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De Bento, me restou apenas a tristeza

O Globo, País, p. 6
07 de Nov de 2016

De Bento, me restou apenas a tristeza
Moradores do subdistrito atingido pela lama temem perder até suas lembranças

Ana Lucia Azevedo, Enviada especial

MARIANA (MG) - Bento Rodrigues nasceu e morreu do minério. Surgiu com a exploração do ouro. Desapareceu sob a onda de lama e ferro da mineradora Samarco. Um ano após ser arrasado no maior desastre ambiental do Brasil, o subdistrito de Bento se tornou um canteiro de obras do dique cujo lago vai ocultá-lo em breve.
Pertences dos moradores que tinham alguma serventia foram removidos. Ficaram os escombros de casas, mercadinho, escola, lugares que fazem a vida de uma comunidade. E restos imprestáveis, coisas como tampas de panela empenadas, carteiras rasgadas, roupas em frangalhos e endurecidas ainda presas a um varal.
Bananeiras e mato crescem dentro e fora das ruínas. Há lugares onde nem destroços persistem. A Rua Cônego Veloso, que levava ao Córrego Santarém, por onde veio a onda de lama, termina em nada. É quase impossível imaginar que ali havia casas.
Fundado provavelmente em 1697, o subdistrito de Mariana leva o nome do bandeirante paulista que por lá se aventurou em busca de ouro quando tudo ali era sertão. Bento, o povoado, nasceu com a mineração nessa parte de Minas Gerais, conta o professor de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Francisco Eduardo de Andrade.
A lama de rejeito de minério de ferro da Samarco o sepultou e com ele será coberto pelas águas do lago do dique S4, que a mineradora espera ver pronto em janeiro de 2017.
- Bento se tornou um trágico exemplo das ironias da História - comenta Andrade.
A função do S4, segundo a empresa, é conter os rejeitos que, passado um ano, continuam a escorrer para rios e córregos.
O dique causa polêmica. Antigos moradores queriam que Bento se tornasse um memorial da tragédia. O Ministério Público de Minas Gerais tentou impedir a construção. Mas o governo do estado deu sinal verde para a obra e autorizou a "requisição administrativa" de 55 propriedades devastadas. A Samarco diz que o dique é provisório. E que em alguns anos - talvez três ou cinco - a água baixará e as ruínas reemergirão. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) duvida.
De fora ficarão o que restou da igrejinha de São Bento, erguida em 1718, o antigo cemitério e a parte do distrito não arrasada pela lama, isto é, algumas poucas casas da parte mais elevada.
Quando as águas cobrirem Bento, um antigo muro colonial do século XVIII, parte da Estrada Real, será "encapsulado por areia", nas palavras do arqueólogo a serviço da Samarco Vinicius Castilho. Engolido pela lama, desenterrado pelas obras de emergência e de novo coberto.
Moradores temem que o dique afogue suas lembranças. Num dos dias em que é permitido a eles ir a Bento, José Barbosa, dono de um pequeno mercado e bar, se esforçava para lembrar o nome de uma das ruas. Era a Cônego Veloso, onde ficava o posto de saúde.
E há aqueles que já deixaram Bento para sempre somente na memória. José do Nascimento de Jesus, 71 anos, o seu Zezinho, abandonou tudo de bermuda e chinelo de dedo. Com a mulher, Maria Irene de Deus, 76 anos, fugiu às pressas da onda de lama que produzia um estrondo e começava a engolir o subdistrito de Mariana.
Saiu para nunca mais voltar. Presidente da Associação de Moradores, seu Zezinho e dona Irene ficam com lágrimas nos olhos ao lembrar a antiga casa, os móveis de família, como a mesa de jantar de sucupira, "dessas que não fazem mais".
- De Bento, me restou apenas a tristeza - diz dona Irene.
Mas dona Irene e seu Zezinho também não suportam mais tanta tristeza.
- Já sofri o que podia e o que não podia. Quero resolver as coisas do novo Bento. Dói voltar lá. Nunca terei de volta o lugar onde fomos felizes por 33 anos. Podem me dar um sítio, mas nunca será igual - afirma seu Zezinho.
Eles moram num apartamento alugado pela Samarco junto ao centro histórico de Mariana. E de lá querem ir somente para o novo Bento, que será construído num terreno da antiga fazenda Lavoura, a cerca de nove quilômetros de Mariana. Para lá deverá ir a maioria das 236 famílias que moravam em Bento - nem todas aceitaram o novo local. A previsão é que seja entregue em 2019.
- Não é que o apartamento seja ruim. Somos da roça. Aqui tem muito muro, muita parede. Não tem verde nem plantação. Foi por isso que nós e outros vizinhos fizemos uma horta na garagem do prédio - diz dona Irene, que não perde o sorriso nem quando chora.

O Globo, 07/11/2016, País, p. 6

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