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Demarcando telas: políticas indígenas no cinema brasileiro

Nexo Políticas Públicas - pp.nexojornal.com.br
Autor: Aline Moschen
12 de Ago de 2022

Aline Moschen

12 Ago 2022(atualizado 23 ago 2022 às 15h24)
Dos anos oitenta ao presente, o acesso de indígenas aos recursos de filmagem vem crescendo e cada vez mais ganhando espaço como ferramenta na luta por direitos
"Demarcar telas", expressão que ganha cada vez mais força nos movimentos indígenas, fala sobre ocupar espaços simbólicos, materiais e linguísticos na afirmação de existências em disputa pelos direitos indígenas.

A tradução de pensamentos, parte da mediação cultural, que integra as políticas de trocas materiais e imateriais com outros povos "vem de longe", como me disse o antropólogo Idjahure Kadiwel, ao lembrar de estratégias indígenas ao longo dos séculos."É um processo de pedagogia dupla: como se os indígenas sempre precisassem aprender primeiro sobre as ferramentas e o mundo dos brancos, para então educá-los através delas. Foi assim com a língua, com a escrita, agora é também com o cinema, com as mídias".

O acesso de pessoas indígenas aos recursos de filmagem possibilitou transformações nas relações com a memória dos povos e sobre os povos no imaginário coletivo. O que é um exercício contra colonial, na afirmação das narrativas de sujeitos que ainda sofrem os efeitos contínuos da colonização, ao explicitar perspectivas sobre o mundo.

A demarcação de telas objetiva, entre outros sentidos, projetar essas narrativas considerando a alteridade, o mundo dos brancos e ainda outros povos, instituindo-se como política dialógica. Frente a isso, vale considerar que, por mais necessárias que sejam, as políticas públicas são em maioria coloniais por princípios institucionais, e parte da agenda indígena no cinema é sensibilizá-las por agência própria, estabelecendo a ação de uma política indígena.

A seguir, a linha do tempo reúne passagens que demonstram a gradativa ação de uma política indígena no cinema, em diferentes momentos e condições que evidenciam a importância da aliança com diretores não indígenas, aos filmes de direção compartilhada entre diretores indígenas e não indígenas à afirmação da tomada indígena das câmeras de forma cada vez mais autônoma.

1985
Avaeté - a semente da vingança

De direção não indígena, assinada por Zelito Viana, o filme tem como protagonista Macsuara Kadiwéu, primeiro ator indígena a ganhar visibilidade em amplo espectro, ao interpretar uma personagem do povo Cinta-Larga, em ficção baseada em fatos reais do episódio conhecido como "massacre do Paralelo 11", ocorrido no Mato Grosso em 1962.

1986
Vídeo nas aldeias

O projeto criado por Vicent Carelli inicia em conjunto com o Centro de Trabalho Indigenista e o povo Nambiquara, de forma pioneira e experimental, propondo-se a entender a incorporação do vídeo como instrumento em aldeias.

1987-1995
Das produções do Vídeo nas aldeias nesse período, emergem os filmes Festa da moça (1987), Pemp (1988), Waía: O segredo dos homens (1988), O espírito da TV (1990), A arca dos Zo'é (1993), Eu já fui seu irmão (1993), Yãkwã: O banquete dos Espíritos (1995), ainda com a forte presença da direção não indígena a frente das câmeras, destacando-se os cineastas Vicent Carelli, Virgínia Valadão e Dominique Gallois na interseção com diferentes povos indígenas.

1996
Programa de índio

De realização conjunta entre o Vídeo nas aldeias e a TV Universidade Mato Grosso, estreia o programa como o primeiro espaço genuinamente aberto à participação indígena na televisão brasileira, abordando temas como conflitos fundiários, educação, cultura e meio ambiente, entrevistas, e demais assuntos trazidos por perspectivas indígenas.

1997
É realizada a primeira oficina de formação em audiovisual do projeto Vídeo nas aldeias com o povo Xavante, na aldeia de Sangradouro, no intuito da produção de materiais e narrativas para "ficcionar seus mitos", em palavras retiradas do site oficial do projeto (http://www.videonasaldeias.org.br/).

2000-2006
O Vídeo nas aldeias torna-se uma ONG independente, e a partir desse marco inauguram-se as produções de cinema feitas de forma compartilhada entre diretores indígenas e não indígenas, e por indígenas de forma autoral e continuada, entre as quais se destacam os filmes Shomõtsi (2001) de Valdete Pinhanta, Das Crianças Ikpeng para o Mundo (2001) de Kumaré Ikpeng, Karané Ikpeng e Natuyu Yuwipo Txicão, Wai'á Rini - O poder do sonho (2001) de Divino Tserewahú, Um dia na aldeia (2003) de Kabaha Waimiri, Sawá Waimiri, Iawysy Waimiri, Sanapyty Atroari, Wamé Atroari e Araduwá Waimiri; O dia em que a lua menstruou (2004) de Vicent Carelli em parceria com Carlos Fausto, Takumã Kuikuro, Mariká Kuikuro, Olivia Sabino e Leonardo Sette; O cheiro de pequi (2006) de Takumã Kuikuro, entre outros.

