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Dorothy estava só. E tinha medo

OESP, Aliás, p. J5
17 de Fev de 2008

Dorothy estava só. E tinha medo

Uma biografia da irmã Dorothy Stang, lançada nos EUA, marca os três anos de seu assassinato, no Pará

A jornalista e escritora inglesa Binka Le Breton, pianista de música erudita, é também uma reconhecida defensora das matas brasileiras. Sua arma são os livros - sobre a Amazônia, já escreveu quatro. Um deles, Vidas Roubadas (Edições Loyola), é apresentado pelo presidente Lula. Binka acaba de lançar, nos Estados Unidos, The Greatest Gift (Doubleday), uma biografia da irmã Dorothy Stang, morta há três anos, em 12 de fevereiro de 2005. Irmã Dorothy, uma religiosa nascida nos EUA, atuava na Amazônia como missionária, buscando soluções para os conflitos de terra na região. Foi assassinada com seis tiros em Anapu, no Pará. Tinha 73 anos. Rayfran das Neves Sales foi condenado pelo crime em outubro do ano passado. Mas a sentença, de 27 anos de prisão, foi anulada pela Justiça. Novo julgamento deve acontecer em 2008.

Em maio, The Greatest Gift (no contexto, algo como A Grande Entrega) será lançado no Brasil pela Editora Globo. A seguir, um trecho da obra.

10 de fevereiro de 2005

Deitada em sua cama, Dorothy puxou o mosquiteiro bem próximo a si e tentou se preparar para dormir. Sentia-se cansada e velha, e suas costas doíam. Sentiu-se subitamente só. E com medo.

Ela podia ouvir Nelda movendo-se silenciosamente na cozinha, fervendo um de seus chás de erva. A casa estava singularmente quieta. A mala de Dorothy estava pronta, seus papéis e mapas em ordem, e ela sabia que era importante que conseguisse dormir se quisesse ter todas as suas forças para os dias que viriam. Ela iria precisar convencer as famílias isoladas na profundidade da floresta que de algum modo tudo ficaria bem e o que acontecera com Luís e sua família não se repetiria. O secretário federal dos Direitos Humanos tinha dado sua palavra. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, tinha lhe dado todo seu apoio. A polícia prometera proteção.

Estava frio e úmido na floresta, onde um grupo de homens sentava-se em uma pequena cabana de madeira agrupados em volta de um fogo enfumaçado. "Maldita chuva", murmurou um deles. "Queria em Deus que parasse."

"Maldita floresta", disse o outro. "Assombra-me algumas vezes. Fico ouvindo ruídos. Dê-me um cigarro, alguém, hein?"

"Estou sem nenhum", disse um terceiro. "Aqui, pega um pouco da coisa boa."

Sem falar nada, o jovem esticou a mão para a garrafa, inclinou-a e tomou um trago grande. "Assim fica melhor", ele disse. "Mantém o frio longe." Houve um silêncio amistoso enquanto todos olhavam para o fogo.

De repente se ouviu um ruído do lado de fora. Os homens ficaram de pé de um salto e a porta se abriu totalmente. "Ei, rapazes", disse o recém-chegado ao bater os pés e sacudir a chuva do cabelo. "Eduardo está aqui?"

"E se estiver?", veio uma voz da rede pendurada num canto."Bem, se ele estiver", disse o recém-chegado, "pode lhe dizer que tenho um negócio para ele."

"Qual sua idéia de negócio?" O recém-chegado inclinou-se sobre a rede, sussurrou no ouvido de Eduardo e lhe entregou algo.

Eduardo sentou-se e olhou o revólver brilhante. Ele girou-o de um lado e outro, pesou-o na mão, apontou para os companheiros, e o engatilhou.

Toda sua vida ele se divertira com filmes de caubói na televisão. Não era para ele o boné de beisebol do trabalhador sem terra; ele preferia usar um chapéu. Quando concordou em deixar seu Estado natal, Espírito Santo, e vir para as selvas da Amazônia esquecidas por Deus, ele o fizera com um propósito muito especifico em mente: queria terra. Muita terra. Terra plantada com pastos viçosos, com rebanhos de gado branco espalhados pelos campos. Ele dirigiria um caminhão novo em folha, razão de inveja dos outros rancheiros, e criaria uma família de filhos fortes que trabalhassem para ele.

Como é que ele iria do ponto onde estava, compartilhando uma cabana dilapidada no meio da floresta com um bando de peões, para aquele outro? Balançando-se graciosamente para fora da rede, ele empalmou a arma e a enfiou no cinto. Dava uma boa sensação, como se ele pertencesse àquele lugar. Colocando a mão no bolso, tirou um cigarro, acendeu-o e inalou profundo. Estudou os homens sentados em volta do fogo contando piadas indecentes e rindo. "Rayfran", ele chamou. "Venha cá, homem. Tem uma coisa que quero discutir com você."

Dorothy deve ter se perguntado o que aconteceria se Tato e os outros se recusassem a ouvir. E se eles, jovens arrogantes com o poder de suas armas e a certeza de que o poder estava certo, levassem adiante suas ameaças? E se houvesse tiros? Os colonos estavam nervosos, e tinham sido pressionados ao seu limite. Eles tinham seus rifles de caça e sabiam como fundir-se com a floresta e executar um matador incauto, sem deixar rastro. Apesar das boas promessas que lhe tinham feito na cidade, Dorothy sabia que os conflitos de terra não se resolveriam produzindo um pedaço de papel. Haveria mais violência, e ela não sabia como interrompê-la. Estaria ela errada em encorajar os colonos para ficarem firmes diante de tão espantosas desigualdades? E se os matadores a matassem? Ela respirou fundo e tentou enfrentar a possibilidade com calma, mas seu corpo a traiu, e subitamente a tensão das semanas anteriores tomou conta dela. Dorothy baixou a cabeça e chorou.

Houve uma batida à porta, mas Dorothy parecia não ter ouvido. Minutos depois ela abriu os olhos e olhou para o rosto ansioso de sua única companheira naquela noite, a irmã Nelda.

"Qual o problema?", perguntou Nelda, com os olhos escuros brilhando de preocupação.

"Eles vão me matar" disse Dorothy, subitamente calma. "Eu sei que eles vão me matar."

Nelda buscou a mão de Dorothy sob o mosquiteiro. O que poderia dizer? Ela chegara a Anapu apenas há três dias; mal conhecia Dorothy, e orava desesperadamente por orientação. "Isso é porque a senhora é uma santa", ela disse.

Dorothy sorriu através das lágrimas e apertou a mão de Nelda. As duas mulheres sentaram-se em silêncio juntas enquanto os minutos passavam. Dorothy fungou, secou os olhos com a ponta do lençol. "Não se preocupe, Nelda", ela disse, conseguindo sorrir. "Ninguém teria a coragem de matar uma mulher velha como eu."

Dorothy não percebeu quando Nelda saiu de mansinho do quarto. Ela se virou e dormiu.

OESP, 17/02/2008, Aliás, p. J5

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