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DIRETRIZES PARA A FORMULAÇÃO DE UMA POLÍTICA CULTURAL REFERENTE AOS POVOS INDÍGENAS

Fórum Cultural Mundial
03 de Jul de 2004

Entre os dias 29 de junho e 03 de julho de 2004, por ocasião do Fórum
Cultural Mundial, realizado na cidade de São Paulo, estiveram reunidas
no Ciclo de Debates
intitulado Presença Indígena no Fórum Cultural Mundial, promovido pelo
LACED/Museu Nacional, INPSO/Fundação Joaquim Nabuco e Raízes da Tradição
lideranças indígenas
de diferentes estados e regiões, sob a coordenação das duas maiores
organizações indígenas do país, a COIAB, Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira,
e a APOINME, Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste,
Minas Gerais e Espírito Santo.
Sem prejuízo de outras moções e recomendações relativas a outras
políticas públicas que afetam os povos indígenas, cuja discussão ainda
se estende pelo dia de hoje,
os participantes deste Ciclo de Debates vêm à público neste momento
encaminhar ao Ministério da Cultura, através do Secretário de Identidade
e Diversidade Cultural,
Sérgio Mamberti, um documento contendo recomendações relativas à
formulação de uma política pública de cultura que contemple os anseios e
as singularidades das culturas
indígenas.
Um pressuposto básico para a elaboração de uma política cultura nessa
esfera é a enorme diversidade própria às culturas indígenas, visto
tratar-se de 220 povos,
com cerca de 180 línguas, com histórias distintas, inseridas em
diferentes ecossistemas e em contextos econômicos e políticos regionais
fortemente contrastantes,
localizadas dentro de um país com dimensões continentais.
Em função dessa diversidade histórica, ecológica e cultural os povos
indígenas possuem estratégias políticas diferenciadas, que apenas nos
últimos anos começam a
estar mais intimamente interligadas na constituição de um movimento
indígena brasileiro, das quais as duas entidades acima mencionadas,
COIAB e APOINME, constituem
os alicerces básicos.
A Constituição Federal de 1988 , ao reconhecer como legítimas as
manifestações culturais e as formas de organização próprias aos povos
indígenas, veio a retirar
todo o fundamento legal ao exercício generalizado do mecanismo da
tutela, reconhecendo a capacidade civil dos indígenas. A Convenção 169
da OIT, homologada recentemente
pelo governo brasileiro, veio a consolidar uma nova ordem jurídica
quanto aos povos indígenas, fixando os princípios gerais de uma política
indigenista que não esteja
pautada em uma perspectiva assimilacionista e autoritária, mas sim no
diálogo intercultural e no respeito às diferenças.
O fim da tutela não significa nem pode significar de forma alguma o
término da responsabilidade do Estado Brasileiro para com as
coletividades indígenas que habitam
dentro do território nacional e constituem parte integrante do
patrimônio cultural do país.
Nesse sentido estamos a seguir apresentando algumas diretrizes que,
considerando o novo marco jurídico e atendendo ao grau de mobilização e
consciência política
do movimento indígena brasileiro, devem servir de base para a elaboração
desta política cultural.

1) Fortalecer as manifestações culturais indígenas.
Em todo o país muitas povos e comunidades indígenas enfrentam hoje uma
situação de invasão de suas terras, graves conflitos e ameaças, que
implicam em falta de assistência,
fome e medo. Se não há condições de sobrevivência material também não há
como manter a cultura. É obrigação do Estado Brasileiro, através de
múltiplas e articuladas
políticas de governo, modificar esse quadro.
No que tange especificamente à proteção das culturas indígenas julgamos
que é de responsabilidade do Ministério da Cultura apoiar material e
politicamente as iniciativas
concretas procedentes das comunidades indígenas no sentido de expressar
e reafirmar publicamente, seja dentro das aldeias ou em contextos
interétnicos, a sua fé
nos valores e instituições centrais destes povos. Chamamos atenção em
especial para a importância de um apoio efetivo às variadas modalidades
de experiências com
centros culturais indígenas, em iniciativas que devem permanecer sob
controle e direção dos próprios indígenas, mas que podem ser em muito
fortalecidas com o efetivo
apoio do poder público federal.
A adesão à identidade indígena e a fidelidade aos seus valores centrais
exige a permanente reafirmação de suas tradições, freqüentemente
dificultada por limitações
materiais e pela desinformação e preconceito da população não indígena
dessas regiões. Embora se saiba perfeitamente as limitações
orçamentárias e as dificuldades
de operacionalização dessa política de fomento cultural, o que esperamos
nesse momento do MINC é uma atitude nova e solidária com os povos
indígenas, estabelecendo
como uma das prioridades de sua atuação o permanente compromisso com a
valorização destas culturas, bem como com os esforços destas
coletividades no sentido de sua
atualização e divulgação para as novas gerações. É importante também
possibilitar um diálogo cultural respeitoso e construtivo com outros
povos indígenas e com os
múltiplos segmentos da população brasileira não indígena.
As lideranças indígenas presentes ao FCM vem chamar atenção ainda para o
verdadeiro assalto cultural que nos últimos anos diversos povos
indígenas vêm sofrendo da
parte de invasores de suas terras e vizinhos ambiciosos. Nessa
empreitada expedientes os mais diversos são utilizados, desde a aberta
proibição ou hostilização de
práticas culturais, até artifícios mais insidiosos, como a atuação
agressiva e etnocêntrica de igrejas com variadas orientações
confessionais, que se alojam nas
proximidades das aldeias, atraem inicialmente crianças e mulheres, e na
seqüência passam a inibir as manifestações tradicionais daquela cultura
sob acusações de
que ferem suas crenças religiosas. Tais fatos merecem uma atenção das
autoridades pois ameaçam perigosamente a reprodução e continuidade das
culturas indígenas e
em nada contribuem para a manutenção da diversidade cultural
constitutiva do Brasil.

