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DVDs e mandioca: o caso Paquiçamba

O Globo, Economia, p. 28
18 de Abr de 2010

Índio presente
Esboços da identidade indígena brasileira contemporânea

A construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, trouxe para o centro do grande debate econômico nacional um personagem que, extrativismo de pau-brasil à parte, sempre esteve à sua margem: o índio. Mas que índio? A vinda ao Brasil do cineasta James Cameron, que protestou contra o empreendimento de base paraense, gerou comparações entre os indígenas brasileiros e os gigantes azuis de seu "Avatar". A analogia mostra que ainda são fortes os traços míticos formatados no século XIX pelo poeta Gonçalves Dias (1823-1864), autor de "I-Juca-Pirama". Traços relidos ao longo dos anos por artistas como o cantor Caetano Veloso. Nesta página, o jornalista Gustavo Paul, o antropólogo João Pacheco de Oliveira e o cineasta Sebastián Gerlic esboçam, na véspera do Dia do Índio, um perfil contemporâneo dos povos da floresta. (Leonardo Lichote)

DVDs e mandioca: o caso Paquiçamba

Gustavo Paul

O índio Giliarde Jacinto Juruna tem 28 anos e mora na aldeia Paquiçamba, numa casa de madeira bem diferente das tradicionais ocas indígenas do Alto Xingu. Casado, tem dois filhos pequenos e vive como agente de saneamento da Funasa, que rende um salário mínimo por mês. É dele a responsabilidade de ligar e desligar a bomba a óleo que abastece a caixa d'água da aldeia com água de um braço do Rio Xingu.

Ele também deve verificar e reparar o encanamento desse sistema, que distribui água - filtrada - para todas as casas da aldeia.

Essa bomba, cedida pela Funasa, é ligada por um motor a diesel. Para economizar combustível, a bomba é ligada um dia sim, outro não. Mas, toda noite, o motor a diesel é ligado, para iluminar a aldeia e permitir que todos possam ter acesso às novelas da TV, captadas por uma antena parabólica. Giliarde ainda assiste a DVDs, que enfeitam a estante de sua casa.

Mas, nos últimos dias, ele está articulando um racha na aldeia. Pretende criar uma nova, a Moratô, ainda dentro dos limites da reserva. Dos 83 moradores da Paquiçamba, cerca da metade deve seguir com Giliarde. A outra metade ficará com o velho cacique Manuel Juruna, de 69 anos, que está há 30 anos no comando do lugar.

Giliarde defende a mudança como reflexo da construção da usina de Belo Monte, cujo paredão principal vai se situar a cerca de 40 quilômetros rio abaixo. O paredão deve reduzir permanentemente a vazão do rio em sua região. Segundo os estudos, as águas do Xingu devem ficar sempre no nível do período de seca, quando as pedras ficam expostas, a navegação se torna mais difícil, e os peixes se concentram em poços espalhados pela calha.

Para o índio, essa situação prejudicará sua tribo. Por isso, Giliarde decidiu se mudar para uma área próxima ao canal principal do Xingu, com mais água:
- Belo Monte vai atrapalhar nossa vida. No verão, a lancha não sai, e temos de andar mais para chegar à água. Os peixes vão ficar mais concentrados nos poços, e os pescadores vão descer para pescar por aqui. E os peixes, que comem frutas caídas das árvores no período das cheias, vão ter menos alimento. Com o sol, as águas vão esquentar, e os peixes vão morrer.

A aldeia, porém, tem na pesca apenas uma parte de sua subsistência. Os habitantes vivem mesmo é da agricultura, em roças de mandioca, cacau e banana, que ficam a alguns quilômetros da tribo. Giliarde admite que apenas alguns pescam - e para vender a atravessadores, que revendem em Altamira.

Situada numa região bastante arborizada, a aldeia tem uma escola e uma enfermaria. Um professor e uma enfermeira são contratados para passar o ano ali. Se não fosse o nome da aldeia, Paquiçamba poderia ser confundida com qualquer localidade rural da amazônia.

Giliarde não acredita nos relatórios de impacto ambiental da Eletronorte, os quais garantem que a vida deles não será tão afetada. O futuro cacique - que, para ser fotografado, veste-se com uma faixa na cabeça e um colar de contas, projetando para o jornalista uma imagem de "pré-cacique" - quer mais garantias do governo. Quer inclusive a garantia de que aumentaria a área da sua reserva, como uma compensação pelos problemas que a usina vai causar:
- Eles só falam em processo, mas não dizem o que será esse processo.

Já disseram que vão aumentar nossa área, mas não tem papel para dizer o que vão dar para nós. É só enrolação.

O racha na aldeia devese à posição considerada passiva do cacique Manuel. Sossegado, o velho chefe passa os dias colhendo mandioca e preparando farinha para vender. Manuel ouve as discussões sobre Belo Monte desde os anos 1980 e chegou à conclusão de que a obra vai sair de qualquer jeito. Como a maior parte da aldeia, ele não vive da pesca. De vez em quando vai atrás de peixes para comer, mas sua renda vem da roça. Ele conta com as promessas e os estudos da Eletronorte.

- Tem 30 anos que eles falam dessa coisa e por isso eu sosseguei. Acho que não vai atrapalhar nossa vida. O que Deus fez não pode ser desfeito pelo homem. Não acredito que o rio vai secar. Não é bem assim. Eles (a Eletronorte) dizem que não vai baixar tanto assim. Creio que eles não vão nos enganar.

Eles (os outros índios) dizem que sou a favor. Fico chateado porque não sou nem contra nem a favor - diz Manuel.

Sobre o racha, ele tenta disfarçar, mas não consegue esconder a frustração, ao elevar levemente o tom de voz.

- Eles até agora não cortaram um pau sequer para começar a aldeia. Vou ficar aqui. Tenho filhos, netos, sobrinhos. Vamos continuar na aldeia. Não vai mudar nada.

O Globo, 18/04/2010, Economia, p. 28

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