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Da aldeia para o mundo

CB, Caderno C, p. 3
17 de Abr de 2006

Da aldeia para o mundo
Mostra promete quebrar estereótipos sobre comunidades indígenas brasileiras com documentários produzidos pelos próprios índios

Tiago Faria
Da equipe do Correio

No imaginário de quem vive na cidade grande, as imagens das comunidades indígenas brasileiras chegam com imperdoável atraso. Entre a forma como vemos a realidade das aldeias e o jeito como elas são, existe lacuna aberta pela marreta de preconceitos e distorções. A importância da mostra de vídeo Um olhar indígena, que chega a Brasília a partir de hoje, é a de preencher esse vão da desinformação com criações audiovisuais que não apenas registram o cotidiano de povos que vivem à margem de programas de tevê e das telas de cinema. Mas que captam as cenas do dia-a-dia pelos olhos curiosos dos próprios índios. São eles que empunham as câmeras, editam os melhores trechos e traduzem o mundo para o público. "A idéia é que os índios mostrem como eles são, e não como nós os vemos", explica Mari Corrêa, uma das organizadoras do evento.

A coleção de 38 vídeos que será exibida com entrada franca na Sala Alberto Nepomuceno do Teatro Nacional e no auditório do Centro Cultural Brasil-Espanha mapeia as realizações do premiado Vídeo nas Aldeias. Criado em 1987 pelo indigenista e documentarista Vincent Carelli, o projeto nasceu com a proposta de registrar imagens das comunidades para, logo em seguida, exibi-las aos habitantes das aldeias. E ainda fazer com que os índios se acostumassem com as câmeras. A partir de 1998, já com a participação da documentarista Mari Corrêa, o foco das atividades mudou radicalmente: daquele momento em diante, os índios aprenderiam a arte do documentário e as técnicas para manusear equipamentos de gravação. A maior parte da mostra Um olhar indígena é formada por obras de autoria dos próprios índios. E, o restante, por vídeos produzidos na etapa inicial do projeto, dirigidos principalmente por Carelli.

Nas aldeias brasileiras, as imagens de canais de televisão estão lá, captadas por parabólicas. Em alguma medida, elas servem como escola informal para os índios que têm vontade de se transformar em diretores de documentários. Mas, sempre que começam uma nova oficina de criação em diferentes comunidades, a equipe do Vídeo nas Aldeias (que em 2000 transformou-se em ONG) tenta mostrar que o modo como a tevê conta histórias não é o único que existe. "Queremos sempre desconstruir a imagem da tevê e fazer documentários mais autorais", diz Mari. Um debate capaz de provocar alguma polêmica é se, nos vídeos que gravam, os índios conservam ou não as fórmulas televisivas mais desgastadas. "O resultado é sempre um híbrido. Existem o olhar deles e as referências da tevê. E também há o nosso olhar. A tendência é que ensinemos aquilo em que acreditamos", explica.

Até agora, o Vídeo nas Aldeias conseguiu acumular acervo de 3 mil horas de imagens de 30 povos indígenas brasileiros. Foram produzidos 60 vídeos. Nesse meio tempo, venceu o prêmio Chico Mendes, do Ministério do Meio Ambiente, pela valorização das referências culturais e ambientais das populações da Amazônia. Também recebeu prêmio da Unesco pela contribuição à preservação de patrimônio imaterial brasileiro. As criações de diretores de povos como o Ikpeng e o Hunikui ganharam o mundo. Como parte do Ano do Brasil na França, 13 desses vídeos foram parar na Europa. No Brasil, porém, o acesso a essa produção ainda é restrito a brechas muito eventuais na grade de tevês públicas. A mostra Um olhar indígena é a primeira iniciativa de trazer a Brasília o resultado desse trabalho. Durante uma semana, 13 realizadores de etnias como Ashaninka, Hunikuin e Xavante estarão na cidade para participar de debates.

Pelo menos nas comunidades, em fitas de vídeo e DVD, a produção circula. Além de formar novos videomakers, outra função do projeto é facilitar o intercâmbio cultural entre os povos indígenas. "Muitos deles se conhecem graças aos vídeos", diz Mari. Ensinar a manusear câmeras e mesas de edição é fase até simples das oficinas, que costumam durar um mês. "Não queremos estimular a idéia de que, se você dá uma câmera a uma pessoa, ela consegue fazer um filme. Existe toda uma discussão sobre linguagem que é muito importante", explica Mari. Depois de deixar cada aldeia, a ONG doa o material de gravação para que os índios continuem a registrar eventos da cultura e do cotidiano. "Funcionamos primeiro como uma escola de cinema, depois como pólo de distribuição desses filmes", diz.

