dos três dias de curso, pergunto à pequena Sifra Waropen, de "mais ou menos" 10 anos (porque ninguém aqui sabe dizer a própria idade com certeza), qual foi a coisa mais legal que ela aprendeu. "Que os corais são animais e precisam ser protegidos", responde ela. "Porque eles são parte da nossa natureza. Se eles crescerem bem, terá mais peixes nos recifes e mais peixes para a gente comer", justifica.
A aula sobre os recifes inclui uma brincadeira em que as crianças vestem luvas coloridas e esticam os braços por entre os buracos de um lençol que é estendido sobre suas cabeças, como se fossem pólipos de coral. Enquanto isso, os jovens educadores do Kalabia fazem "fluir" punhados de amendoim por cima do lençol, que as crianças tentam agarrar e devorar. Assim, elas aprendem que os corais se alimentam de duas formas: dos nutrientes produzidos pelas zooxantelas em suas células, via fotossíntese, e do plâncton que conseguem capturar da água, usando seus tentáculos.
Entender essa biologia básica é essencial para engajar as crianças numa cultura de conservação, diz Angela. "Porque ninguém se importa muito com aquilo que não compreende."
Pergunto também a Sifra qual é o seu animal favorito. "Tartaruga", diz ela, um tanto tímida. "Gosto de ver quando ela vem à superfície para respirar." Pergunto, então, se ela já comeu tartarugas - um costume ainda praticado nas comunidades tradicionais da região, apesar de a caça já estar proibida há vários anos. "Já comi, mas não vou comer mais", promete Sifra, após aprender que seu animal favorito está ameaçado.
Simbiose. A relação de dependência entre as comunidades tradicionais de Raja Ampat e a biodiversidade marinha é tão íntima e vital quanto a que existe entre os corais e suas zooxantelas. Aqui não há supermercados nem geladeiras nem agricultura. Mas também não há fome. Cada prato de comida é colhido fresco da natureza: peixes e camarões das águas da baía, caranguejos e mariscos da lama dos manguezais, frutas e folhas colhidas da floresta ou cultivadas em pequenas hortas domésticas. Com exceção do arroz, que algumas vilas mais próximas conseguem trazer dos centros comerciais de Waisai e Sorong, a base da alimentação para a maioria dos habitantes de Raja Ampat é o sagu, uma pasta de polpa de palmeira produzida artesanalmente na floresta.
Outro indicador de proximidade com centros urbanos - tanto em termos geográficos quanto culturais -, além do arroz, é a quantidade de lixo inorgânico presente em cada vila. Quanto mais contato com o "mundo moderno", maior a quantidade de garrafas e sacolas plásticas espalhadas pelo chão. Acostumados a embalar seus alimentos em folhas de bananeira e carregar seus pertences em cestas de fibras naturais, os moradores tradicionais nunca tiveram de se preocupar muito com acúmulo de lixo. Parte do currículo do Kalabia é ensinar conceitos básicos de gerenciamento de resíduos - que as garrafas de refrigerante e as embalagens de café em pó não "desaparecem" do ambiente como as espinhas de peixe e as carapaças dos caranguejos.
Em Kalitoko, a quantidade de lixo sintético ainda é pequena. Há apenas duas vendinhas na vila, que oferecem doces e cigarros. As crianças agora sabem que o acúmulo de lixo traz doenças e que muitas tartarugas morrem depois de engolir embalagens plásticas, que elas confundem com águas-vivas.
Carência. Construída sobre um manguezal, a vila tem cerca de 250 moradores, incluindo um professor, Salmon Krey. Deveriam ser dois, além de um diretor, mas o outro professor saiu de folga há quatro meses e nunca mais voltou e o diretor foi expulso, acusado de roubar o dinheiro do governo para compra de livros e manutenção da escola.
Krey agora cuida sozinho de uma turma de 30 alunos, da 1.ª à 6.ª série. A defasagem do ensino nas vilas de baía é enorme, diz ele, mesmo em relação ao resto de Raja Ampat. "Como os adultos aqui não tiveram educação, eles não acham que seja tão importante seus filhos irem à escola. Pois eles não conseguem nenhum emprego melhor por disso", lamenta o professor.
Antes de ir embora, Angela entrega a Krey uma caixa com livros, cadernos e gibis educativos produzidos pelo Kalabia, para que ele possa dar continuidade ao ensino. Ela sabe que três dias é pouco tempo para influenciar a educação de uma criança. Mas é um começo. Mesmo com um programa tão curto, o Kalabia leva dois anos para visitar todas as cem vilas de Raja Ampat.
"Infelizmente não temos nada para te dar em troca, a não ser o nosso agradecimento", diz o secretário da vila de Warsambin, Metusalak Mansoben, após receber os livros, emocionado. "Hoje vocês vão embora, mas não é o fim, porque as crianças não esquecerão aquilo que aprenderam. A única recomendação que posso dar é que vocês fiquem mais tempo da próxima vez."
Após semanas no mar, o Kalabia retorna a Sorong em setembro para um merecido descanso. As montanhas de lixo plástico na praia do porto não deixam dúvidas de que estamos de volta à "civilização".

