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E agora?

FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: NIEMEYER, Oscar
21 de Nov de 2003

E agora?

Oscar Niemeyer

Como todo o povo brasileiro, aguardamos que as reformas prometidas pelo presidente Lula se tornem realidade. E que o desemprego se reduza, que a violência diminua, que cresça uma esperança no coração de todos nós. As últimas declarações atribuídas ao ministro-chefe da Casa Civil -tão corajosas- surgem como um raio de luz na escuridão em que vivemos. José Dirceu tratou da conveniência de realizar a integração das nações do nosso continente, da necessidade de criar uma moeda única, à maneira do euro, e até de assegurar aos países da América Latina um nível militar mais adequado: "Nós temos de pensar numa América do Sul para além do Mercosul, e numa América Latina para além da América do Sul".
Sobre tudo isso José Dirceu teria se manifestado num tom patriótico e convincente.
Pelas notícias divulgadas na imprensa, constata-se que a Colômbia é considerada o provável trampolim para uma intervenção dos EUA na Amazônia e que a forma de impedi-la começa a ser discutida. Compreendemos bem a complexidade do problema. Mas qualquer medida a adotar terá de levar em conta que a guerrilha colombiana representa as camadas populares mais sofridas daquele país, uma luta que se mantém há mais de 40 anos contra a miséria e a desigualdade social inconcebíveis em que vivem.
É sabido que o tráfico da coca beneficia em primeiro lugar os bancos internacionais. Não é a guerrilha que enriquece com esse negócio odioso, e preservá-la me parece uma decisão humana indispensável.
É claro que nessa maneira de abordar o problema influíram os contatos pessoais que tive, no meu escritório, com representantes da guerrilha colombiana. Inclusive desenhei, a pedido deles, um cartaz para um congresso na Europa. No meu livro mais recente, "E agora?" (Paz e Terra, 2003), o personagem principal, Lucas, um comunista conhecido e admirado por sua coragem, continuava a lutar sozinho pelos objetivos políticos que sempre defendeu, e a idéia da revolução não lhe saía da cabeça, embora consciente de todas as dificuldades que surgiam nesse sentido. Na sua casinha da praça, ele recebia os amigos e antigos companheiros, procurando dar-lhes -aos jovens, principalmente- um pouco de ânimo para aquela tarefa que o ocupou a vida inteira.
Já no final da minha novela (destituída de qualquer pretensão literária), é um integrante da guerrilha colombiana que o procura. E surge a problemática da Amazônia, da Colômbia, e a conversa se perde, num tom amistoso, mas sem solução. Apenas a coincidência de assuntos -entre o que escrevi e o que hoje se discute com tanto empenho- justifica a transcrição deste pequeno texto:
"Alguém, já noite, bate à porta. Lucas atende: é um velho conhecido do PCB, que, mesmo sem entrar, lhe dá um recado: "Lucas, está no Rio um camarada da Colômbia que você conhece. Quer encontrá-lo, e gostaríamos que você o atendesse agora".
"Onde?" -Lucas perguntou.
"Num subúrbio do Rio. Estou com o carro na esquina.'
Não era a primeira vez que isso acontecia, preocupando Lúcia, que temia que qualquer coisa grave pudesse ocorrer. Como das outras vezes, Lucas não discutiu. Arrumou uma sacola com roupas e, pegando a pistola, disse à Lúcia, assustada: "Telefono amanhã".
Partiram. E Lucas, sem saber para onde iam e nada perguntar, foi seguindo, atento, para não esquecer o trajeto adotado. A ponte Rio-Niterói, a avenida Brasil e, depois, já perto de Cascadura, numa rua próxima àquela avenida, a parada programada. Iam mudar de carro para despistar a polícia. Não era novidade para ele. Nos velhos tempos, quando Prestes, perseguido pela polícia política, escondeu-se numa pequena casa do subúrbio, usavam essa mesma estratégia [uma medida cautelosa a que também me submeti, compreensivo, um dia]. E a viagem continuou. De novo a avenida Brasil e, de repente, numa rua estreita, diante de uma casa térrea, estacionaram.
"Lucas!" -era um velho guerrilheiro colombiano que o esperava, alto, com largo sorriso a aparecer debaixo dos bigodes. E se abraçaram (...) Pedro, o colombiano, começou a contar a sua história. O problema da guerrilha, que há mais de 30 anos vem lutando contra o governo reacionário da Colômbia. O novo era os americanos a voarem ostensivamente sobre a fronteira com o Brasil. O mais grave era que, com a ajuda dos Estados Unidos, a guerrilha pudesse ser dominada e o governo, sob pressão norte-americana, permitisse a construção de uma base militar próxima da fronteira com o Brasil.
"Seria" -disse Pedro com mais ênfase- "a invasão da Amazônia, já considerada pelos americanos uma área internacional". "Tudo isso" -continuou o colombiano- "pede uma solução urgente que impeça o drama inaceitável. Nossa luta tem sido longa e invariável. Anos atrás os americanos apresentaram o Colombia Plan, que, sob o pretexto de combater as drogas, visava intervir no meu país e na Amazônia, com certeza. Reagimos contra esse plano, organizando um congresso internacional em que desmascaramos os seus verdadeiros objetivos. Você sabe, Lucas, que foi o Oscar Niemeyer quem desenhou o cartaz que anunciou esse congresso pelo exterior?" E mudando de assunto: "Vim procurá-lo e pedir auxílio junto aos movimentos de esquerda. Necessitamos de um apoio mais amplo e organizado, por todo o continente. Você conhece a pressão e as ameaças que o imperialismo norte-americano vem fazendo em relação à América Latina. A pobreza e a violência a crescerem por toda parte. E isso pode justificar o apoio indispensável que pleiteamos".
A contragosto, Lucas teve de explicar ao amigo as dificuldades a enfrentar. Os grupos de esquerda desorganizados e a idéia impossível de levar avante com a urgência desejada. Para ele só uma revolução resolveria o problema -o único caminho de assegurar à América Latina as condições de liberdade e igualdade social imprescindíveis.
E conversaram. Conversaram muito, preocupados com a luta interna que havia anos multiplicava a miséria por todo o país, levando o governo colombiano a aceitar as propostas odiosas dos Estados Unidos, como se não se tratasse de um problema exclusivo do povo colombiano, que, soberano, deveria resolver. Atentos, durante horas, Lucas e o grupo que fazia parte do encontro discutiram esses assuntos.
Decepcionados diante das dificuldades surgidas, os dois amigos se despediram. Sabiam que somente um fato novo -o inesperado- poderia mudar a situação."
Lembro como o meu personagem compreendeu a gravidade da questão. De um golpe, os norte-americanos liquidariam a guerrilha -isto é, o povo colombiano que há anos luta por uma vida melhor-, fortalecendo assim o governo da direita, impopular e inconsequente, para alcançar o velho objetivo de invadir a Amazônia. É claro que o problema é complexo e exige reflexão. Mas a intuição me domina e, certo ou errado, sinto-me obrigado a ser coerente com o que escrevi.

Oscar Niemeyer, 95, arquiteto, é um dos criadores de Brasília.

FSP, 21/11/2003, Tendências/Debates, p. A3

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