VOLTAR

Do seringal a Esplanada, uma historia de amor com o Acre

JB, Pais, p.A2
26 de Jan de 2004

Do seringal à Esplanada, uma história de amor com o Acre
Ministra colhe frutos do primeiro ano de governo e lamenta não poder visitar seu Estado

Rodrigo Alves
Quando trocou o verde da floresta pelo cinza da capital federal, há uma década, Marina Silva não perdeu o Acre de vista. Nem a distância conseguiu romper o elo com as origens, renovado em doses semanais enquanto corriam os dois mandatos no Senado. O convite para assumir o Ministério do Meio Ambiente teve sabor de prêmio, mas cobrou um preço salgado ao cortar o antídoto da saudade. Em 2003, foram apenas quatro viagens. No ano em que o Acre celebrou um século de história, sua representante política mais ilustre chegou ao primeiro escalão do governo e se viu obrigada a brindar de longe.
- Foi o ano em que fiquei mais distante do meu Estado - lamenta Marina, no gabinete instalado no bloco B da Esplanada, um dos que atravessaram incólumes a reforma ministerial promovida pelo presidente Lula na semana passada.
Naturalmente branda, a voz parece ainda mais fraca ao lembrar o distanciamento forçado, mas logo retoma a satisfação ao descrever a visita mais recente à terra natal, para as festas de fim de ano. As duas irmãs que ainda moram no seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, sempre reúnem a família no local, onde hoje funciona um projeto de assentamento. Marina só faltou ao encontro uma vez, em 2002, consumida pela agenda da transição de governo.
Por mais que esteja amarrada a Brasília e aos temas de relevância nacional, a ministra não consegue se desligar do Acre. Fala com orgulho sobre a ebulição política e as transformações ocorridas no Estado nos últimos 15 anos, desde que um tiro de escopeta calou o amigo Chico Mendes.
- Quando eu era vereadora e deputada estadual, enfrentando até o esquadrão da morte, vivia uma realidade muito difícil. Hoje, a mobilização social se dá de maneira muito densa no Acre, com respostas surpreendentes, frutos de uma visão de vanguarda que alia desenvolvimento, meio ambiente e questões voltadas à população local - analisa.
Com cerca de 500 mil habitantes e alta dependência dos repasses da União, o Estado conseguiu garimpar ao longo dos anos um peso político significativo, com parlamentares ligados a causas ambientais e uma ministra na Esplanada.
Na longa viagem do seringal ao Congresso, o vínculo com as causas ecológicas rapidamente fez surgir o rótulo de ''senadora da floresta'', ainda hoje evocado vez por outra. A possível conotação pejorativa não tira o sono de Marina:
- Sempre lidei com os povos de lá, então recebo o apelido de forma carinhosa. Ser chamada assim é uma conseqüência do processo, não incomoda.
O título é apenas mais um laço com o passado, que se mantém cristalino na memória. No que diz respeito ao Acre, a ministra narra em detalhes episódios que ultrapassam a juventude política e se estendem aos tempos de infância. Talvez a explicação esteja no fato de o presente guardar algumas semelhanças com o panorama de meio século atrás. Os avanços na área de saúde não eliminaram, por exemplo, o trabalho das parteiras tradicionais, que ainda hoje se espalham nas margens dos rios, nos seringais e em regiões isoladas da Amazônia.
Parida com a ajuda da avó, Marina conta que, na ausência de um médico, o olhar clínico ficava por conta das parteiras. Em meio aos altos índices de mortalidade infantil na floresta, eram elas que avaliavam as chances de a criança vingar.
- Tive um irmão que morreu aos sete dias de vida, com tétano. Na Amazônia, essa é uma realidade muito forte até hoje - relata a ministra, que hoje incentiva cursos de formação para parteiras no Acre e no Amapá.
Os obstáculos do parto se estenderam por toda a infância. Trabalhando desde cedo no seringal, Marina só conseguiu se alfabetizar aos 16 anos, pelo Mobral. Antes disso, aprendeu a somar para não ser tapeada na venda da borracha. O pai, craque nas contas, sabia que os patrões exageravam no cálculo da porcentagem. Por isso, educou a filha para ficar de olho na balança e não deixar a taxa descontada exceder os 17% combinados.
