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Discurso e prática

O Globo, Economia, p. 23
Autor: VIEIRA, Agostinho
06 de Mar de 2014

Discurso e prática

AGOSTINHO VIEIRA
oglobo.globo.com/blogs/economiaverde

Os últimos dados oficiais do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, indicam que o Rio coleta 77,85% do esgoto que produz e trata apenas 51,92%. Ou seja, quase metade de tudo que é eliminado pelas descargas dos cariocas chega In natura num rio e no mar. Se este é o panorama da cidade, imagine a situação das favelas, onde vivem 20% da população?
Essa pergunta foi feita pelo pessoal do projeto Viva Favela, ligado à ONG Viva Rio. Um grupo abnegado de jornalistas e correspondentes comunitários que tenta mostrar um ponto de vista diferente da história. No caso do saneamento, o trabalho começou com uma surpresa. Uma boa surpresa. Na verdade, boa demais para ser verdade. Os números do Censo 2010, do IBGE, mostravam que as favelas, em alguns quesitos, estariam numa situação melhor do que o resto da cidade.
O percentual de domicílios com abastecimento adequado de água chegaria a 91% nos "aglomerados subnormais", que é como o IBGE classifica as áreas carentes. Contra 86% da cidade como um todo. Já no item cobertura de esgoto, os índices estariam em fantásticos 82,2%, pouco abaixo dos 89,1% da cidade. Estranho? Pois é. Não dá para dizer que o IBGE esteja errado, isso não acontece com muita frequência. O problema está na maneira como a pergunta é feita.
A do esgoto é assim: "Para onde são destinados os esgotos domésticos de seu domicílio?". E aí aparecem cinco alternativas: rede geral de esgoto e pluvial, fossa séptica, fossa rudimentar, vala e, por último, rio, lago ou mar. Como estamos falando de Censo e de entrevistas com moradores, as respostas refletem o que eles veem ou sentem e não necessariamente a verdade. Quem não tem vala negra na porta e sabe ou acredita que um cano está levando o seu esgoto para longe, escolhe a alternativa "A": rede geral de esgoto e pluvial. Foi o que fizeram, por exemplo, 99% dos moradores do Vidigal. E é aí que mora o perigo.
Quando os romanos inventaram os primeiros sistemas de esgoto, ainda no século VI antes de Cristo, esse era o principal objetivo, afastar de perto das casas os dejetos e as doenças que vinham com eles. Com o tempo se percebeu que isso não era suficiente. Era preciso tratar esse esgoto e evitar que ele contaminasse os rios e lagos. Tem sido assim no mundo desenvolvido. Por aqui não é bem assim. Na prática, em pleno século XXI, não só as comunidades carentes, mas grande parte da nossa cidade ainda vive como os contemporâneos de Cesar.
De um modo geral, o esgoto das favelas tem três destinos básicos, nenhum adequado: os rios e canais da cidade, as praias e as galerias de águas pluviais. Por trás de cada língua negra numa praia existe uma favela sem tratamento de esgoto. A do Leme, por exemplo, existe há mais de 30 anos e nasce nos morros do Chapéu Mangueira e da Babilônia. O Cantagalo e o Pavãozinho jogam seus dejetos no Canal do Jardim de Alah. Já os da Rocinha podem ser vistos boiando impunemente nas águas de São Conrado.
Os investimentos do PAC e os projetos "Sena Limpa" e "Morar Carioca" serviriam para minimizar os problemas, mas avançam lentamente. O ex-secretário de Meio Ambiente Carlos Minc classifica a falta de saneamento nas favelas como "um desastre ecológico de grandes dimensões". Já o presidente da Cedae, Wagner Victer, acredita que reduzir as valas negras nas comunidades já foi um grande avanço. Argumenta que é difícil fazer obras nos morros e que, em algum momento, os investimentos darão resultado.
A questão é saber quando. Em 2007, por conta da falta de resultados práticos, o então prefeito Cesar Maia pediu ao governador que transferisse a gestão do saneamento das favelas e da Zona Oeste para o município. Isso foi feito, mas nada aconteceu. Em 2012, o prefeito Eduardo Paes devolveu o abacaxi para a Cedae. Ele veio fatiado. Hoje, as favelas com UPP ficam com a Cedae, as comunidades sem UPP estão com a empresa Rio Águas e a Zona Oeste foi entregue à iniciativa privada. Talvez seja uma maneira de avaliar quem faz mais e melhor.
Enquanto isso, na vida real, os correspondentes do projeto Viva Favela mostram moradores fazendo vaquinha para comprar canos de esgoto, crianças mergulhando em águas contaminadas, montes de lixos e ratos convivendo em harmonia, rios sem dragagem e muito mais. O resultado do trabalho estará numa edição especial sobre o tema que vai ao ar no próximo dia 20. Uma boa leitura para quem gosta de calcular a distância entre discurso e prática.

O Globo, 06/03/2014, Economia, p. 23

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