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Devastação de castanhais desafia o Ibama

OESP, Geral, p. A12
09 de Mai de 2004

Devastação de castanhais desafia o Ibama
A produção do fruto no sudeste do Pará caiu de 23 mil toneladas para 1,2 mil

Luiz Maklouf Carvalho
Enviado especial

De janeiro a março, fiscais do Ibama do Pará apreenderam, em 16 flagrantes, entre toras e madeira serrada, 1.140 metros cúbicos de castanheira. Numa média de 5 m3 por unidade, são 228 árvores, quase 3 por dia. Em todo o ano passado, foram 7.896 m3, ou 1.579 árvores (4,3 por dia). "Nunca se apreendeu tanto, mas a derrubada clandestina e criminosa continua a nos desafiar", diz o gerente regional do Ibama, Ademir Martins dos Reis, no cargo desde abril de 2003. Manda a lei que nenhum pé de castanheira pode ser abatido.
Portentosa quando adulta, a Bertholletia excelsa, cujos ouriços guardam a nutritiva e valorizada castanha-do-pará, é, ironicamente, a árvore legalmente mais protegida da Amazônia. No sul e sudeste do Pará, que já teve majestosos castanhais, a destruição do estoque já superou, há muito, os 70%.
Prejuízo socioambiental, incalculável, à parte, o agrônomo da Embrapa Alfredo Homma dá números para a queda da produção da castanha-do-pará na região: as 22 mil toneladas de, por exemplo, 1973, são, hoje, 1,2 mil. A produção de todo o Pará, que já chegou a 38 mil toneladas, de longe a maior do País, é hoje de 5 mil. A queda ocorreu em toda a região amazônica - de 33.400 toneladas na safra de 2000 para 27.300 em 2002, segundo o IBGE. Em 1990, a produção da Região Norte era de 50.500 toneladas.
Ferrovia - Um flagrante de 23 de março mostra a ousadia dos criminosos: a carreta com castanheira serrada - 40 m3 ou oito árvores, cobertos por lona -, preferiu, ao improvável risco de um flagrante nas rodovias, a segurança do trem da Estrada de Ferro Carajás-São Luís, da Companhia Vale do Rio Doce.
Avisaram Reis por meio de um telefonema anônimo e dois dos quatro fiscais que ele tem na sede, em Marabá, foram conferir. O motorista Max Suez de Souza, de 29 anos, mostrou o documento que legalizaria a carga, a Autorização Para Transporte de Produtos Florestais (ATPF). Ali diz que a madeira, saída da R.V. Comércio e Exportação de Madeira, de Eldorado dos Carajás, era da espécie cedrarana, e iria, nos trilhos da Vale, para Lauro Silva da Silveira, em São Luís. Mas era castanheira, cujo corte está terminantemente proibido desde 2002. E a ATPF era falsa ou uma das 22 mil roubadas, há tempos, do Ibama em Belém.
"Há uma quadrilha profissional fabricando ATPFs", diz Reis. A falsificação, que não é grosseira, está presente em parte expressiva das apreensões de madeira, incluindo a castanheira, neste caso um crime duplo, já que nem com a guia ela poderia estar circulando. Nem naquele, nem nos muitos caminhões caindo aos pedaços que a transportam pelas precárias rodovias do sudeste paraense.
Para a área gigantesca que administra - 37 municípios, 281 mil quilômetros quadrados, 1,2 milhões de habitantes -, Reis tem 18 fiscais. Precisaria, por baixo, de uns 50.
Um dos mais antigos, com 11 anos no Ibama da região, é Paulo Sérgio de Souza Almeida. "A devastação, que já era acentuada quando cheguei, só fez piorar", diz. "Nesse ritmo, e com essas deficiências da fiscalização, o desastre será maior."
Belém tinha 15 usinas de beneficiamento do fruto. Sobraram cinco - com a redução estimada de 13 mil empregos, a maioria temporários. Para mantê-las viáveis, empresários estão comprando castanha no Amapá. A exportação gerou, em 2000, US$ 27 milhões. Em 2003, US$ 10,8 milhões.
Europa - Como se não bastasse, o mercado europeu, grande consumidor, está impondo rígidas restrições sanitárias desde 2000, quando, segundo o próprio Ministério da Agricultura, muitos lotes apresentaram alto índice de contaminação pelas aflatoxinas, substâncias tóxicas provenientes de fungos. Elas aparecem quando o manejo, da colheita ao armazenamento, é inadequado. Podem provocar vômitos, alergias e até câncer.
Em março, três inspetores da Comunidade Européia - a sueca Mônica Olsen, o espanhol Rafael Berbejal e o alemão Jens Hoegel - estiveram com o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, e o governador do Pará, Simão Jatene, cobrando maior controle na qualidade.
O mais grave, mesmo, é a continuidade da devastação no sul e sudeste do Pará. "Madeireiras continuam derrubando as castanheiras vivas, e, também as mortas que continuam de pé", diz Homma, estudioso do processo que fez desaparecer da região milhares de exemplares centenários. "A destruição das castanheiras no sudeste paraense está associada às políticas públicas equivocadas."
