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Divisões internas e miséria caracterizam índios no Acre

Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Josafá Batista
17 de Abr de 2002

Lideranças divergem sobre posicionamento de tribos acreanas nos caminhos da globalização

Pendengas históricas continuam no início do século 21 entre as principais lideranças indígenas acreanas. A antiga controvérsia: permitir ou não que bens tecnológicos, tidos como de domínio universal, sejam utilizados nas aldeias ou isolar as tribos em seus contextos culturais e sociais, deixando-os em franca concorrência com um esmagador modelo de globalização econômica internacional, apareceu ontem, com vigor, no primeiro dia do 3o Encontro de Culturas Indígenas do Acre e Sul do Amazonas.

Ignorando o processo que hoje derruba fronteiras ideológicas e políticas para erguer uma versão robótica do antigo Império Romano, as 19 etnias participantes mostraram fragilidade na coesão e até alguma tendência à divisão interna. Tanto que, segundo seus organizadores, o evento serviria para consolidar uma aliança estratégica entre as diversas tribos amazônidas.

A intenção, dizem, era elaborar um projeto, um documento final, um marrete abstrato e politicamente potente o suficiente para reivindicar a tríade de mais ao Governo Federal: mais terras, mais investimentos, mais "representatividade social" - expressão usada por um dos participantes, o cacique José Ianawa, que veio de uma aldeia Ianawa nas proximidades de Boca do Acre.

Mas na prática o debate girou em torno das incursões bruscas e historicamente disfarçadas que a cultura européia fez ao longo de séculos nas aldeias ocidentais, levando aos indígenas a idéia maniqueísta de que a primeira seria superior e melhor, enquanto taxavam-se as outras, como se vê na famosa carta de Pero Vaz de Caminha, de "primitivas".

Mas se a européia (branca) Revolução Industrial possibilitou a democratização do lucro financeiro e a aceleração da tecnologia, e mesmo assim seus efeitos foram bem assimilados pelos indígenas, a globalização econômica, por sua vez, é questionada e até criticada. O medo está no próprio cerne da globalização: seu poder de nivelar por baixo todas as culturas, crenças, projetos políticos e sociais, em nome de um boliviano sonho de unanimidade econômica mundial.

Índia pede esmola a menos de 500 metros do local do debate

Enquanto as tribos acreanas discutem se cedem às pressões internacionais, e perdem a coesão interna que ainda mantém inteiro o tênue fio que une as diversas etnias brasileiras, aderindo à globalização, ou se mantêm danças, costumes, folclores, artesanatos, histórias, dialetos e sub-dialetos debaixo de uma rígida disciplina circunscricional (ao mesmo tempo em que, coesos, usam o mesmo argumento para reivindicar à União a tríade de mais) uma índia, uma Jaminawa legítima, pedia esmolas a menos de meio quilômetro dali.

Francisca Jaminawa perdeu o marido há seis meses, durante uma briga na tribo em que morava, no rio Iaco. "Meu marido foi morto a marretadas", diz, não disfarçando o sotaque de um dialeto somado a um português falho, quase sem consoantes. "Há seis meses tive que vir até a cidade pedir esmolas, comida e remédios para meus quatro filhos. Dois deles estão com hepatite."

Com seu chinelo de dedo, saia suja de terra, manta vermelha e cabelos desgrenhados, Francisca é uma típica indígena que abandona sua tribo à procura de um melhor horizonte na cidade grande. Num ano em que a Igreja Católica especula uma "terra sem males" para as 320 etnias indígenas brasileiras, casos como o de Francisca são comuns em todo o Brasil. No Acre, onde a abundância de recursos florestais mostra uma realidade propícia para ideais de vida mais ruralizados, o fenômeno, contrariando a lógica, é também notável.

"O que eu queria era dar comida para os meus filhos, porque meu marido morreu e na aldeia não tenho quem cace nem pesque para mim", diz ela, provavelmente respondendo a questão. "Além disso eles estão doentes e precisava de atendimento". Francisca mora há seis meses num pequeno casebre localizado no bairro São Francisco, periferia de Rio Branco.

Cacique elogia trabalho da igreja e pede paz com homem branco

"Estamos lutando para conseguir melhorias para a nossa tribo. Sem radicalismos, sem achar que nossa cultura é a melhor. Aceitamos o trabalho da igreja e todas as ajudas disponíveis para nos fazer crescer". A frase pertence ao líder indígena José Ianawa, mostrando que a predisposição em rejeitar valores econômicos, políticos e até culturais, da civilização pechada como "branca" não é comum a todas as tribos.

José estava no primeiro dia do encontro, que, contrariando o esperado pelos próprios participantes, tratou de não enfatizar a notável diferença de opiniões entre as lideranças presentes. "Inclusive nós elogiamos o trabalho da igreja católica dentro da nossa aldeia, temos uma forte parceria com diversos segmentos sociais e estamos aptos a crescer. O que eu quero é apenas viver em paz com todo mundo, incluindo o branco".

Para José o ideal da integração coletiva é o ideal do futuro - exatamente o da globalização econômica (e social) - mas tudo deve ser feito dentro de um parâmetro de "observação entre o que é bom e o que não é. Se for bom para todo mundo, deve ser para os índios também. Só não podemos aceitar coisas que possam nos destruir, retirar nossa dignidade enquanto seres humanos", exemplifica.

