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Diário: a terra dos canibais

Revista Época
Autor: Juliana Arini
24 de Fev de 2007

Depois de cinco horas de vôo e seiscentos quilômetros de estrada, finalmente conseguimos chegar a Cacoal, em Rondônia. A idéia era visitar o nordeste do estado para fazer uma matéria sobre os índios cintas-largas, que vivem sobre a maior jazida de diamantes do Brasil. De tradição guerreira, os cintas-largas são um dos povos mais temidos da Amazônia. Ficaram isolados durante séculos na região entre os rios Roosevelt e Aripuanã. Vivem em uma porção ainda intacta da Floresta Amazônia, onde mosquitos porvinhas e mutucas tiram sangue dos visitantes desavisados. Acusados de serem os responsáveis pela chacina de 29 garimpeiros, em 2004, os cintas-largas já foram alvo de inúmeras matérias negativas. Por isso, e com toda razão, detestam jornalistas.

Apesar da resistência de falaram com a imprensa, havia conseguido que alguns caciques aceitassem conversar sobre o assunto mais repelido na região, o garimpo ilegal de diamantes do igarapé Laje. Quando chegamos a Cacoal, descobri que meu contato, o cacique Pio, estava preso na aldeia, depois de um acidente com o carro da Fundação Nacional de Saúde - Funasa. Uma antropóloga que encontrei em Porto Velho me falou sobre outra liderança que eu deveria procurar, o índio João Bravo, um dos caciques mais influentes da região.

À esquerda, o cacique João Bravo e a índia Paulina

A primeira sensação de estar entrando em outro mundo começou em Riozinho, cidade próxima a Cacoal, onde vários cintas-largas compraram casas. O povoado é uma espécie de aldeia urbana, na qual os índios ficam quando precisam procurar tratamento médico, receber aposentadorias ou comprar roupas e mantimentos. Os funcionários da Funai me contaram que o cacique João Bravo cinta-larga possuía uma casa em Riozinho e tive a ingênua idéia de ir visitá-lo para conversar. Como já tinha encontrado com seus funcionários - uma cozinheira e um vigia - resolvi dar dois passos além da porta de entrada da casa, para ver quem estava na varanda. Péssima idéia. O cacique estava sentado à mesa, de costas para nós, sem camisa e de cara fechada. Era corpulento e baixo, como a grande maioria dos cintas-largas. Pelo seu semblante irritado, eu percebi que não éramos bem-vindos. Quando tentei iniciar algum tipo de conversa e contar que éramos jornalistas, ele levantou e começou a falar em voz alta que tínhamos invadido a casa. Discursou durante uma meia hora, sempre irritado com a nossa presença. Chegou a falar que poderia nos manter presos ali, para nos ensinar a respeitar a casa dos índios. Falou de histórias de canibalismo e dos ilustres ex-prisioneiros dele, como o delegado da Polícia Federal, Mauro Spósito. Também pegou o arco-e-flecha para mostrar as pontas bem feitas de suas armas.

Permanecemos calados, eu e o fotógrafo Maurilo Clareto, apenas respondendo às perguntas do índio. Apesar do tom áspero, não existia brutalidade em seus gestos. João Bravo intercalava algumas risadas, tentando puxar conversa entre uma ameaça e uma reclamação. Percebi que ele também estava curioso em saber algo sobre nós. Em alguns momentos pensei que estávamos participando de algum tipo de encenação indígena. Depois entendi que os limites do território daquele índio iam bem além do que eu imaginava.

Apesar do susto, acredito que consegui fazer algum tipo de amizade com o João Bravo, que me presenteou com um colar de tucum, um coquinho da Amazônia. Como os índios estavam ilhados na aldeia, por causa da batida de carro, tínhamos que encontrar outra forma de entrar na reserva. Não havia funcionários da Funai em Cacoal para conceder a autorização que a Polícia Federal exige para entrar na terra índígena. A área está sobre forte fiscalização desde o massacre dos garimpeiros, em 2004. A única alternativa seria ir para a área apenas com os índios, sem nenhum tipo de ressalva oficial.

Mas, apesar de todos os riscos, quando surgiu o convite do João Bravo para irmos conhecer seu território, não pensei duas vezes em aceitar a proposta. A viagem começou em um micro-ônibus com mais de 50 índios, entre crianças, velhos e jovens cintas-largas. Sacos de arroz, carne congelada, malas, redes e todo tipo de bagagem estavam espalhados pelo chão do veículo. João Bravo seguia na frente, acompanhado de uma das suas cinco esposas, em uma camionete Toyota. Foram 200 apertados quilômetros sacolejando no micro-ônibus com os índios. Um jovem cinta-larga se sentou ao meu lado e começou a contar sobre a vida deles na aldeia. As crianças, curiosas com nossa presença, brincavam entre a bagunça que se espalhava pelos bancos. Por alguns momentos cheguei até a esquecer de todos os risco que corríamos ali. Até que tivemos que cruzar a barreira da Polícia Federal. "Tem branco aí"?, escutei a fiscal do posto policial perguntar. "Não, só índio", brandou o motorista. Foi quando passamos pela barreira escondidos pela bagunça e dezenas de índios que riam muito de nossa situação.

