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Diário conta detalhes de megaoperação do Ibama no Parque Juruena

Globo Amazônia - www.globoamazonia.com
16 de Set de 2008

Noites em claro, picadas de mosquitos, carros encalhados, tensão. Assim é o dia-a-dia da equipe de fiscalização do Ibama na Operação Ponta de Lança, deflagrada no último dia 8, que combate o desmatamento ilegal no Parque Nacional Juruena, no norte do Mato Grosso.

Os primeiros dias da operação foram registrados em um diário pelo coordenador-geral de Fiscalização Ambiental do Ibama, Luciano de Meneses Evaristo. Em dois dias, a equipe de 45 homens flagrou garimpos clandestinos, caminhões sem documentação carregados de madeira, palmito retirado ilegalmente, tráfico de animais e um rebanho de bois dentro do parque nacional.

Apesar de ações como essa serem realizadas com freqüência pelo Ibama, o Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, admitiu, em entrevista ao Globo Amazônia , que elas ainda são insuficientes. "Deveríamos ter o dobro disso", disse.

Confira, abaixo, o registro da operação feito por Luciano Evaristo:

Alta Floresta, Mato Grosso, 8 de setembro, quase uma hora da manhã. Quarenta e dois agentes ambientais federais e três policiais rodoviários federais se reúnem no escritório do Ibama. Nasce a operação Ponta de Lança, primeira grande fiscalização ambiental no Parque Nacional Juruena. O Parque é a 3ª maior Unidade de Conservação brasileira criada há dois anos, com área de 1,9 milhões de hectares no norte do estado. O Ibama dá irrestrito apoio à ação de combate a ilícitos ambientais idealizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio).

Alta Floresta está imersa em calmaria, como é típico do interior, mas na unidade do Ibama o clima é de apreensão. Os coordenadores repassam os últimos detalhes do plano concebido por ações precursoras de inteligência e levado a cabo pela direção do parque com o apoio de especialistas do Ibama. Enquanto isso, agentes e viaturas permanecem concentrados na área externa. Aguardam instruções, pois até o momento nada lhes fora revelado em razão do sigilo determinado pela coordenação.

Naquela madrugada, faces já marcadas pelo tempo, carregadas pela experiência, se misturam com as dos jovens egressos dos últimos concursos. Estão presentes agentes do Ibama e do ICMBio de Cuiabá, Sinop e Alta Floresta, e agentes ambientais de outros estados que atuam na operação Arco de Fogo na região. Quatro agentes do Grupo Especial de Fiscalização (GEF) vieram de Brasília para apoiar os trabalhos.

Em meio aos agentes ambientais federais, circula com desenvoltura o servidor do ICMBio, alcunhado de Bin Laden, encarregado de atuar no apoio logístico da operação. Bin Laden é uma figura atípica. Simplicidade, bom humor e a grande disposição para o trabalho são marcantes na sua personalidade. É um especialista em mecânica de caminhonetes, caminhões, tratores. É o verdadeiro "Severino" da equipe. Pra tudo ele dava um jeito.

'No caminho, vários caminhões de madeira serrada dormem nas reentrâncias da estrada.'

Duas horas da madrugada. As equipes foram divididas. Os coordenadores de cada uma recebem envelopes com os alvos determinados. O comboio de 15 viaturas do Ibama e uma da PRF [Polícia Rodoviária Federal] parte aos poucos, para não chamar atenção. O encontro é em Nova Bandeirantes (MT). Bin Laden e o seu "veículo oficina" saem por último. A estrada é esburacada e poeirenta. No caminho, vários caminhões de madeira serrada dormem nas reentrâncias da estrada. Ao meu lado, o agente conhecido como Piauí dirige a viatura com olhos arregalados, porém firmes ao combater o sono que certamente se abatia sobre todas as equipes.

Nova Bandeirantes, 7 horas. As equipes se concentram em um posto de gasolina para o último abastecimento antes do ataque aos alvos do Parna Juruena. A cidade entra em polvorosa. Madeireiros acham que o comboio vai atacar as serrarias. Motoqueiros vigiam o comboio para avisar os patrões. Abastecidos os veículos, o comboio parte em direção ao parque. A velocidade é controlada, pois a entrada no local está planejada para depois do ataque da equipe aérea ao ponto de corte seletivo na Fazenda Salomão, previsto para 13h20. O comboio pára no limite do parque e aguarda a incursão aérea. Não há qualquer tipo de comunicação no local, exceto os rádios portáteis das equipes.

Já passa das 13h30 e não há sinal do helicóptero do Ibama. A coordenação determina o avanço do comboio. Nesse momento, aparece um caminhão Volvo carregado de palanques de itaúba e escoltado por uma Toyota Bandeirante. A Toyota não tem placas, nem documentos, e o caminhão não tem guia para a madeira. Trata-se de extração ilegal de madeira no interior do Parque Nacional efetuada pelo gerente da Fazenda Salomão. Os veículos e a carga são apreendidos e compelidos a voltar em direção à fazenda.