Perguntado pelos reais motivos que o atraíram ao 3o Encontro de Culturas Indígenas do Acre e Sul do Amazonas, José esboça um sorriso espontâneo - historicamente conhecido - e detona: "Quero discutir a demarcação das nossas terras. Estamos prontos para buscar o intercâmbio econômico com o homem branco, mas precisamos ter o nosso território definido. Caso contrário, nem saberemos o que é nosso e o que não é".

Cacique condena proselitismo religioso e fala sobre infestação cultural

Líder de uma aldeia localizada nas imediações do seringal Gregório, no Estado do Amazonas, Joaquim Taska Ianawa tem um posicionamento totalmente diverso do de José. Para ele, a infestação religiosa no início do século levou em seu bojo um ranço de preconceito racial e principalmente social, que ao longo de séculos patrocinou uma política de erradicação de idéias, costumes, folclores e padrões sociais, como religiões, por exemplo.

Para Joaquim, a suposta predominância dos valores civilizacionais europeus foi catapultada principalmente pela influência da pregação cristã, em que a igreja católica, através da Companhia de Jesus, causou muito mais estragos que Domingos Jorge Velho e outros bandeirantes Brasil adentro.

Contudo, o cacique é antenado com as inovações tecnológicas (brancas) e, depois de quatro anos estudando nos Estados Unidos, ele volta à Amazônia repleto de idéias e valores norte-americanos. E da certeza de não ter perdido sua identidade cabocla, como diz a seguir.

Página 20 - Um dos problemas da Amazônia é a grande migração de índios para as cidades. Como você, uma liderança indígena, vê isso?

Joaquim - Ah... bom... (pausa). Eu estou há três semanas no Brasil, acabei de voltar de uma jornada de quatro anos nos Estados Unidos. Lá eu trabalhei com diferentes nações indígenas. Gente do México, Argentina, Canadá, Peru, Bolívia e dos próprios EUA e...

Página 20 - Sim, mas não é isso. Há quatro anos já havia, muito mais até, a migração indígena para as cidades...

Joaquim - Bom. Eu penso que a situação indígena (pausa) é global porque o motivo que leva muitos indígenas a deixarem suas aldeias e virem às cidades (pausa)... na minha opinião... acontece que... hoje, aqui no Acre, exclusivamente nos anos 80, foi a década da reivindicação das terras, do pedido de demarcações. Então foi um momento de tensão, de muitas conquistas. Tanto que hoje temos muitas conquistas.

Página 20 - E a migração?

Joaquim - Vou chegar lá. O povo indígena teve a terra, mas não tem como mantê-la. O desafio hoje é buscar alternativas de como nós, indígenas, podemos usufruir da nossa cultura, da nossa tradição, e ao mesmo tempo ter uma economia que possa nos manter nas aldeias, no nosso habitat (sic) natural, sem destruir. E ao mesmo tempo, como disse, procurar uma economia em que ele trabalhe e viva pelo fruto da sua terra.

Página 20 - Então, talvez, a migração seja causada por problemas econômicos nas aldeias?

Joaquim - Em alguns casos. Hoje há comunidades que por estarem localizadas em áreas muito distantes são tolhidas desse direito e acabam não sendo contempladas com programas do governo, de instituições, etc. Aí muitos acabam imigrando, são forçados a isso pelas condições.

Página 20 - Se as razões são econômicas, por que não inserir o índio no mercado capitalista, como todo mundo?

Joaquim - Porque dá para viver muito bem com o modo de vida indígena. Só precisamos de um modelo de desenvolvimento econômico, de assistência governamental. Só isso. Aliás, essa idéia de que o jeito indígena de viver é primitivo é tanto incorreta quanto preconceituosa.

Página 20 - Por quê?

Joaquim - Porque o branco tratou de moldar esse conceito na mente das pessoas, que sua cultura, sua religião, sua política e seu capitalismo é o melhor jeito de seres humanos viverem. Os índios possuem uma alternativa. Aliás, esse jeito de pensar é antigo e foi ajudado a moldar pelas catequeses da igreja católica.

Campanha da igreja quer levar etnias à "reflexão"

A versão religiosa da problemática indígena na Amazônia parece mostrar preocupação com os rumos da globalização econômica e os destinos de centenas de tribos. No ano em que a igreja católica escolhe esse tema para sua Campanha da Fraternidade, o coordenador no Acre, padre Luís Ceppi, explica que a tentativa da Igreja, com ela, é levar a sociedade inteira a questionar seus próprios valores civilizacionais.

"Será que ser civilizado é calçar um tênis, freqüentar academias, ter cartões de crédito, salário mínimo e pagar impostos?", inquire. "O século 21 nos traz uma ótima oportunidade de começarmos a nos perguntar algumas coisas, entre elas, a quem interessa que cidadão civilizado seja sinônimo de consumidor. Não seriam as grandes multinacionais, as empresas mundialmente conhecidas, a ganharem com isso?"

Ceppi, sem comentar o passado da instituição que representa, acha que explanações sobre o tema devem ser constantes "para definir uma nova linha de pensamento sobre o respeito à diversidade cultural e social. Somente assim teremos uma sociedade saudável, e não achando que pessoas felizes são aquelas que têm dinheiro, que consomem. Isso é altamente destrutivo e danoso do ponto de vista moral", ressalta.

Além de reuniões, idéias, teorias e quebra de tabus durante todo o ano, a igreja em Rio Branco, diz o padre, pretende investir também numa velha prática da caridade cristã - para alguns, historicamente assistencialista e até danosa: "Domingo de Ramos entregamos todas as nossas ofertas ao Conselho Indigenista Missionário da Amazônia (Cimi), para distribuir vida nas aldeias".

O Cimi é uma entidade ligada à Igreja Católica.

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