2007
Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema

Em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, com grande influência da liderança de Patrícia Ferreira (Pará Yxapy) no cinema, espraia-se o fenômeno da prática audiovisual no território guarani entre os membros mais jovens, que passam a se reconhecer como comunicadores e cineastas em luta pela terra, focados em produzir filmes e artes visuais sobre o modo de vida nas aldeias.

2008
Ascuri

É formada a Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (ASCURI), durante a oficina "Cine Sin Fronteras" organizada por um produtor do povo Quechua, na Bolívia. Em 2012, a Associação é formalizada no Brasil com o intuito de promover a autonomia entre realizadores de diferentes povos em suas auto-representações em diferentes linguagens artísticas, entre elas o cinema.

2009
Como a noite apareceu

De direção não indígena, o filme é gravado na terra guarani da cidade de Aracruz, no Espírito Santo, e tem como protagonista Alberto Alvares, ator indígena em estreia, que a partir desse contato com o universo audiovisual decidiu seguir carreira solo como cineasta independente, tornando-se diretor de incontáveis documentários sobre o povo Guarani, produzidos desde então até o presente.

2011
Bicicletas de Nhanderu

A produção de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira (Pará Yxapy), no formato de documentário, desponta como produção indígena autoral independente no território Guarani de São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul.

2012
As hiper mulheres

Com direção compartilhada entre o antropólogo Carlos Fausto, o cineasta Leonardo Sette e o cineasta indígena Takumã Kuikuro, o filme é lançado e ganha destaque por tratar do Jamurikumalu, ritual dos povos do Alto Xingu, trazendo pontos de vistas indígenas na direção das câmeras.

Tava, uma casa de pedra

O filme, produzido por Vicent Carelli em conjunto com Ariel Ortega, Ernesto Carvalho e Patricia Ferreira (Pará Yxapy), ganha projeção nacional por tratar da perspectiva indígena sobre as expedições jesuíticas durante o século XVII, em territórios do povo Guarani, no Brasil, Paraguai e Argentina.

2016
Tela indígena

Também no Rio Grande do Sul é fundada a Mostra de Cinema Tela Indígena, por Ana Letícia M. Schweig, Carmem Guardiola, Eduardo Schaan, Geórgia de Macedo G. e Marcus Wittmann, estudantes de antropologia da UFRGS em coprodução audiovisual com cineastas indígenas. Destaca-se novamente a figura de Patrícia Ferreira (Pará Yxapy) como cineasta do povo Guarani em articulação com a produção audiovisual no contexto nacional, impulsionadora de novos coletivos de cineastas jovens em aldeias.

2017
Ete London - Londres como uma aldeia

Dirigido por Takumã Kuikuro, o filme, imbuído de sagaz sarcasmo, retrata a etnografia de um cineasta indígena em expedição à Europa, com o objetivo de observar as diferenças culturais dos "Hiper Brancos".

Mídia índia

Tendo como principal organizador o jornalista Erisvan Guajajara, do Maranhão, a proposta de uma mídia independente e descentralizada para tratar das agendas indígenas por meio do audiovisual emerge com grande força, articulando povos em todo o território nacional.

2020
Sonho de fogo

O filme dirigido por Alberto Alvares é um compilado de depoimentos e imagens documentais gravadas um pouco antes da pandemia causada pelo vírus Covid-19, e fala, entre outros assuntos, da importância da dimensão onírica para o povo Guarani, tendo como ponto de partida um sonho vivenciado pelo diretor, que prenuncia a chegada de doenças na comunidade.

2021
Fórumdoc.bh

Em 2021, ao celebrar os 25 anos de existência, o Festival Fórumdoc.bh de Belo Horizonte, Minas Gerais, promoveu edição dedicada ao filme etnográfico e documental, contando com a participação de cineastas indígenas já reconhecidos no âmbito nacional, assim como Sueli e Isael Maxacali, entre outros.

2022
Festival de cinema de Gramado

O filme "Mby'á Nhendu", produzido por jovens indígenas participantes da Mostra Tela Indígena é selecionado pelo Festival de Cinema de Gramado.

BIBLIOGRAFIA
Araújo, Ana Carvalho Ziller (org). Vídeo nas Aldeias 25 anos: 1986-2011. Olinda, PE: Vídeo nas Aldeias. 2011.

Alvarenga, Clarisse. Da cena do contato ao inacabamento da história: os últimos isolados (1967-1999), Corumbiara (1986-2009), Os Arara (1980-). 1. ed. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2017. v. 1. 296p.

Duarte, Daniel Ribeiro; Romero, Roberto; Torres, Júnia. (orgs.). Cosmologias da imagem: cinemas de realização indígena. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2021. Disponível aqui.

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