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Direitos das populações tradicionais correm risco

Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Romerito Aquino
02 de Fev de 2005

Marina terá de lutar muito para garantir direitos dos povos tradicionais sobre recursos genéticos existentes na floresta

A exemplo do que ocorreu durante a votação da legislação sobre os produtos transgênicos, quando teve de lutar em desvantagem política com colegas de ministérios e com a poderosa bancada ruralista do Congresso em favor dos trabalhadores rurais, a ministra Marina Silva vai começar a enfrentar outra luta de extrema importância para outros segmentos importantes dos trabalhadores brasileiros.

Desta vez, o alvo são os milhares de índios, seringueiros, ribeirinhos e outros trabalhadores extrativistas da Amazônia, que integram os chamados povos da floresta, de onde a própria ministra é originária e pelos quais ela vem dedicando atenção especial desde que assumiu a pasta do Meio Ambiente a convite especial feito nos Estados Unidos pelo próprio presidente Lula.

A causa da nova luta, que por enquanto está restrita aos bastidores do governo, são as divergências entre alguns ministérios com relação ao conteúdo do Anteprojeto de Lei (APL), atualmente em análise na Casa Civil da Presidência da República, que trata do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. Além disso, está em disputa no âmbito dos ministérios o próprio poder de decidir sobre o tema.

Segundo divulgou em seu site na Internet o Instituto Socioambiental (ISA), uma organização não-governamental que o presidente Lula tem chamado constantemente para participar das decisões sobre questões ambientais do país, os ministérios da Ciência e Tecnologia, da Agricultura e do Desenvolvimento defendem uma proposta de anteprojeto que privilegia o interesse da grande indústria da biotecnologia e restringe o máximo o controle dos povos tradicionais sobre seus recursos genéticos e conhecimentos, além de limitar a repartição dos benefícios originados por eles.

A posição dos três ministérios entra em choque direto com o que vem sendo defendido, até a nível internacional, pela ministra Marina Silva, que no dia 21 de janeiro, durante reunião do Grupo de Países Megadiversos e Afins, realizada em Nova Déli (Índia), afirmou que os direitos dos povos tradicionais devem ser reconhecidos e fortalecidos, conforme preconiza a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).

"É inaceitável que as populações dessas áreas, freqüentemente as grandes responsáveis pela conservação de recursos biológicos e detentoras de conhecimentos a eles associados, não sejam remuneradas de forma justa e eqüitativa pela conservação desses recursos e pelo uso desses conhecimentos", defendeu a ministra, falando em nome do governo brasileiro.

Ainda segundo o ISA, o grupo encabeçado pelos três ministérios vem tentando dificultar a participação da sociedade civil na discussão do anteprojeto de lei, além de enfraquecer o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), colegiado governamental que trata da questão do acesso aos recursos genéticos e cuja secretaria-executiva é exercida pelo Ministério do Meio Ambiente. "Por trás da estratégia, estaria a intenção de transferir para o MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia) a competência de gerir o patrimônio genético e, de quebra, impedir definitivamente a participação da sociedade e qualquer forma de controle social nas decisões sobre a matéria", acusa o ISA.

Para o instituto, o problema em questão é que o Ministério do Meio Ambiente não tem se posicionado claramente nas discussões do CGEN, o que vem fortalecendo a "manobra" do bloco ministerial. O ISA assinala que a própria consultoria jurídica do Meio Ambiente elaborou um parecer afirmando que o Conselho não teria competência para analisar os contratos de repartição de benefícios oriundos da biodiversidade.

Decisão a portas fechadas

Para esclarecer melhor o imbróglio ministerial, o ISA lembra que em julho de 2003, o CGEN começou a discutir uma nova legislação para substituir a Medida Provisória (MP) 2.186, que atualmente regula o tema do acesso aos recursos genéticos. Logo de início, sob a orientação da ministra Marina Silva, o Conselho admitiu a participação informal de organizações da sociedade civil no Conselho como convidadas, sem direito a voto.

"Mesmo assim, elas enfrentaram uma série de constrangimentos no debate: poucas entidades acompanharam o processo, não houve acúmulo de informações da parte delas e tampouco da parte dos povos indígenas e comunidades locais. Além disso, não houve a divulgação suficiente e qualquer apoio financeiro do CGEN para viabilizar aquela participação", destaca o instituto.

Segundo o ISA, esse foi o único momento em que a sociedade teve oportunidade de opinar sobre a futura legislação, conseguindo garantir, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, alguns direitos importantes, especialmente para os detentores de conhecimentos tradicionais. Encerrado o debate no CGEN, no final de 2003, o anteprojeto de lei foi encaminhado pelo Meio Ambiente à Casa Civil, onde se iniciou uma nova discussão, agora restrita aos ministérios com assento no conselho.

"Após várias rodadas de negociação, ficou clara a divergência entre o MMA, que pretendia ampliar os direitos dos povos tradicionais, e as outras pastas. No segundo semestre de 2004, a Casa Civil abriu a possibilidade de que os ministérios fizessem mais sugestões e uma nova versão do APL, de teor desconhecido, foi elaborada", completa o instituto.

O ISA assinala, ainda, que mais recentemente, atropelando as discussões na Casa Civil e contradizendo várias das posições defendidas publicamente no CGEN, o bloco composto pelos três ministérios apresentou uma proposta de substitutivo ao anteprojeto de lei "com graves retrocessos" no que diz respeito aos direitos das comunidades tradicionais.

O instituto esclarece, também, que a proposta do bloco ministerial extingue o CGEN e transfere para o Ministério da Ciência e Tecnologia a competência de gerir o patrimônio genético. "Assim, é extinta também qualquer forma de participação da sociedade na análise do tema. Além disso, o substitutivo centraliza num fundo gerido pelo próprio MCT todos o dinheiro advindo da repartição dos benefícios da biodiversidade, o que impede qualquer forma de repartição direta para os povos detentores dos recursos e dos conhecimentos tradicionais", esclarece o ISA.

Pela proposta do bloco ministério, ainda de acordo com o ISA, o chamado "consentimento prévio informado", instrumento que garante a necessidade de autorização preliminar das comunidades para o acesso aos seus recursos e conhecimentos, fica relegado a segundo plano. "Garantido pela legislação atual, o direito de negar esse acesso e de impedir a transmissão ou divulgação de informações contidas nos conhecimentos tradicionais também é extinto pelo projeto", assinala.

Além disso, o instituto destaca que todos os conhecimentos classificados com dos "usos e costumes" da sociedade brasileira ou cuja origem específica não possa ser comprovada passam a ser considerados de "domínio público", o que também inviabiliza a repartição de benefícios para vários povos. Uma outra dificuldade criada é que a proteção dos conhecimentos tradicionais passa a ter um prazo de prescrição de no máximo 10 anos.

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