Com as palavras do governo Lula, no "Plano de ação para a prevenção e controle do desmatamento na Amazônia Legal", concluído em março: são políticas marcadas "pelos padrões históricos de exploração não-sustentável dos recursos naturais da região, muitas vezes relacionados a ciclos econômicos de expansão e colapso e conflitos sociais que têm beneficiado apenas uma minoria."
José Claudio Ribeiro da Silva, de 47 anos, e sua companheira Maria do Espírito Santo da Silva, de 46, fazem parte da maioria não beneficiada. Ela preside a Associação dos Pequenos Produtores do Projeto Agroextrativista Praialta Piranheiras, de Nova Ipixuna, a 50 km de Marabá. A associação administra, desde 97, um dos maiores castanhais que sobraram. As Bertholletia nativas, sempre as mais altas da floresta, espalham-se em 22 mil hectares divididos entre 400 famílias.
Polígono - De Marabá a Nova Ipixuna, pela PA-150, no coração do Polígono dos Castanhais, a paisagem, por quilômetros e quilômetros, é de pastagens. Desde menino criado na fartura da castanha, Zé vai mostrando que aquilo já faz tempo. Pelos pastos, esqueletos e troncos de castanheiras que o fogo matou. Nos 50 km de terra que levam ao castanhal da associação, o cenário é o mesmo.
Na chegada às terras da associação, ainda às voltas com encrencas fundiárias que o Incra não consegue resolver, a maior parte das castanheiras está como Deus quer: frondosas, copadas e já carregando ouriços para a próxima safra.
Nos seus 150 hectares, Zé e Maria colheram, na safra deste ano, de novembro a março, 41 hectolitros ou 4.100 litros de amêndoas com casca. Com o hectolitro a R$ 60,00, R$ 2.460,00 se juntaram à renda da colheita do cupuaçu, outra coleta importante do projeto. Zé tira dois salários mínimos por mês. Tiraria mais - ele e os outros - se agregasse valor ao que a natureza dá. Beneficiando a castanha, por exemplo. "O nosso problema é que o apoio do governo é pouco."
Aliciamento - Além disso, parte das famílias cadastradas - "umas 50", diz Zé - continua a vender a madeira do que deveria ser um santuário. Motoqueiros ligados a madeireiros visitam as famílias, oferecem R$ 50,00 por uma castanheira adulta. No sufoco da pobreza, essas "50" aceitam. As motosserras entram e caminhões levam as toras. Nos flagrantes que já deu, embargando a carga, o casal, petistas que mantêm a esperança em Lula, já foi ameaçado de morte. "Essa aqui é uma das últimas reservas e o governo deveria olhar com carinho", diz Maria.
Reis, ex-vereador do PT, filho de administrador de castanhais na época da fartura, confirma que vários flagrantes já foram dados no Praialta Piranheira, nomes de rios limítrofes. "Como a área é muito grande, e nós, muito poucos, eles continuam a agir." As áreas que despertam maior cobiça, no sul e sudeste do Pará, estão em Santana do Araguaia, São Félix do Xingu, Novo Repartimento, Rondon do Pará e Dom Eliseu.
Sem solução à vista, Reis está dando destinação social à madeirama que os fiscais apreendem. Antes, ela apodrecia no pátio das serrarias ou nas fazendas. Agora, é doada para igrejas, escolas, creches e até estabelecimentos militares. No ano passado, a doação, só em castanheiras, foi de 833 m3, ou 176 árvores. Este ano, já há mais de mil m3 disponíveis.
No mês passado, Laurindo Tedesco, da serraria Belmonte, de Nova Ipixuna, doou sua parte, adquirida quando a portaria 108 - incentivadora do desmatamento, já revogada - legalizava a derrubada de castanheiras mortas.
Apreendidos depois que a portaria caiu, o que tornou a compra ilegal, os 280 m3 de toras, 56 árvores, foram doados para a obra de uma creche municipal.
Assinaram o termo, ao lado do sorriso amarelo do empresário, Reis e o prefeito José Pereira de Almeida, único do PT no sudeste do Pará.
Prefeito, Ibama, projeto agroextrativista e até Tedesco, a nele se acreditar, acham que um basta, ou quase, à destruição depende da vontade política do governo Lula. Esse desejo consta do plano para a Amazônia. Fruto de um grupo de trabalho criado por decreto presidencial em julho, está pronto para ser executado, com verba anunciada para este ano de R$ 349 milhões.
"A grande maioria dos desmatamentos realizados na Amazônia tem ocorrido sem autorização dos órgãos competentes", diz, citando que a área com autorizações do Ibama correspondia em 2000 a 8,7% do total desmatado. Tem tudo a ver com as preocupações de Reis.
No capítulo soluções, a proposta soa bem: "Valorização da floresta para fins de conservação da biodiversidade, manejo florestal de produtos madeireiros e não madeireiros e a prestação de serviços ambientais como um dos alicerces de um novo modelo de desenvolvimento regional, objetivando a qualidade de vida de populações locais com a redução de desigualdades sociais, a competitividade econômica e a sustentabilidade ambiental." As castanheiras do Praialta Piranheira estão pagando pra ver.

OESP, 09/05/2004, Geral, p. A12

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