OESP, Aliás, p. J7
Autor: MEIRELLES JÚNIOR, José Carlos
06 de Fev de 2011
Direito à não-vizinhança
Com regularização de terras para indígenas isolados, sem contatá-los, sua população dobrou. Mas as ameaças voltaram
José Carlos Meirelles Júnior
Nas cabeceiras dos Rios Acre, Iaco, Chandless, Purus, Envira,Tarauacá, Jordão, Juruá, Madeira, Tauhamanu, De Las Piedras e Madre de Dios, nas terras que nunca alagam devido à proximidade da Cordilheira dos Andes, habitavam inúmeros povos indígenas, em sua grande maioria pano e aruaque.
As aldeias eram construídas longe da calha dos rios maiores, nas cabeceiras de pequenos igarapés, isentos das nuvens de piuns, catuquis e carapanãs, que infestam as margens das cabeceiras dos grandes rios de água branca. Criou-se ali uma cultura de terra firme, de caçadores que tinham mais intimidade com a mata do que com os rios, de povos que não usavam canoas, que só cruzavam os rios na época da seca, limitando sua ocupação territorial na época das chuvas.
A maioria desses índios usava o caucho, um elastômero retirado da árvore do mesmo nome, para criar artefatos. A descoberta pelo homem branco dessa matéria-prima modificou radicalmente a vida dos índios. Os caucheiros utilizaram grupos contatados, principalmente os ashanincas, para expulsar e matar todos os grupos que encontravam.
Pelo lado brasileiro, as empresas seringalistas subiam os rios se estabelecendo, expulsando e matando os índios. Essa compressão das empresas caucheiras e seringalistas foi um dos processos mais brutais de extermínio de povos de que se tem notícia.
Então como é possível que ainda hoje existam povos isolados nessa região? Um conjunto de fatores pode explicar essa condição rara. Um dos mais significativos é que, após a 2ª Guerra, o preço da borracha caiu ano após ano, até que no final da década de 60 e na de 70 grande parte dos seringais foi vendida a grupos agropecuários do sul. As fazendas que se instalaram nos altos rios fracassaram. A guerra aos povos isolados termina por falta de financiamento: ninguém fornecia armas nem pagava nada para se matar índios.
Livres das ameaças, eles iniciam a retomada dos territórios. Mas encontram, fixados neles pelas empresas seringalistas, índios que usam roupa, espingarda e moram em casas como os antigos invasores brancos.
Os conflitos entre eles se acirraram em 86 e 87. O fato gerou reivindicação dos caxinauás, do Rio Jordão, e ashanincas, do Envira, à Funai para a criação de uma frente de atração visando a "amansar os brabos" e pôr fim aos conflitos. Em 1988 a Funai criou o Departamento de Índios Isolados, que traçou uma política para esses povos. Essa política se resume a protegê-los em seus territórios, sem nenhum contato. Foi criada a Frente de Atração Rio Jordão - renomeada Frente de Contato Envira e, a partir de 1997, Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira - para pôr fim aos conflitos envolvendo povos isolados e os índios caxinauás, madijás, ashanincas e brancos do entorno. Os atritos foram controlados quando os ashanincas, culinas e caxinauás entenderam que os "parentes brabos" tinham o direito de continuar isolados.
A inovação da nova política indigenista dá-se em função de a Funai regularizar terras para os povos isolados sem contatá-los. Nas cabeceiras do Envira e do Tarauacá existem três terras indígenas para povos isolados: Kampa e Isolados do Envira, Alto Tarauacá e Riozinho do Alto Envira, todas demarcadas e regularizadas, somando 638.384 hectares.
Acompanhei por 22 anos a política de proteção a esses povos e posso dizer que, no mínimo, sua população dobrou. Estão sadios, com os territórios preservados e grandes roçados. Trocaram o machado de pedra, o facão de pupunha e a panela de barro por machado de ferro, facão de ferro e panela de alumínio. Querem algumas de nossas tecnologias, mas se recusam, sabiamente, a ter contato conosco desde o início do século 20, quando viram os primeiros seringueiros.
Infelizmente, nos últimos anos, a Amazônia peruana nas cabeceiras dos Rios Madeira, Purus e Juruá vem sofrendo um processo brutal de ocupação desordenada e ilegal com extração de madeira nobre, garimpo, exploração de petróleo e plantio e refino de coca, todas essas atividades também em terras de índios isolados, existentes no Peru.
Essa ocupação desordenada tem provocado a migração de grupos isolados do Peru para o território brasileiro. A fronteira entre os dois países nada significa para eles. Mas as fronteiras entre eles existem e são por eles reconhecidas. Com certeza um novo reordenamento territorial deve estar ocorrendo. Pacifica ou belicosamente.
Toda a interferência, medo e espanto que os sobrevoos devem ter provocado nos isolados sejam a mim creditados. A iniciativa de mostrar imagens desses povos ao mundo foi na tentativa de sensibilizar a opinião pública para o fato de que eles existem e que o seu futuro, como os últimos povos livres deste planeta, depende de nós. A velha máxima amazônica ainda é bem atual: "Índio brabo que ninguém vê é boato".
José Carlos Meirelles Júnior é sertanista
OESP, 06/02/2011, Alias, p. J7
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