2) Lutar contra o preconceito e promover campanhas de divulgação e
valorização das culturas indígenas.
Propõe-se criar campanhas, adaptadas aos diferentes setores da opinião
pública, de divulgação de informações sistemáticas e qualitativamente
diversas das que circulam
hoje nos meios de comunicação de massas quanto aos povos indígenas e
suas culturas. É fundamental dar a conhecer ao povo brasileiro a riqueza
cultural dos povos
indígenas, planejando e apoiando mostras que informem sobre o valor e a
complexidade deste patrimônio intelectual, que recuperem a importância
da participação indígena
na formação da identidade, das instituições e do território nacional. As
lideranças aqui reunidas protestam também contra a visão passadista e
antiquada com que
os meios de comunicação apresentam a imagem do índio, sempre
descontextualizando-o dos quadros históricos em que se situa,
estimulando a permanente desconfiança
e rejeição face ao indígena enquanto contemporâneo. Ou seja, é
fundamental passar a compreender o indígena não mais como um objeto
colonial, mas como um sujeito
histórico em busca de melhores condições de vida para a coletividade a
que pertence e postulando a criação de um espaço político próprio,
adequado ao exercício de
uma cidadania diferenciada.
É necessário e indispensável que tais atividades de divulgação estejam
associadas às práticas escolares (sobretudo ao ensino primário e médio),
onde são inculcadas
as orientações valorativas mais profundas para a grande maioria das
pessoas. Considerando a má qualidade da informação sobre os povos e
culturas indígenas que ainda
continuam em circulação no universo escolar recomenda-se um investimento
específico na produção de instrumentos de comunicação diversos (livros,
vídeos, cds, etc.),
produzidos com a participação ativa das organizações indígenas,
estabelecendo igualmente estratégias de distribuição nacional e
circulação desses materiais didáticos.
Sugere-se ainda que seja aproveitado como um canal efetivo para
divulgação de informações e projetos relativos aos povos indígenas o
fórum de articulação entre o
MINC e as secretarias estaduais de cultura, de maneira a que sejam
implementadas parcerias importantes, que venham a ampliar o alcance e
repercussão das medidas
aqui preconizadas.

3) Romper com a marginalidade dos povos indígenas em relação ao acesso
aos bens culturais do país
A condição de exclusão social à qual as comunidades indígenas estão
submetidas, impede-lhes o acesso à produção e à circulação nacional de
bens culturais. É necessário que o governo se comprometa com a garantia do acesso do povo indígena
não só à sua própria cultura e à de outros povos (intercâmbios
culturais), como também à toda e qualquer produção cultural e artística que mereça o apoio e o
patrocínio do governo, em todas as áreas da cultura (literatura, cinema,
artes plásticas, música, dança, teatro e fotografia).

4) Elaborar uma política cultural indígena em parceria com os povos
indígenas.
Uma política cultural não pode ser imposta. Tem que ser vivida,
atualizada e posta em prática. O MINC precisa propor uma metodologia de
atuação que contemple efetivamente a interlocução com as representações indígenas.
Sugere-se nesse sentido a organização um de Grupo de Trabalho (GT)
dentro do Ministério da Cultura que garanta a discussão da problemática
indígena junto aos próprios interessados, com a seguinte composição: 3 participantes da APOINME
(Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito
Santo), 3 participantes da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira), 1 assento para um representante da região sul, 1 para
representante da região Sudeste e 1 para representante da região Centro-Oeste.

5) Respeitar a propriedade intelectual dos povos indígenas e garantir a
proteção aos bens culturais e conhecimentos tradicionais.
Favorecer a discussão junto aos povos indígenas da questão dos direitos
autorais quanto aos bens culturais indígenas, bem como quanto ao
estabelecimento de mecanismos de proteção aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, através
dos instrumentos legais apropriados. É importante ressaltar que essa é
uma discussão complexa e que deve ser realizada contando com a participação plena e a consulta
informada dos representantes indígenas, possibilitando assim o
reconhecimento dos direitos coletivos e não apenas dos interesses privados e individuais, como é o
foco de grande parte da legislação existente sobre a matéria.

São Paulo, 02 de julho de 2004.
Assinam:

. Agnelo Xavante, Vice-Presidente da COIAB.
. Sandro Tuxá, representante da APOINME.
. Dourado Tapeba, representante da APOINME.
. Bonifácio Baniwa (COIAB e FEPI).
. Nino Fernandes (Diretor do Museu Maguta e Presidente do CGTT).
. Fausto Mandulão (Coordenador da OPIR/RR).
. Francisco Pianco, Ashaninka (AC).

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