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Curando e afastando índios das doenças dos brancos

O Estado de S.Paulo (São Paulo - SP)
11 de Nov de 2001

Programa da Unifesp no Xingu alia técnicas modernas à medicina indígena tradicional

Os pajés já tinham feito de tudo para recuperar o índio Malovi, de 16 anos. Não tiveram sucesso. Havia dez dias, Malovi estava agitado, não dormia nem comia. Ficou assim depois de voltar de uma viagem ao Pará, primeira vez que saiu do Parque Indígena do Xingu, no norte do Mato Grosso. A pedido dos pajés da aldeia, Malovi veio para São Paulo, onde recebeu tratamento médico. Tudo não passava de uma perturbação aguda, detectada pelo psiquiatra que soube interpretar os costumes indígenas. Malovi tinha se sentido atraído por meninas brancas que conheceu na viagem. Não houve nenhum contato físico com elas. Mas Malovi sentia culpa porque ainda não tinha passado pela cerimônia que o transformaria em homem. Os indígenas ficaram gratos pela cura do garoto. No Parque Indígena do Xingu, essa parceria de pessoas de origens culturais tão diferentes garante a saúde de 4 mil índios: ao lado do pajé e do raizeiro - índio que sabe usar as plantas para curar - está um médico. O Projeto Xingu da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) existe há 36 anos. As estatísticas de mortalidade dos índios provam que o programa deu certo. Em 1975, em cada 1.000 bebês índios que nasciam, 97 morriam ainda no primeiro ano de vida. A mortalidade infantil caiu para 12 por 1.000. A mortalidade na população indígena como um todo também melhorou ao longo dos anos. Era de 12 mortes para cada 1.000 índios em 1975. Hoje, é de 4 mortes para cada 1.000. Mesmo com resultados tão bons, a equipe do Projeto Xingu tem pela frente mais um desafio: combater doenças de homem branco. Não são aquelas transmitidas por microrganismos. São as doenças típicas do estilo de vida da sociedade moderna, como obesidade, pressão alta e diabete. Genética - Infecções respiratórias, diarréia, verminose e problemas de pele - doenças mais comuns entre os índios - já foram controladas. "Temos apenas oito casos de hipertensão e um de diabete, mas a obesidade já está presente entre os índios do Xingu", afirma o coordenador do Projeto Xingu, o médico Douglas Rodrigues. Em parte, isso se deve às características genéticas dos povos indígenas, as quais permitem que eles se adaptem às variações sazonais de oferta de alimentos. O médico Rodrigues explica que eles acumulam mais gordura no corpo para se proteger contra a falta de alimento em determinadas estações do ano. Quando há mudança brusca na dieta, essa característica deixa de ser protetora e se transforma em fator de risco para doenças crônicas. O consumo de produtos como óleo, arroz, macarrão e açúcar tem mudado a dieta tradicional de alguns índios, interferindo na saúde deles. Segundo Jorge Carlovich Filho, coordenador do Ambulatório do Índio da Unifesp, o fenômeno é mais comum em índios que têm mais interação com o homem branco. São os índios dos postos que servem como base para se chegar às aldeias. "Entre os jovens, as doenças sexualmente transmissíveis também têm aparecido." Os casos de câncer em índios chamam a atenção dos especialistas. Mesmo sem estar exposto a uma infinidade de agentes químicos cancerígenos, o índio também tem câncer. "O que reforça a característica genética de certos tipos de tumor", completa Carlovich. "A ocorrência de casos de câncer nos índios se dá em todas as idades, desde crianças até idosos", diz Carlovich. Mesmo com a presença constante de uma equipe formada por dois médicos, cinco enfermeiros e dois dentistas, os índios não deixam de consultar seus pajés e raizeiros quando ficam doentes. "O pajé chama o profissional de saúde quando percebe que o problema é médico", diz Rodrigues. Especialistas comparam o conhecimento dos raizeiros a um atalho para a indústria farmacêutica. O que eles sabem pode encurtar em até uma década o tempo que grandes laboratórios levam para descobrir determinado princípio ativo. Equipes - Além da preocupação em não destruir conhecimento e crenças indígenas, o Projeto Xingu pretende dar autonomia para o índio cuidar da assistência à saúde de sua comunidade. Já são 16 auxiliares de enfermagem e 36 agentes de saúde, todos índios formados pelos profissionais da equipe da Unifesp. Doenças simples são tratadas lá mesmo no Xingu. Casos complexos - como câncer, malformações de nascimento e síndromes raras - são encaminhados para São Paulo. Na capital paulista, funciona o único Ambulatório do Índio do País. É no atendimento de doenças complexas, em geral com procedimentos que invadem mais o corpo, que o médico tem de contar com a ajuda do pajé. Do contrário, não consegue fazer seu trabalho. Foi graças à integração entre médico e pajé que a Unifesp realizou o primeiro transplante de rins em índio em dezembro de 1996. O índio Dombá, de 40 anos, tinha malformação das vias urinárias, um problema de nascimento. Com o tempo, seus rins começaram a funcionar mal, até que Dombá teve de deixar o Xingu para fazer hemodiálise em São Paulo. Em seguida, precisou de um transplante. "Colocar o órgão de outra pessoa dentro do corpo de um índio é assunto delicado", afirma Carlovich. A cirurgia só foi feita depois de o pajé analisar o caso. Dombá viveu por mais quatro anos com o novo rim, em sua aldeia no Xingu, antes de morrer. "Lidar com diferenças culturais e não ser dono da verdade é a tarefa constante do profissional de saúde que trabalha com o índio."

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