'Progresso' agora ameaça as florestas

A paisagem na Baía de Mayalibit, assim como no resto de Raja Ampat, é de natureza selvagem. Um oceano confinado por montanhas de pedra calcária, que um dia foram recifes de coral, mas hoje se erguem abruptamente do mar, pontuadas por cavernas e cobertas por um manto de floresta, habitada por aves-do-paraíso, cacatuas e pescadores.
Só uma coisa destoa: um rastro de terra que começa na vila de Warsambin e se esgueira montanha acima, rumo à comunidade de Lopintol, do outro lado do morro. A boca da estrada parece querer engolir os casebres abaixo dela, junto ao campo de futebol. Construída nos últimos dois anos, ela foi aberta para ligar as comunidades, apesar de ninguém ter carro, apenas uma ou outra moto. O veículo que mais circula é uma caminhonete subsidiada pelo governo, transportando mercadorias e passageiros de Waisai, a recém-construída capital administrativa de Raja Ampat. Os moradores tradicionais continuam a se locomover entre as vilas como sempre fizeram: de barco, pelas estradas de água.
Para ambientalistas, o rasgo na floresta é um sinal de alerta. As águas da baía são protegidas por uma unidade de conservação, criada em 2007. Mas as florestas acima delas, não. E com seus ecossistemas interligados de maneira tão umbilical, é inevitável que o que acontecer na superfície terá consequências também debaixo d'água. "Fizemos um bom trabalho até agora de equacionar problemas no ambiente marinho. Agora temos de lidar com as ameaças de origem terrestre", diz o biólogo Mark Erdmann, da Conservação Internacional, parceira do governo na criação e gerenciamento de áreas protegidas na região.
O líder da Área Marinha Protegida (AMP) da Baía de Mayalibit, Abraham Goram, não entende o propósito da estrada. "Não precisamos de estradas, mas de escolas, hospitais, água limpa, capacitação", diz Goram, nativo da vila de Waifoy. Ele teme que a via, além de arruinar a paisagem, abrirá caminho para o desmatamento e a erosão do solo, comprometendo os ecossistemas terrestres e marinhos dos quais as comunidades dependem para sobreviver. Pergunto a ele se a estrada não é símbolo de progresso. "É o argumento mais ridículo que já ouvi", responde.
Goram, como muitos outros nativos, é favorável à independência de Papua, anexada politicamente à Indonésia em 1969, após séculos de domínio holandês. "A Indonésia não é boa para Papua, porque ela não ama o povo. Ela ama nossos recursos naturais", diz. Além da fartura de seus mares, a região é riquíssima em depósitos de ouro, cobre e níquel.
Questões políticas e econômicas à parte, não é preciso ser historiador para perceber que Papua é diferente do resto da Indonésia. Basta olhar para os papuásios. A diferença está em sua fisionomia, de características mais negras e aborígenes que asiáticas, típicas da Melanésia - o universo de ilhas que flanqueiam o norte e o leste da Austrália. Mesmo entre indonésios, Papua é vista como uma terra distante e misteriosa, assombrada por histórias de tribos canibais. Um passado que contrasta com a simpatia dos moradores de Raja Ampat.
Vários papuásios com quem o Estado conversou temem que sua cultura será soterrada pelo crescente fluxo migratório de indonésios de Java e Sumatra, já maioria na província.
A Indonésia é um dos países mais superpovoados do mundo, com uma população 20% maior que a do Brasil num território 80% menor, altamente concentrada nas ilhas de Java e Sumatra.

