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Depois do petroleo

FSP, Mais, p.9
03 de Abr de 2005

Maiores países do mundo, entre eles o Brasil, preparam transição para a economia do hidrogênio, a mais eficaz moeda de troca entre fontes limpas e sujas de energia
Depois do petróleo
Salvador Nogueira
Da reportagem local
Em preparação para o que tem o potencial para ser uma grande (senão a maior) transição econômica do século 21, as principais nações do mundo já estão imaginando como vão fazer para obter e utilizar o que, em tese, seria o combustível mais abundante do Universo. Inclusive o Brasil.
Há quinze dias, numa reunião de um comitê internacional de implementação no Rio de Janeiro, o Ministério das Minas e Energia apresentou a primeira versão de seu roteiro para a consolidação da política do hidrogênio no país.
É o primeiro passo para a implementação de estratégias que permitirão deixar a conversa sobre o futuro para trás e começar de fato a executá-lo. A vantagem primordial do hidrogênio como forma de armazenar e utilizar energia (daí a noção de que ele é o combustível do futuro) é que ele está em toda parte. Na verdade, há tanto dele por aí que o mais difícil é encontrá-lo sozinho.
Em compensação, graças a essa onipresença, ele serve como denominador comum entre todas as formas de energia -sujas e limpas- existentes, permitindo uma transição suave para um mundo em que o planeta Terra deixará de ser assado pelo efeito estufa antropogênico.
Você tem combustíveis fósseis? É possível extrair deles hidrogênio. Álcool de cana? Mesma coisa. Gás natural? A escolha é sua. Energia solar para acompanhar? Nuclear? Eólica? Fique à vontade. Tudo vira hidrogênio se você fizer uma forcinha.
Mas o que fazer com ele? A principal forma de aproveitar esse combustível básico é por meio de uma tecnologia originalmente desenvolvida para as viagens espaciais tripuladas. A "Espaçonave Terra" (no termo cunhado pelo famoso arquiteto americano Buckminster Fuller) e sua tripulação bem que poderiam usar umas células a combustível.
Esses dispositivos funcionam como baterias comuns, mas abastecidas com hidrogênio e oxigênio. Dois compartimentos mantêm as substâncias separadas. Os átomos de hidrogênio são separados de seus elétrons, e só o núcleo (positivo) pode passar por uma membrana para se reunir ao oxigênio, induzido a ter carga negativa. Os elétrons, que não podem passar, são obrigados a dar uma volta, produzindo corrente elétrica. Todos os elementos se reúnem no fim, tendo como produto água.
Em resumo, na reação, entram hidrogênio e oxigênio e sai água, tendo como resultado a produção de eletricidade. Não existe energia mais limpa que essa. E as células a combustível poderiam em tese ser usadas tanto como fontes estacionárias de energia, para alimentar redes elétricas, quanto como fontes móveis, em veículos automotores.
Pintou sujeira
O problema está na fonte do hidrogênio, que não costuma ser tão limpa quanto seu uso posterior. "Os Estados Unidos, por exemplo, estão apostando tudo na produção do hidrogênio a partir dos combustíveis fósseis", diz Ennio Peres da Silva, físico que coordena o Laboratório de Hidrogênio do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
A atual aposta americana é o uso de técnicas de conversão do petróleo em hidrogênio que permitam capturar o gás carbônico (CO2) produzido na reação e de algum modo "seqüestrá-lo", evitando que vá à atmosfera e agrave o efeito estufa -o aumento da temperatura do planeta ocasionado pela presença de certos gases que permitem que a radiação solar chegue ao chão, mas não que ela seja refletida para o espaço.
"Eles pensam em injetar esse CO2 em velhos poços de petróleo, ou no fundo do oceano, impedindo que vá à atmosfera", diz Silva, exemplificando as típicas soluções tecnológicas propostas pelo governo George W. Bush para conter o aquecimento global. "Sinceramente, eu acho essas soluções mirabolantes demais para darem certo. Mas com isso os Estados Unidos ganham tempo para fazer a transição para outras fontes de energia. Eles precisam mais de uma solução política do que uma efetiva, para evitar embargos a seus produtos e dar uma resposta ao mundo sobre sua política de redução de emissões. Dizer algo como "estamos fazendo o que temos de fazer, mas não do jeito que vocês queriam"."
E mesmo soluções paliativas, no mundo do hidrogênio, podem ser um bom ponto de partida. Uma vez que todo o sistema energético passa a ter hidrogênio como uma moeda de troca, basta diversificar a forma de obtenção da substância para convertê-lo de "sujo" em "limpo". É um modo mais suave de fazer a transição e cai no gosto dos americanos e das petrolíferas por trás de Bush.
Exemplo dessa política de transição é um novo modelo de células a combustível atualmente em desenvolvimento na Northwestern University, Estado de Illinois, EUA. Ela é abastecida com gasolina, e usa seu próprio calor de funcionamento para promover a "reforma" do hidrocarboneto derivado do petróleo em hidrogênio. A tecnologia, publicada on-line anteontem pela revista "Science" (www.sciencexpress.org), está voltada para aplicação em automóveis e ainda precisa de vários avanços antes de atingir um estágio comercial, mas pode ser mais uma das alternativas para reduzir as emissões de gás carbônico sem mexer muito no sistema energético. Como diria um publicitário, "é mais energia pela sua poluição".
"É muito difícil fazer a transição dos motores de combustão para as células a combustível", diz Scott Barnett, autor do estudo. "Essa poderia ser uma solução de meio-termo."
Em fases
A política brasileira também pretende fazer uma transição entre a economia do hidrogênio "sujo" e a do "limpo". De início, por exemplo, pretende-se usar gás natural para produzir H2. "Mas todo o roteiro enfatiza a associação entre as fontes renováveis de energia e a obtenção do hidrogênio", diz Silva. "O álcool, por exemplo, teria um papel importantíssimo nesse ciclo."
O roteiro nacional será amadurecido nos próximos dois anos, e em 2007 dará origem a um programa para o hidrogênio, que pautará a política até 2025. E outras nações também estão fazendo coisa parecida, cada uma enfatizando seus próprios recursos. Na reunião do Rio, organizada pela IPHE (sigla em inglês para Parceria Internacional para a Economia do Hidrogênio), também houve apresentações de representantes da União Européia, da França, da Alemanha, da Coréia do Sul, da Noruega e dos Estados Unidos.
E, antes mesmo disso, já há projetos amadurecendo em solo nacional. A cidade de São Paulo deve contar com a primeira frota de ônibus movidos a hidrogênio em meados de 2007, segundo Silva. O combustível das estrelas, ao que parece e seja qual for a fonte, está vindo para ficar.

FSP, 03/04/2005, p.9 (Mais)

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