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Dez meses apos crime, Anapu vive tensao pior

OESP, Nacional, p.A12-A13
09 de Dez de 2005

Dez meses após crime, Anapu vive tensão pior
Padre ameaçado de morte diz que governo federal prometeu ações, mas não cumpriu
Roldão Arruda Enviado Especial BELÉM
A situação de insegurança em Anapu, no sudoeste do Pará, é maior hoje do que na época do assassinato da freira Dorothy Stang, em fevereiro. Quem diz isso é o encarregado da paróquia católica da pequena cidade, padre João Amaro, que trabalhou durante 15 anos com a freira e aparece com destaque em todas as listas de pessoas ameaçadas de morte no Pará - o Estado com os índices mais elevados de violência na zona rural. Na opinião do padre, o governo federal prometeu muitas coisas para a região após o assassinato, mas, decorridos dez meses, fez muito pouco: "Nossa irmã Dorothy morreu defendendo um projeto de desenvolvimento sustentável pertencente ao governo federal, que hoje vira as costas para nós."
O desabafo do padre, um maranhense de 39 anos, ordenado em Anapu, foi feito ontem em Belém, onde se encontra para acompanhar, a partir de hoje, o julgamento dos dois homens acusados de serem os assassinos da religiosa - Rayfan das Neves Sales, o Fogoió, e Clodoaldo Carlos Batista, o Eduardo. Ele disse que, apesar da presença do Exército e de agentes da Polícia Federal na região, o clima de tensão em torno da disputa pela terra ainda persiste.
Para o padre, a situação seria melhor se o governo tivesse se empenhado mais no trabalho de demarcação de terras por sistemas georreferenciados e combatido de maneira mais eficaz o comércio de madeira ilegal. "Muitos madeireiros continuam trabalhando ilegalmente. As últimas apreensões da madeira ilegal ocorreram quando a Dorothy ainda estava viva. Se o governo não assumir um compromisso mais firme com os trabalhadores, a violência irá aumentar ainda mais."
O padre também citou como sinal de desatenção do governo o fato de só agora estar liberando créditos para as famílias do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança - um dos que eram defendidos pela irmã Dorothy. "Isso mostra uma certa iniciativa, mas muito tímida. Afinal liberaram créditos para 40 famílias, num conjunto de 600 famílias que fazem parte do projeto!"
Ele também disse que os recursos para a construção de uma estrada prometida para favorecer os projetos da região demoraram tanto para ser liberados que só vão chegar agora, quando começa o período de chuvas. "Se começarem a construir, vão jogar dinheiro fora. A minha indignação é com a demora no cumprimento das promessas. Dizem que tem dinheiro, mas onde ele está?"
'KIT MASSACRE'
O responsável pela Paróquia Santa Luzia não é o único quadro da Igreja Católica a investir contra o governo por causa da situação no Pará. Também presente em Belém para acompanhar o julgamento, o frade dominicano Xavier Plassat, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e conhecido internacionalmente por sua ação no combate ao trabalho escravo no País, disse ontem que os projetos e as promessas do governo são bons. Mas ponderou: "O problema está na execução. Falta cumprir o que prometem."
Segundo frei Xavier, o governo mostrou agilidade e eficiência pra identificar e prender os assassinos de Dorothy - os dois executores e os três fazendeiros que teriam pago para ela ser morta. "O problema é saber se foi uma atitude excepcional, atípica, por causa da repercussão internacional, ou se isso significa uma mudança de atitude. O que está claro é que, quando querem dá para fazer Justiça."
Repete-se cada vez nos meios religiosos uma expressão cunhada pelo economista católico Plínio de Arruda Sampaio, segundo o qual o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria recorrido no caso da irmã americana ao chamado "kit massacre" - composto por declarações indignadas das autoridades federais, envio de ministros à região, promessas de punição e anúncio de factóides. O maior factóide de Anapu teria sido o anúncio da criação de cinco reservas na chamada Terra do Meio, num total de 8 milhões de quilômetros quadrados. Segundo Antonio Canuto, secretário da CPT, o governo não tem condições de proteger essas reservas, a menos que faça um amplo processo de reforma agrária na região.