Biodiversidade é enorme na região

Menos de uma hora após desembarcar em Raja Ampat, vejo dois filhotes de tubarão nadando pelas águas rasas debaixo do meu bangalô, na ilha de Kri. Duas vezes mais tubarões do que eu havia visto em mais de dez horas de mergulho em Bali, nos dois meses anteriores. Sinal de que tudo que eu ouvira falar sobre Raja Ampat era verdade.
Mesmo dentro do Triângulo dos Corais, a região se destaca como a de maior biodiversidade marinha do planeta. Mais de 1,4 mil espécies de peixes. Mais de 550 espécies de corais duros. Uma variedade alucinante de lesmas marinhas multicoloridas, que parecem vestidas para o carnaval. Cavalos-marinhos-pigmeus, inacreditavelmente pequenos e bem camuflados, agarrados a gorgônias. Raias-mantas com mais de 2 metros de envergadura. Tudo, às vezes, no mesmo lugar. Em Raja Ampat, pode-se passar horas debaixo d'água sem 1 segundo de tédio.
O ponto de mergulho mais famoso é o cabo Kri, península submersa da ilha de mesmo nome, descoberto no início dos anos 1990 pelo holandês Max Ammer, pioneiro do turismo e da conservação em Raja Ampat. Em 1997, ele inaugurou ali o primeiro hotel da região, o Kri Eco Resort - um punhado de bangalôs, um pier e um refeitório, feitos no estilo tradicional papuásio, de madeira e palha.
Em 2001, Ammer convidou o renomado biólogo Gerry Allen para fazer uma avaliação científica da biodiversidade do cabo. "Todo mundo dizia que era um lugar especial, diferenciado, mas eu queria ter certeza", diz ele. Todo mundo estava certo. Em 27 de março de 2001, uma equipe de dez cientistas, liderada por Allen, identificou 273 espécies de peixe num único mergulho. Um recorde mundial, que colocou Raja Ampat no mapa de mergulhadores e pesquisadores marinhos mundo afora.
Desde então, Ammer ergueu um outro resort na ilha e está prestes a inaugurar um centro de ciências marinhas, com laboratórios e hospedagem para pelo menos seis pesquisadores.
Dos quase cem funcionários da empresa, os únicos estrangeiros são o próprio Ammer e o britânico Ross Pooley, que desenvolve um projeto-piloto de cultivo de corais. Todos os outros são nativos de Papua, treinados pela empresa, das faxineiras aos guias de mergulho. Nada dá mais orgulho a Ammer, que veio para Papua originalmente em busca de destroços de aviões de guerra, mas acabou se apaixonando pelo povo da região.
"Quando cheguei aqui, eu não sabia nada de turismo, não tinha nenhuma experiência com mergulho, mas achei que essa seria uma boa maneira de ajudar a população local", conta o holandês, de 50 anos. "O mais importante é criar oportunidades de emprego e geração de renda para os papuásios. O povo daqui é muito pobre. Você pode falar o quanto quiser sobre conservação, mas as pessoas ainda precisam comer, ainda querem desenvolvimento."
Em Yenbekwan, uma das vilas próximas ao hotel, o pescador Hans Watem, também de 50 anos (mais ou menos, ele não tem certeza), acha um tanto estranho que turistas gastem tanto dinheiro e venham de tão longe só para ver um recife de coral. Mas entende perfeitamente a importância desse ecossistema. "Todo mundo aqui entende agora que os recifes são essenciais para nossas vidas. Por isso ninguém pesca mais com bombas ou redes", diz.
Comparados aos de Bali e de outras regiões da Indonésia, os recifes de Raja Ampat estão em ótimo estado de conservação. Mas já estiveram muito melhor. Até poucos anos atrás, a pesca com bombas e outros métodos destrutivos também era comum por aqui. Agora, a região está sob a guarda de sete Áreas Marinhas Protegidas (AMPs), criadas em 2007 pelo governo de Raja Ampat, em parceria com organizações não governamentais.
As bombas pararam de explodir e os recifes retornam silenciosamente ao seu estado original. Resultado: mais peixes para os pescadores comerem, mais peixes para os turistas fotografarem.

OESP, 25/09/2011, Vida, p. A26-A27

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