O transporte dessa produção para a cidade grande ainda é tortuoso. A discussão sobre políticas públicas para comunidades indígenas inclui o debate sobre a criação de programas de tevê feitos por índios - ou até mesmo de canal próprio, a exemplo do que é feito pelos aborígenes, da Austrália. "Precisamos de espaço para a divulgação do trabalho, mas também a formação para que se criem conteúdos", observa Mari. Quando consegue chegar ao público de metrópoles, o projeto cumpre o papel de oferecer descobertas. "Quem assiste aos filmes têm reações de muita proximidade com os índios. Os filmes têm humor", diz. Em vez de encontrar exóticas imagens, o público se surpreenderá com outra oportunidade: a de se ver no outro.

UM OLHAR INDÍGENA
Mostra de produções, entre médias e curtas-metragens, do projeto Vídeo nas Aldeias. De hoje a 23 de abril na Sala Alberto Nepomuceno do Teatro Nacional e no auditório do Centro Cultural Brasil-Espanha (907 Sul). Abertura às 19h, na Alberto Nepomuceno, e às 21h, no CCBE. A partir de amanhã, sessões às 17h, às 19h e às 21h. Informações: 3443-9916. Entrada franca.

Rumo ao desconhecido

Vídeos da mostra Um olhar indígena revelam novos realizadores e olhares originais para a realidade de aldeias do Brasil.

Das crianças Ikpeng para o mundo
De Kumaré, Karané e Natuyu Txicão (35 min, 2001)
Em resposta a videocarta enviada por crianças de Sierra Maestra, em Cuba, quatro pequenos índios do povo Ikpeng, do Parque do Xingu (Mato Grosso), apresentam-se com lista de brincadeiras, obrigações, relações familiares e muita imaginação. O curioso no vídeo é, além da espontaneidade dos meninos e meninas, a forma como inclui na narrativa detalhes que normalmente ficariam abandonados à mesa de edição de um documentário convencional sobre comunidades indígenas. Um momento marcante é quando, em exemplo do olhar infantil para o mundo, um menino compara uma garotinha da região a uma boneca movida a pilha. Depois, apresenta ao público um banheiro "feito pelos brancos".
Sábado, 22, às 19h, e domingo, 23, às 17h, na Sala Alberto Nepomuceno.

Nguné Elü - O dia em que a lua menstruou
De Takumã e Marica Kuikuro (28 min, 2004)
A produção recente do povo Kuikuro, de Mato Grosso, é chance de notar como antigos rituais permanecem vivos, lado a lado com novas tecnologias. Nas primeiras imagens, índios assistem a um vídeo enquanto esperam por um evento decisivo: o eclipse lunar. Quando o fenômeno natural acontece, eles mancham os rostos como forma de proteção.
O significado desses preparativos será explicado durante o vídeo, mas não apenas isso. Antes e depois do eclipse, os índios mais jovens vivem verdadeiros ritos de passagem. Uma cena especial é a que um índio mais velho, para "acordar" os objetos da própria casa, esbarra em um aparelho de televisão -
que exibe trecho de Vídeo show, da TV Globo.
Amanhã, às 19h, na Sala Alberto Nepomuceno, e sábado, 22, às 21h, no CCBE.

Kiarãsâ yõ sâti - O amendoim da cutia
De Komoi e Paturi Panara (51 min, 2005)
Um dos vídeos mais longos que serão exibidos na mostra, O amendoim da cutia explora o cotidiano do povo Panará, de Mato Grosso. Um dos atrativos da narrativa é a forma pausada, solta, como os eventos são apresentados ao público por um jovem professor, uma mulher pajé e o chefe da aldeia. A proposta da equipe do Vídeo nas Aldeias de buscar documentário que escape às armadilhas de fórmulas jornalísticas de tevê é cumprida - e, para o espectador, fica até difícil prever o desenrolar da "trama". Há elemento familiar para o público brasiliense: um índio desembarca na aldeia depois de passar um tempo em Brasília.
Hoje, às 21h, no CCBE, e quinta, às 19h, na Sala Alberto Nepomuceno.

CB, 17/04/2006, Caderno C, p. 3

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