Representante da ONU ouve relatos de entidades sobre violência na região
Na quarta-feira, a advogada paquistanesa Hina Jilani esteve em Marabá, no sudoeste do Pará, a 438 quilômetros da capital. Lá, reuniu-se durante seis horas com representantes de entidades de defesa dos direitos humanos, ouvindo relatos sobre as dificuldades e as ameaças que eles enfrentam. Também ouviu representantes do Judiciário e das polícias civil e militar. Ontem, em Belém, ela fez a mesma coisa. Com o rosto impassível e uma paciência extraordinária, passou três horas numa sala pequena e abafada, no centro da cidade, ouvindo depoimentos e recebendo relatórios.
Ao final, a advogada, que é a representante especial do Secretariado-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Defensores dos Direitos Humanos, disse que ainda é cedo para tirar conclusões, mas já possui fortes indicadores das ameaças que pairam sobre pessoas que atuam no Pará. Também mencionou que freqüentemente a segurança pessoal desses ativistas está sob risco.
Hina está no Brasil a convite do governo, para tomar pé a situação dos defensores dos direitos humanos e das medidas que têm sido tomadas para defendê-los. Ao final da visita, que deve se prolongar até o dia 20, ela redigirá um relatório, para ser entregue ao governo e à ONU. Ontem, ela adiantou que provavelmente recomendará mais atenção à proteção dos ativistas.
Hoje pela manhã, a representante da ONU vai assistir ao início do julgamento dos dois homens acusados de terem assassinado Dorothy Stang, que se dedicava à defesa dos interesses dos trabalhadores rurais da pequena cidade de Anapu.
Antes de entrar na sede do Tribunal de Justiça do Pará, onde ocorrerá o julgamento, ela visitará o acampamento de trabalhadores montado na praça que fica diante do fórum e, mais uma vez, ouvirá relatos de pessoas ameaçadas de morte por fazendeiros e grileiros.
Amanhã, a representante da ONU viaja para Salvador, onde permanecerá durante dois dias. O seu roteiro também inclui as cidades de Recife, Cabrobó, São Paulo, Florianópolis, Campos Novos e, finalmente, Brasília.
A presença da advogada paquistanesa no tribunal do júri é um dos indicadores da atenção que o caso Dorothy tem despertado nas entidades de defesa dos direitos humanos. Em Belém, a Sociedade Paraense de Direitos Humanos aproveitou a semana para realizar encontros e debates sobre o tema.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) decidiu enviar dois representantes para a cidade: os bispos d. Tomás Balduíno, que preside a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e d. Luiz Azcona, responsável pelas pastorais sociais.

Padre defensor dos direitos humanos está ameaçado
Carlos Mendes Especial para o Estado BELÉM
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará deve pedir proteção policial para o padre Edilberto Sena, que tem denunciado pela Rádio Rural de Santarém a grilagem de terras e a expulsão de comunidades inteiras de suas terras por parte de empresários de soja de Mato Grosso. A CPT teme por sua vida e aponta paralelo com a atuação da irmã Dorothy Stang.
Esta semana, Sena recebeu o prêmio José Carlos Castro de Direitos Humanos, da Ordem dos Advogados do Brasil. No ano passado, que ganhou foi Dorothy. O coordenador da CPT no Pará, Jax Pinto, disse ao Estado que o padre ficou feliz com o prêmio, mas preocupado. "Será que depois de 3 meses os sojeiros vão me matar ou vou continuar vivo?", teria comentado.
Segundo Jax, a preocupação com Sena é relevante, dadas as ações violentas de empresários acusados de grilagem contra líderes de trabalhadores rurais e religiosos que apóiam a reforma agrária. Em Santarém, a sindicalista Maria Ivete Vieira, que dirige associação de agricultores, também sofre ameaças de morte por defender a reforma agrária. Ela já denunciou várias vezes as ameaças, mas diz que a polícia as ignorou.