No caminho, um garimpeiro com uma motosserra é detido e forçado a voltar. O comboio avança e repentinamente é paralisado. Uma viatura cai no vão de uma ponte. Os agentes se unem para resgatar o veículo. O imprevisto barra o avanço do comboio em direção aos alvos e compromete os horários planejados. Servidores novos e antigos se empenham e depois de várias tentativas desobstruem o caminho.

O comboio chega ao segundo ponto de concentração no trevo que dá acesso ao garimpo e às fazendas Salomão e Santo Antônio. Veículos são abordados e obrigados a retornar. Ninguém pode passar pelas equipes. Nesse ponto, inicia-se o ataque. As equipes de Cuiabá e de Sinop investem sobre o garimpo da Clareira. Equipes de Brasília, Cuiabá e Alta Floresta avançam sobre as derrubadas nas fazendas.

'Uma viatura cai no vão de uma ponte. Os agentes se unem para resgatar o veículo.'

Nas fazendas, é flagrante o desmatamento ilegal. Várias pequenas esplanadas são avistadas ao longo da estrada. Na Fazenda Salomão, o GEF já havia chegado de helicóptero e dominado a situação. A equipe comandada pelo chefe da Fiscalização de Cuiabá aborda outra fazenda limítrofe à Salomão e constata a presença de cerca de 600 bois sobre desmatamento recente e a construção de curral com madeiras extraídas ilegalmente do parque. A área foi embargada e autuada em cerca de R$ 1 milhão. A confecção do curral foi interrompida e as madeiras foram apreendidas.

Por outro lado, a equipe composta pelos coordenadores-gerais de Fiscalização do Ibama e do ICMBio, com o suporte do coordenador do Ibama da Arco de Fogo em Alta Floresta, a quem chamaremos de "R", do agente Piauí e ainda do agente "faz tudo" Bin Laden, deteve o gerente da Fazenda Salomão e passou a inspecionar os ilícitos no local. Um trator amarelo foi encontrado numa abertura ilegal de estrada. Estava quebrado. Em seguida, a equipe penetrou em um carreador (estrada) e se deparou com outro corte seletivo não detectado pela inteligência. Maçarandubas centenárias estavam marcadas pela técnica do anelamento, na qual a árvore tem a sua casca circuncidada e passa a morrer em lenta agonia até o abate final pela motosserra. O infrator alegou que a técnica é empregada para diminuir os ocos e deixar a madeira mais maciça.

'Maçarandubas centenárias estavam marcadas pela técnica do anelamento, na qual a árvore tem a sua casca circuncidada e passa a morrer em lenta agonia até o abate final pela motosserra.'

A mesma equipe segue em direção ao rio São João, onde flagra um caminhão Mercedes carregado com mais de 3 mil vidros de palmito em conserva. O caminhão estava quebrado. Bin Laden, com seu faro de perdigueiro, descobre um carreador. "É o carreador do palmito", diz. "No final dele tem um acampamento", completa. Andamos cerca de 2 km no carreador em meio a açaizeiros destruídos e chegamos a um acampamento deserto. Havia um tonel de 200 litros de diesel. Bin Laden estava certo. Ele retornou pelo carreador e trouxe a viatura com o coordenador de Fiscalização do ICMBio.

Passamos a checar toda a área em volta. O sol se aproxima do crepúsculo, quando o chefe da Fiscalização do ICMBio deteve na margem do rio um cidadão que viera verificar a nossa movimentação. Ele fazia parte do grupo de palmiteiros e apontou para um outro acampamento na outra margem do rio São João. Atravessei o rio com "R", o palmiteiro e o chefe de Fiscalização do ICMBio. Do lado de lá do rio, encontramos outro palmiteiro que tomava banho. Este foi rendido e informou haver outros oito acampados acima. O barranco era íngreme, com varas na horizontal para auxiliar a subida.

Olhei fixamente para "R" e ele exclamou: "Vamos encarar, não dá para esperar reforço, os caras podem fugir!" Pensei: "O cara está louco!" Mas não, "R" é um herói como demonstrou a seguir. Partiu na frente pelo barranco. Rendeu e revistou o 1o, dominou o 2o e adentrou na mata para perseguir outros que fugiram. Havia quatro barracos: três de alojamento e um que continha a estrutura para cozimento e engarrafamento de palmito de açaí. Fiquei no acampamento para controlar os detidos junto com o chefe da fiscalização do ICMBio, que passou em revista todo o acampamento. Uma espingarda calibre 20 com munição e várias facas foram apreendidas.

Já de noite, pedi reforço do GEF que nos substituiu, mas "R" ficou com eles. Passaram a noite no meio da mata, acompanhados de piuns e carapanãs. Detiveram o restante do grupo de palmiteiros e aprenderam o trator que transportava o produto ilegal. A noite foi longa no revezamento da custódia dos detidos. Os agentes se revezavam dormindo em mesas de madeira.

