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Distritos Sanitários Especiais Indígenas, no governo Lula: o caso dos DSEI Litoral Sul e DSEI Interior Sul

Luiz de Souza Karai Guarani
Autor: Luiz de Souza Karai Guarani e István Varga
01 de Nov de 2003

Apontadas como exemplos das arbitrariedades e distorções praticadas pela primeira gestão do Departamento de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), em relação à política de saúde para os povos indígenas, e em relação aos princípios, metodologias de implantação, modelo gerencial e de controle social dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), definidos pelas Conferências Nacionais de Saúde para os Povos Indígenas, as configurações do DSEI Litoral Sul e do DSEI Interior Sul vêm sendo objeto, mais recentemente, de intenso trabalho e discussão, por iniciativa das próprias comunidades abrangidas.
Também por iniciativa de suas lideranças e representantes, o assunto vem ocupando a pauta de reuniões dos respectivos Conselhos Locais e Distritais, de ambos os DSEIs, e de vários encontros, como dos recentemente realizados em São Paulo/SP, pela Comissão Pró-Índio de São Paulo e pela Coordenação Regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Sul (17-19/9/2003), e na aldeia Rio Branco, em Itanhaém/SP, realizado pela Comissão Pastoral da Criança da Diocese de Santos (19-21/9/2003).
Este processo é muito importante: ele é que deveria, aliás, definir e fundar mesmo os Distritos, segundo metodologia estabelecida, já em 1993, pela II Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas.
Mais ainda, a idéia mesmo deste "processo" é central no próprio conceito de Distrito Sanitário, conforme indica MENDES (1999).
Como se sabe, a implantação dos DSEIs, sobretudo nos estados do Nordeste, Sul e Sudeste, não foi encaminhada, no entanto, segundo estes princípios e metodologias, resultando na delimitação e tentativas de implantação de alguns dos DSEIs mais problemáticos e de pior desempenho: é o caso, no Sul e Sudeste, dos DSEIs Litoral Sul e Interior Sul, e, no Nordeste, do DSEI Maranhão, por exemplo, entre vários outros.
O DSEI Litoral Sul incide em nada menos que cinco estados das regiões Sul e Sudeste - Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro - abrangendo as comunidades indígenas da faixa costeira de todos estes estados, e as da Região Metropolitana de São Paulo. O DSEI Interior Sul incide nos mesmos estados, à exceção do Rio de Janeiro, abrangendo as comunidades indígenas numa faixa paralela, pelo "interior", à do DSEI Litoral Sul. O DSEI Litoral Sul tem sede em Curitiba/PR (município que não está no "litoral"...); já o DSEI Interior Sul tem sede em Florianópolis/SC (município que não está no "interior"...).
Há indigenistas e sanitaristas que buscam justificar a configuração do DSEI Litoral Sul, com o argumento de que foi concebido como um DSEI para os Guarani, cujas comunidades mantêm intensa mobilidade e comunicação entre todos estes estados, e com as do Espírito Santo (não abrangidas, no entanto, pelo DSEI Litoral Sul).
Os dados do Censo Demográfico de 2000, do IBGE, por exemplo, são dos que apontam, no entanto, de maneira mais contundente, para a urgente necessidade de redefinir as configurações de vários DSEIs.
Em São Paulo, a FUNAI, entidades indigenistas e ambientalistas, assim como a FUNASA e demais instituições de saúde, vinham trabalhando com estimativas e contagens que indicavam uma população indígena de cerca de 3.000 pessoas no estado, com grande predominância Guarani. Já o Censo do IBGE, utilizando a auto-identificação como método para o quesito cor/raça (o próprio recenseado define sua cor/raça), registrou 63.789 índios no estado: a terceira maior população indígena do país, em números absolutos, superada apenas pelas do estado do Amazonas (de 113.391 indivíduos) e da Bahia (de 64.240 indivíduos).
