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Decifrando os bodes de Bali

CB, Opinião, p. 11
17 de Dez de 2007

Decifrando os bodes de Bali

Roberto Smeraldi
Jornalista, diretor da Oscip Amigos da Terra - Amazônia Brasileira

Enquanto o mundo olhava para Bali aguardando improváveis respostas diplomáticas para a emergência climática, a verdadeira disputa vinha sendo travada no âmbito das negociações comerciais. Os países da Europa e os Estados Unidos querem definir uma lista de produtos "ambientais" - que ganhariam prioridade no comércio internacional - limitada basicamente a tecnologias de eficiência energética das quais são produtores. Em resposta, o Brasil pretende incluir o etanol nesse grupo.
Para entender por que Bali estava fadada ao fracasso - e o que é necessário para evitar novos fracassos - é preciso entender uma equação simples, mas ainda não resolvida.
Todos (ou quase) concordam que é necessário reduzir as emissões totais de carbono, mesmo que haja dúvidas sobre como dividir a tarefa. O que muitos ainda não reconhecem é uma dedução aparentemente óbvia do postulado acima: não é possível reduzir as emissões totais aumentando o uso de combustíveis fósseis.
Em suma, para que o etanol (ou qualquer outro biocombustível) possa trazer alguma eventual vantagem do ponto de vista do clima, não é suficiente ser consumido. É também preciso que substitua uma igual ou maior unidade de combustível fóssil anteriormente consumida. Dessa forma, não há qualquer sentido em objetivos como vamos usar X% de biocombustíveis até o ano Y, sendo apenas relevantes metas do tipo vamos substituir X% de nosso atual consumo de fósseis até o ano Y. É como aquele senhor que come dois bolos por dia e recebe a informação que comer fruta ajuda a emagrecer, daí continua comendo os dois bolos e come fruta. Simples, mas a diplomacia ainda não chegou lá: em qualquer caso, temos de consumir (muito) menos.
Um cenário de redução real no uso do combustível fóssil pode enfrentar resistência dos países da Opep, mas até alguns deles começam a se perguntar se é mesmo interessante bombear todo o petróleo possível a curto prazo - para logo enfrentar sérios problemas de transição - ou administrar as reservas para afastar esse momento, aproveitando os lucros gerados pelo alto preço da commoditie e apostando nos usos mais nobres do que mero combustível, com destaque para a indústria petroquímica.
Agora, mesmo um cenário de substituição progressiva não é suficiente, sendo também necessário que o biocombustível tenha um balanço de emissões mais vantajoso daquilo que venha eventualmente a substituir: isso inclui as emissões do desmatamento gerado em razão de sua expansão, dos insumos fósseis usados para seu cultivo e do transporte até seu ponto de consumo. Ou seja, no final das contas, nem todo litro de etanol emite menos que um equivalente de petróleo.
Em Bali, o exercício de quase todos os países foi ainda o de dispor os respectivos bodes na sala de negociação. É um fato que isso terá impactos na sobrevida da atual forma de civilização humana (mais que no planeta, como muitos costumam dizer). Mas isso pouco importa aos governos, por cínica que se possa julgar essa posição. Dificilmente os bodes vão voltar para a senzala até que não haja algum acordo sobre os aspectos comerciais relacionados com as soluções - verdadeiras e supostas - para o problema, ou seja, quem (e quanto) tirará proveito da eventual saída da crise que nos une.
Até lá, o Brasil continuará bloqueando o acesso para as tecnologias dos países ricos com o infalível argumento de que elas, sozinhas, não podem resolver os graves problemas do planeta. Já os ricos seguirão dificultando o acesso ao etanol brasileiro, alegando, também com razão, que há etanol e etanol, e nem todos trazem vantagem ambiental.
Parece que os negociadores comerciais deverão, algum dia, se render ao que mais detestam, algo que guarda um nome obscuro na linguagem diplomática: métodos de processo e produção não relacionados com o produto, com a apavorante sigla NPR-PPM. Trata-se das características do processo produtivo que não interferem com o produto final. Exemplo: resulte ou não de desmatamento, as especificações do etanol, quando chega ao tanque, não mudam. Até agora, a ideologia do livre comércio não impediu sequer de inserir os NPR-PPM na agenda. Mas, se isso não acontecer, não haverá chance de saber se um biocombustível pode ou não trazer vantagem para o clima. E os negociadores não encontrarão razões suficientes para retirar da sala os bodes, de maneira que as futuras Balis possam contribuir para a solução em vez de apenas aumentar as emissões, ao levar dezenas de milhares de pessoas de um lado ao outro do planeta.

CB, 17/12/2007, Opinião, p. 11

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