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Diferenças culturais ainda não são garantidas em sala de aula

Carta Maior
04 de Ago de 2004

Diferenças culturais ainda não são garantidas em sala de aula
No Brasil existem 2.079 escolas funcionando nas terras indígenas, para cerca de 150 mil estudantes. Mas muitas delas não utilizam aspectos da cultura indígena no cotidiano escolar, nem possuem material didático específico, direitos garantidos pela Constituição.

Bia Barbosa

É através de um pacto entre poder público, sociedade civil e grupos indígenas que o governo federal pretende elaborar uma nova política nacional de educação indígena. A idéia, anunciada nesta terça-feira (3) durante a 4ª Conferência Estadual de Educação Escolar Indígena de Pernambuco, tem o objetivo central de beneficiar os povos de cerca de 200 etnias, respeitando suas diferenças culturais e lingüísticas. "Queremos oferecer um ensino que resgate não só a cultura de cada povo, mas, sobretudo, a identidade nacional", disse o secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Cultural do Ministério da Educação.

De acordo com o Censo Escolar 2003, realizado pelo Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), existem 2.079 escolas funcionando nas terras indígenas, atendendo aproximadamente 150 mil estudantes. A população indígena está calculada em 550 mil pessoas, falando cerca de 180 línguas diferentes. Cerca de 91% desses alunos estão no ensino fundamental, concentrados nas primeiras séries - apenas 1,5% está no ensino médio. Mais da metade das escolas localiza-se na região Norte, um reflexo da distribuição da população indígena no país. Nelas, trabalham 7 mil professores; 85% deles são indígenas. No entanto, apenas 54% das escolas indígenas do país utilizam aspectos de sua cultura no cotidiano escolar. No que se refere ao uso de materiais didáticos específicos, somente 30,5% das escolas indígenas contam com este recurso.

O direito a uma educação diferenciada, que respeite os valores tradicionais de cada etnia - como o uso das línguas nativas nos processos de aprendizagem - foi garantido aos indígenas na Constituição de 1988. Mas, na prática, muitas das escolas voltadas para os índios ainda conservam as políticas educativas do período colonial. Segundo José Ribamar Bessa Freire, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da UNI-Rio, a própria Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional e a reforma que a seguiu dez anos depois acabaram consolidando esta prática.

"Elas não deram qualquer tratamento específico a esses povos, em conseqüência, mantiveram as práticas escolares que visavam à eliminação das diferenças culturais, porque o então pensamento hegemônico considerava que essas diferenças atentavam conta a unidade e a segurança nacional", escreve Freire no livro Educação Escolar Indígena em Terra Brasilis, lançado recentemente pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pelo Observatório da Cidadania, durante do Fórum Mundial de Educação. Na obra, que faz um balanço histórico da relação dos povos indígenas com a instituição escola, Freire afirma que, sob a responsabilidade da Funai (Fundação Nacional do Índio), a educação indígena continuou tendo o objetivo de assimilação e integração que prevalecia desde o descobrimento do país.

Escola para civilizar
As sociedades indígenas que foram encontradas pelos portugueses desconheciam a instituição escola. Conheciam, no entanto, formas próprias de reprodução de saberes desenvolvidas por meio da tradição oral, transmitidas no intercâmbio cotidiano em seus mais de 1.200 idiomas. A aprendizagem se dava em todo momento e em qualquer lugar. Isso fazia de qualquer indivíduo um agente de educação. Com as características que conhecemos, a escola só surgiu na vida dos indígenas por iniciativa dos missionários jesuítas, na segunda metade do século XVI. As primeiras instituídas, centradas na catequese, ignoraram os processos educativos indígenas e executaram uma política destinada a desarticular a identidade das etnias.

"Ao não encontrarem vestígios dessas instituições nas sociedade indígenas, concluíram que tais sociedades eram carentes de práticas educativas consistentes e, portanto, de concepções pedagógicas que as norteassem, legando esse preconceito etnocêntrico à sociedade brasileira, que o internalizou até os dias atuais", afirma Freire.

O ensino nas escolas "de ler, escrever e contar" no século XVI era ministrado exclusivamente por missionários e os saberes indígenas e as concepções pedagógicas de cada grupo e as diversas línguas faladas por cada etnia ficaram sempre excluídas da sala de aula, o que pode ter contribuído para a extinção de mais de mil idiomas nativos. Durante todo o período colonial, os povos indígenas foram submetidos a um choque cultural. A documentação registra fugas constantes e freqüentes de indígenas, aprisionados, amarrados e forçados a voltar para a escola.