Retornamos à Fazenda Salomão. Encontrei os heróis que atacaram o garimpo. Um grande número de infratores estava detido no local para os procedimentos administrativos. Isso mesmo, altas horas da noite, os agentes do Ibama/ICMBio agora faziam as autuações e apreensões. Me chamou a atenção o chefe da equipe do garimpo, que vamos chamar de "F". Trata-se de um agente ambiental federal de Alta Floresta. Sério, competente e que conjuga muito bem o binômio educação/rigor. Durante todo o procedimento tomou decisões firmes e serenas. Comandou a missão mais perigosa. Segundo os levantamentos, 50 pessoas estavam no local do garimpo, que era disperso. De repente, Bin Laden chega. Ele pilota o trator que estava quebrado no desmatamento.

Já é quase meia noite. Os guerreiros do meio ambiente se recolhem ao descanso. Vejo vários colegas dormindo no chão do alpendre da fazenda. Observo alguns dormindo nas carrocerias abertas das viaturas. Outros em pequenas barracas sobre pranchas de madeira. Ainda outros dormindo dentro dos veículos.

O dia começa a clarear, são 5 horas da manhã. As equipes começam a se movimentar. A equipe do garimpo retorna ao local para a retirada dos motores. A nossa equipe permanece para aguardar a possível visita do ministro do Meio Ambiente. A equipe que pernoitou na mata com os palmiteiros permanece no local em alerta com a missão de desmontar a fábrica ilegal de palmito.

A nossa equipe aguarda até a hora prevista para a chegada do ministro. Algo aconteceu e a comitiva não chegou. A equipe então é dividida para reforçar o garimpo e continuar a bater os carreadores. A equipe com os coordenadores de Fiscalização do Ibama e do ICMBio descobrem um desmatamento ilegal para a abertura de estrada de 15 metros de largura por 15 quilômetros de extensão. No final da estrada, a derrubada continua. A equipe percorre a pé a mata ao tentar localizar o trator de esteira, acompanhada pelo ataque de mosquitos, formigas de fogo e carrapatos.

Não logrando êxito, a equipe retorna para a Fazenda Salomão. No local, começam a chegar as equipes do garimpo com oito motores apreendidos. Os agentes estão exaustos. Observo o agente "E" da coordenação-Geral de Fiscalização do Ibama que presta apoio à operação Arco de Fogo em Sinop. Seu rosto está queimado e repleto de calombos de picadas de mosquitos. O mesmo se dá com o Chefe da Dicof do Ibama/MT e com todos os integrantes da equipe do garimpo. As equipes do Ibama/ICMBio retiraram todos os motores do garimpo da clareira em meio à água contaminada de mercúrio, mosquitos e sob o sol implacável da Amazônia. São verdadeiros heróis que defenderam o Parque Juruena. O garimpo da clareira pereceu diante da valentia dos agentes ambientais federais.

A operação Ponta de Lança chega ao fim na fazenda Salomão. A nossa equipe se desloca para apoiar a retirada do acampamento dos palmiteiros. Na beira do rio São João, Bin Laden conserta o eixo quebrado do caminhão carregado de palmito, faz ligação direta e conduz o veículo para a Fazenda Salomão. Equipes de Juína/MT chegam para apoio. O acampamento é retirado. No local, vejo o chefe de operações da Coordenação-Geral de Fiscalização do Ibama reunido com os palmiteiros. Sua voz grave repreende os infratores e adverte para que não voltem ao Parque.

Já passa das 23 horas. As últimas equipes partem de volta a Nova Bandeirantes. A poeira deu lugar à chuva. Troncos caem na estrada e são cortados pelas motosserras dos agentes ambientais. O chefe da Fiscalização do ICMBio dirige a viatura da nossa equipe. Todos estamos exaustos. Em certo momento, vejo a viatura deslizar à esquerda, dei alarme e o chefe do ICMBio corrigiu à tempo. Chegamos em Nova Bandeirantes às 3 horas da manhã.

A última equipe deixa a Fazenda Salomão. Bin Laden dirige um caminhão velho apreendido com a carga de palmito e consertado por ele no mato. Na carroceria, os palmiteiros. É escoltado pelo agente Piauí. O caminhão desliza perigosamente na estrada castigada pela chuva. Na estrada, Bin Laden enxerga uma caixa de papelão e pára. Dentro dela encontra um filhote de arara ainda emplumando. O traficante fugiu. As mãos sujas de graxa de Bin Laden envolvem a pequena arara que passou a ser a sua companheira no calor da boléia do caminhão.

Enfim, todos chegamos de volta a Nova Bandeirantes. Os três hotéis da cidade estão completamente lotados com os agentes ambientais federais. No meu hotel, vejo agentes dormindo em colchões no refeitório, inclusive debaixo da mesa. Vejo um agente dormindo num colchão no chão no corredor dos quartos. Vejo ao meu lado três agentes que dormem em colchões no chão na recepção do hotel. Bin Laden chegou de manhã. Piauí apenas tomou um banho e retornou conosco dirigindo a Alta Floresta. O resto da equipe já despertou e está no briefing da segunda parte da operação. A Operação Ponta de Lança continua... em defesa do Parque Nacional Juruena, em defesa do patrimônio ambiental da sociedade brasileira.

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