Estas informações, é claro, exigirão maiores investigações, de modo que se possa detalhá-las mais, por exemplo, no que se refere às identidades desses grupos indígenas, mas desde já se pode dizer que acarretarão profundas redefinições no modelo operacional adotado pela atual política de atenção aos povos indígenas, construído visando o atendimento, sobretudo, de comunidades indígenas ditas "aldeadas".
Muito menos conhecidas (e reconhecidas), as comunidades indígenas presentes nas periferias das grandes cidades possivelmente constituem o maior contingente de população indígena em São Paulo, como já indicavam os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 1998: nada menos que 33.829 pessoas já se identificavam como de "cor ou raça" "indígena", só na Região Metropolitana de São Paulo (IBGE, 1998-2).
Estas, certamente, também são as comunidades mais vulneráveis a vários agravos: é o caso das DST e da Aids, por exemplo, como indicam os relatórios de oficinas macro-regionais de atenção às DST e Aids, realizadas pela Coordenação Nacional de DST e Aids, desde 1997, e os dados divulgados, mais recentemente, pela Coordenação Estadual de DST/Aids de São Paulo (2003).
Pode-se dizer que há relativo consenso, entre as comunidades Guarani e Tupi-Guarani de São Paulo atualmente abrangidas pelo DSEI Litoral Sul, de que é muito importante que a construção desse "subsistema" de atenção à saúde dos povos indígenas viabilize uma permanente comunicação e rotina de reuniões entre todas as comunidades Guarani e Tupi-Guarani: o processo de implantação do DSEI Litoral Sul, de fato, segundo depoimentos de várias lideranças, vem permitindo maior mobilidade e capacidade de comunicação entre as comunidades já abrangidas.
Por outro lado, também se pode dizer que é generalizada a crítica às grandes dificuldades operacionais, e de articulação política com os governos municipais e estaduais envolvidos, advindos da gigantesca extensão de ambos distritos.
Nada impediria, no entanto, a configuração de vários DSEIs Guarani e Tupi-Guarani, bem menores, mas articulados entre si, que viabilizassem e intensificassem ainda mais, e com maior agilidade e eficiência operacional, administrativa e política, essa comunicação e mobilidade entre as comunidades abrangidas: esta é uma perspectiva que se vem delineando nas discussões em andamento, entre os Guarani e Tupi-Guarani de São Paulo.
Quanto maior o número de DSEIs, maior a participação e o poder de controle social dos índios: maior o número de Conselhos Distritais e, portanto, de participantes e conselheiros indígenas, com voz e assento nessas que deveriam ser as principais instâncias de planejamento, controle social e avaliação da política de saúde para os povos indígenas.
Embora o desdobramento dos atuais DSEIs esbarre em limitações administrativas internas da FUNASA, implicando em alterações no organograma do Departamento de Saúde Indígena (DESAI) - exigindo, por exemplo, a criação de novos cargos remunerados (como os das Chefias dos novos DSEIs) - essa discussão, amadurecida, precisa ser claramente colocada na pauta de negociações do movimento indígena com a FUNASA e o Ministério da Saúde: afinal, a inserção dos DSEIs na FUNASA, e em seu fluxo interno de poder - medida que vem sendo contestada (e, por enquanto, tolerada...) por importantes setores do movimento indígena, indigenista e sanitarista - também contradiz várias deliberações de Conferências Nacionais de Saúde, para as quais a gestão dos DSEIs deveria ser inter e supra-institucional, e sua vinculação remetida diretamente ao Ministério da Saúde, sem instâncias intermediárias.
O processo de realização da Conferência Nacional de Saúde é a melhor oportunidade para amadurecer e fazer repercutir essa discussão. Esperamos que os Conselhos de Saúde, a Comissão Organizadora da XII Conferência Nacional de Saúde, a FUNASA e as demais instituições e entidades envolvidas garantam as condições para uma ampla participação dos índios, em todas as suas etapas.

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