A desvalorização da cultura indígena e de seus processos educativos, que perdurou por quase cinco séculos, só começou a ser reformulada recentemente. No Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pelo Congresso no ano 2000, é assegurada autonomia às escolas indígenas no que se refere ao projeto pedagógico e garantida a participação das comunidades nas decisões relativas ao funcionamento dessas instituições. De algo imposto, a criação de escolas em terras indígenas passou então a ser demanda dos próprios povos, interessados em adquirir conhecimento sobre o mundo fora das aldeias. Em várias regiões do país, começaram a surgir projetos educacionais específicos à realidade sociocultural e histórica desses povos, respeitando a diferenças de línguas e de etnias.

"A demanda por escola está presente em quase todas as comunidades indígenas que mantêm relacionamentos com segmentos da sociedade brasileira. E essa demanda não é por qualquer tipo de escola, mas por uma escola gerida por representantes das comunidades indígenas, que permita acesso a saberes universais e sirva de referência para processos de valorização e resgate cultural", relata Luís Donisete Benzi Grupioni, antropólogo do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo, que também escreve no livro Educação Escolar Indígena em Terra Brasilis.

A professora Elisa Urbano Ramos, do povo pancararu, cuja aldeia é localizada no município de Tacaratu (PE), explica que, no seu estado, o modelo de gestão das escolas indígenas é definido por cada povo. "O primeiro passo é desconstruir os modelos autoritários impostos pelas secretarias de educação, que não respeitam o modelo de organização social indígena. São modelos elaborados com a participação da comunidade, que respeitam a cultura e o jeito de ser de cada povo. A escola é o reflexo dessa organização social", diz Elisa.

Organização docente
Para trabalhar nessas escolas, professores indígenas têm sido formados a partir de diferentes programas que hoje já foram assumidos, em muitos estados, pelas secretarias estaduais de educação. No Parque Indígena do Xingu, professores indígenas têm um programa de formação específico, criado e gerido em parceria entre a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix) e o Instituto Socioambiental. Este programa de formação já titulou profissionais, que estão trabalhando em escolas com um projeto político-pedagógico elaborado por eles e suas comunidades.

O próprio aumento do número de docentes indígenas no país levou à sua organização. Grande parte das 183 organizações indígenas que foram criadas entre 1980 e 2000 na região amazônica é de associações de docentes. Elas tiveram uma atuação decisiva nos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte e foram alguns dos atores responsáveis por garantir às comunidades a utilização, no ensino fundamental regular, de suas línguas maternas e de processos próprios de aprendizagem.

Segundo Grupioni, a questão da educação está na agenda do movimento indígena contemporâneo e é vista como um tema central para a conquista da autonomia indígena. "Nesse novo cenário, as associações de docentes indígenas têm surgido e cumprido um importante papel na organização da categoria, na reivindicação perante diferentes órgãos de governo, na proposição de encontros, seminários e estudos de temas relacionados à prática escolar, na formulação de princípios e de metas a serem conquistadas", afirma o antropólogo.

Na reserva Raposa Serra do Sol, onde a luta pela educação indígena começou em 1985, a Associação dos Professores Indígenas de Roraima já garantiu a formação de 400 docentes através do programa Magistério Indígena. "Em 87, criamos três escolas com o apoio das lideranças indígenas. O Estado não ligava para esta questão; os professores foram perseguidos. Conseguimos criar a Associação com o apoio do CIMI [Conselho Indigenista Missionário]. Tomamos a bandeira da diversidade cultural, de ensinar a língua macuxi. Nossas culturas estavam sendo esquecidas. Agora, nosso currículo ensina também agricultura, pecuária, marcenaria, medicina tradicional, e quem escolhe a direção da escola é a comunidade. Já temos índios no ensino médio e superior, mas ainda não temos o apoio total do Estado", lamenta Leonardo Pereira da Silva, do povo macuxi, professor indígena na reserva Raposa Serra do Sol.

Apesar dos avanços conquistados nos últimos anos em termos do direito a uma educação intercultural, muito ainda precisa ser construído em termos de prática de sala de aula, de formação de professores, de produção de materiais para que as escolas em terras indígenas ofereçam uma educação diferenciada de qualidade. "È momento de refletir sobre o modo como os avanços alcançados na esfera federal poderão encontrar detalhamento nas esferas estaduais, potencializando as oportunidades dos povos indígenas a ter uma escola e uma educação que atendam a seus interesses e aspirações", aponta Grupioni.

"A falta de vontade política continua sendo o principal impedimento para que os direitos conquistados na legislação se efetivem. Na prática, deparamo-nos ainda com uma escola distante da comunidade, sem recursos pedagógicos e didáticos além de lousa e giz, monolíngue no idioma nacional, menosprezando os conhecimentos nativos em prol da difusão de informações contidas em livros didáticos descontextualizados e incompreendidos por boa parcela do professorado indígena", conclui.

Valmir Leite, AGCom, Prefeitura Municipal de Dourados (MS).

Carta Maior, 04/08/2004

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