Irmãos de Dorothy chegam a Belém e pedem justiça
Eles vão acompanhar julgamento dos acusados do assassinato da missionária
Roldão Arruda Enviado Especial BELÉM
Preocupados. Mas esperançosos. Esse é o estado de espírito dos dois irmãos da missionária americana Dorothy Stang que chegaram ontem à capital do Pará para acompanhar o julgamento dos dois homens acusados de tê-la assassinado.
Margarida Stang, cujos traços lembram muito os da irmã, não escondeu a preocupação diante do histórico dos casos de impunidade em crimes semelhantes ocorridos no Pará. O cenário do conflito por terras na região foi apresentado a ela por organizações religiosas.
Suavemente, ela acrescentou: "Confio em Deus. Pode ser até que tenhamos aqui um novo começo, o início de uma era de justiça para os pobres."
Margarida, de 72 anos, e o caçula David, de 68, vieram representando toda a família de Dorothy - que tinha 7 irmãos e 51 sobrinhos. Durante a entrevista coletiva que deram ontem em Belém, os dois mostraram-se cautelosos nas referências ao sistema judiciário e ao governo brasileiros e negaram que autoridades americanas tivessem interferido de alguma forma no caso. "Estamos animados por uma grande esperança nos advogados que atuam no caso", disse David, que trazia nas mãos um livro sobre como aprender português em 20 lições.
"Acompanhamos com interesse todas as investigações feitas pela polícia brasileira. Elas são a nossa única referência. Não tivemos contatos com o FBI nem com qualquer outra instância da polícia americana sobre o caso", afirmou ele.
AMEAÇA
Diante da informação de que a defesa dos acusados pelo assassinato irá recorrer à tese da vitimologia, afirmando que Dorothy era uma causadora de confusões na região e acabou provocando sua própria morte, os dois irmãos mostraram tranqüilidade.
"Tenho certeza de que a minha irmã era amada pelas pessoas com quem trabalhava. Uma vez fui visitá-la e fiquei impressionada com a quantidade de pessoas que a rodeavam para conversar, cumprimentar. Eram tantas que nem dava para atender todas", comentou Margarida.
Em outra visita ao Pará, a irmã da religiosa assassinada viu de perto o perigo que a rondava. "Era o mês de setembro de 1986. Saímos para comer num restaurante, em Altamira, quando um fazendeiro se aproximou da mesa onde estávamos e disse para ela: 'Um dia vamos pegar você.' Nunca esqueci", relatou. "Até hoje ainda consigo ver a raiva que ele tinha no rosto. Perguntamos porque estava fazendo aquilo e ele repetiu que um dia iriam pegá-la."

'Eu tenho raiva das pessoas que a mataram'
Durante a entrevista coletiva concedida ontem pelos familiares da freira Dorothy Stang, em Belém, uma das declarações mais duras saiu da boca do irmão David: "Minha irmã era uma grande mulher. Deu a vida pelas pessoas que amava, assim como um pai dá a vida pelos filhos."
Em seguida, David fez um desabafo. "Tenho raiva das pessoas que a mataram. Acho que não acreditam em Deus. Se acreditassem, não teriam matado um mensageiro dele."
Dorothy costumava visitar a sua família nos Estados Unidos a cada três anos, de acordo com a irmã Margarida, e era festejada pelos irmãos e sobrinhos.
"Tenho 8 filhos e 20 netos. Todos gostávamos muito dela", destacou Margarida. "Ela não nos dizia, mas sabíamos que corria risco de vida. Nunca pedimos para sair do Brasil que tanto amava - e que também aprendemos a amar - porque sabíamos que seria o mesmo que pedir a uma mãe para deixar os filhos para trás."
CONGREGAÇÃO
Também vieram dos Estados Unidos, para acompanhar o julgamento dos dois homens acusados pelo crime, duas religiosas da congregação Notre Dame de Namur, à qual pertencia a irmã Dorothy.
Nas audiências do tribunal do júri, que começa hoje em Belém, também estarão presentes religiosas brasileiras, padres e bispos que atuam na defesa da reforma agrária.

OESP, 09/12/2005, p. A12-A13

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