Quando chegamos na aldeia tive a sensação de estar em um pequeno povoado, e não em um território indígena. Na minha romântica concepção todas as aldeias tinham casas cobertas por palha. Mas, na área dos cintas-largas só existiam casas de alvenaria e madeira, sem nenhuma maloca. Apesar do visual urbano, os índios da Aldeia Tenente Marques quase não falam português. João Bravo nos deixou hospedados na casa de uma velha índia, que também só fala tupi mondé. A índia respondia sempre com um tímido sorriso às minhas tentativas de conversa. Um filhote de quati com uma coleira no pescoço e uma bomba de veneno mata-mata completavam o cenário do quarto onde eu teria que armar a minha rede.

Pela manhã, o cacique, bem mais amistoso e descontraído, decidiu mostrar todas as benfeitorias que fez para seu povo com o dinheiro dos diamantes. Construiu casas de madeira - todas pintadas de verde e amarelo -, comprou mil cabeças de gado, fez uma pequena hidrelétrica para gerar energia e colocou postes de luz entre as ruelas. As crianças passavam o dia tentando caçar passarinhos e pequenos lagartos. Foi quando percebi o quanto era inimaginável existir aquele lugar cheio de antenas parabólicas em pleno coração da Amazônia. E o melhor, habitado apenas por índios.
O índio Romário

Apesar do ataque das muriçocas, na aldeia foi mais fácil conversar sobre o garimpo de diamantes, assunto até então proibido. Os índios contavam como era a relação com os garimpeiros - alguns até camaradas - , reclamavam da presença da Polícia Federal nos limites do território e das dificuldades de lidar com dinheiro. "Homem branco tem muita malícia e pouca palavra", reclamava João Bravo. Ao falar sobre o massacre de 2004, um sentimento de reserva e tristeza tomava conta dos índios. "Foi legítima defesa. Tinhamos tirado os garimpeiros de lá e entregado para a polícia", contou um dos cunhados do João Bravo. "Depois eles voltaram e começaram a zombar de nós", afirmou o índio.

Ao ser questionado sobre a história da chacina, João Bravo, um dos pouco que não está acusado de participar do crime, explicou de forma muito simples o que aconteceu. "Foi matar ou morrer", disse. Foi nesse momento que o índio decidiu contar todas as chacinas e mortes que aconteceram com seu povo bem antes de existir garimpo na região, durante os anos 60. Entre as histórias mais incríveis estavam a de canibalismo. A princípio não levei a sério, achei que havia um certo exagero do índio. Mas, quando cheguei a São Paulo e li uma tese de doutorado sobre os cintas-largas, levei um enorme susto, ao ver descrito exatamente o mesmo episódio que o cacique me contou. Era a morte de um funcionário do posto telegráfico de Vilhena, durante os anos 60. De acordo com as descrições de João Bravo, e da tese de doutorado, a morte aconteceu após desentendimentos entre os índios e o marechal Cândido Rondon, desbravador da Amazônia e criador dos postos telegráficos. Ao colocar índios nhambiquaras, históricos inimigos dos cintas-largas, para trabalhar no posto telegráfico, Rondon despertou a ira dos índios, que revidaram com a invasão e morte de um dos telegrafistas. No melhor estilo cinta-larga de demonstrar que não considera o inimigo como um igual, os índios devoraram o rapaz após a morte.

Depois de algum tempo de conversa, João Bravo resolveu me interrogar sobre minha profissão e perguntou o quanto eu ganhava. Meio constrangida, respondi com sinceridade. "Só isso?", exclamou o índio. "Mas não é nem um chimbilzinho"! Ao constatar que eu não ganhava nem o que seria um diamante do mais barato, o cacique resolveu tentar me ajudar. Me mostrou o posto de saúde fechado e perguntou se eu não gostaria de morar na aldeia e trabalhar como enfermeira para os cintas-largas.

Além de ter conhecido um legítimo, e muito simpático, canibal. Durante a visita a Rondônia, também encontrei uma família de índios que viveram por 24 anos isoladas na floresta. Foram quase três décadas sem contato algum com outro ser humano. Durante todo esse período, a índia Paulínia e seus dois filhos Zico e Romário (nas fotos) viveram da caça e de pequenas roças de mandioca. A índia ficou isolada depois que uma epidemia de gripe assolou sua aldeia e vitimou seu marido. Depois disso os índios decidiram matar seu filho mais novo, Romário, que ainda era um bebê, para que ela pudesse se casar novamente. Revoltada com a proposta de infanticídio, a índia fugiu para a floresta com as duas crianças. A família foi encontrada em 1998, quando um trator esteira entrou na terra indígena para saquear madeira. O índio Zico já era um homem e ficou irritado com o barulho do veículo. Pulou na frente do trator e começou a brandar frases em tupi mondé. O motorista assustado fugiu pela floresta. Os três índios voltaram ao convívio de seus familiares, mas continuam sem saber falar português. Um dos filhos - Zico - faleceu depois de uma gripe. O outro filho, Romário, também está doente com uma grave alteração no pulmão. A mãe e o filho moram hoje em Riozinho, um distrito de Cacoal, e passam o dia fazendo artesanatos nos fundos de uma associação indígena abandonada. As únicas palavras que Romário pronunciou em uma tentativa de conversa foram: "Essa é minha mãe". A índia não demonstrou grandes interesses na nossa presença. Ao encontrá-los, tive a nítida sensação de que viviam em um outro tempo. Quando ainda não existiam garimpos, diamantes e nem os homens brancos.

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