Foi nesta época, ainda adolescente, que Marina perdeu a mãe e assumiu o comando da casa, onde morava com a avó e seis irmãos. Enfrentou dilemas de adulto, como encontrar a maneira correta de explicar as mudanças naturais do corpo para uma irmã com sérios problemas de audição, causados pela meningite. A solução foi extraída de uma novela de rádio. Uma das personagens, uma professora, adotava a leitura de lábios para transmitir conhecimento a uma aluna surda e muda.
- Aquilo era um drama na minha cabeça, tive de assumir a responsabilidade. Inspirada na novela, comecei a fazer o mesmo com minha irmã e deu certo. Hoje ela usa aparelho de audição, mas ainda faz leitura labial - conta.
Os caminhos improvisados se repetiriam na trajetória política da ministra. A filiação ao PT, em 1985, foi a alternativa encontrada para ajudar Chico Mendes a se eleger deputado e, assim, tentar evitar seu assassinato. O seringueiro concorreu à Assembléia estadual do Acre enquanto Marina tentava puxar votos na Câmara federal.
- Fomos bem votados, mas o partido não conseguiu fazer legenda. Aprendi muito com Chico. Ele tinha um método pedagógico de fazer política, era de falar, conversar. Não precisava inchar a veia do pescoço - lembra.
Aquele partido que mal conseguia eleger seus deputados chegou, quase 20 anos depois, ao Palácio do Planalto. Marina se recusa a admitir que houve mudanças na ideologia da sigla:
- A visão do PT sempre foi de conquistar o poder dentro dos marcos da democracia. Isso não significa que tenha alterado seus ideais.
Na área do Meio Ambiente, o primeiro ano no poder foi desgastante. A árdua discussão sobre os alimentos transgênicos gerou divergências com o presidente, mas a ministra garante que o bom trânsito com Lula segue intacto.
- Tenho com ele uma relação de respeito. É o convívio de duas pessoas que se conhecem há 22 anos - afirma Marina, que homenageou o presidente há 13 anos dando a uma de suas filhas o nome de Moara, ''liberdade'' em tupi.
Coincidência ou não, a adolescente já começa a se insinuar na política. Recentemente, representou a mãe num evento em São Paulo e fez até discurso. Moara gosta de participar das campanhas e chega a se divertir assistindo à TV Senado. Não está sozinha na família. Os irmãos Shalom, Danilo e Mayara também dão pistas sobre a carreira que vão seguir.
- Outro dia o Danilo veio me dizer que tem vocação para ser senador. Perguntei se ele não estava exagerando e lembrei que vocação é uma coisa, votação é outra - brinca Marina.
Às vésperas de completar 46 anos, a ministra se esforça para aproveitar o tempo escasso que tem com os filhos e com o marido, Fábio Vaz de Lima, um antigo companheiro do movimento estudantil. Sempre que possível, a família curte um passeio no Parque da Cidade, onde as crianças aproveitam para andar de bicicleta e triciclo. Marina só veta a bagunça quando se dedica ao hobby predileto: fazer artesanato em casa. Enquanto se divertem, os filhos têm tempo de sobra para avaliar uma possível aventura na política. Por ora, só uma coisa é certa:
- Ninguém dá carteirada em nome da mamãe - garante a ministra.
Mudança de hábito

Em vez da política, a religião. Na adolescência repleta de dúvidas, Marina Silva quase trilhou um caminho que a levaria não para a Esplanada dos Ministérios, mas para um convento. O sonho de ser freira surgiu aos 9 anos, alimentado pelo clima de espiritualidade da família e reforçado pelas conversas com a avó católica.
- Ela me ensinou os rudimentos do cristianismo. Falava sobre as freiras, dedicadas a Deus, então acalentei este sonho - conta.
Após a morte da mãe, Marina pediu ao pai para deixar o seringal e se mudar para a cidade. Durante dois anos e oito meses, morou numa casa de freiras. Às vésperas de ser mandada para o Rio de Janeiro, descobriu que esta não era sua vocação:
- Pedi à irmã para sair e fui morar num bairro de periferia com meu tio.
Mais tarde, formou-se em História pela Universidade Federal do Acre. Nem a dedicação ao marxismo, contudo, foi capaz de apagar os referenciais cristãos.
- O fato de ter sido criada com idosos fez de mim uma pessoa reflexiva. Sempre fui muito ligada nas coisas de Deus - explica Marina, que hoje é evangélica e freqüenta a igreja com os filhos em Brasília.

JB, 26/01/2004, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.