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Cultura retraçada

Arquitetura & Urbanismo, n. 158, mai. 2007, p. 30-35
31 de Mai de 2007

Cultura retraçada
A aliança entre técnicas indígenas, material regional e programa bem resolvido resulta em uma edificação que integra, às margens do Rio Negro, a comunidade e o Meio Ambiente

Por Ledy Valporto Leal Fotos Beto Ricardo/ISA

A história do projeto para a sede administrativa do Instituto Socioambiental, o ISA, foi escrita com os traços de uma cultura secular, ainda enraizada na Amazônia: a das comunidades indígenas. O projeto assinado pelo escritório Brasil Arquitetura, dos arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, retrata a singularidade e a beleza das raízes desses povos.

"Fomos chamados para criar esse projeto e, de imediato, ao conhecer a região, o povo e a cultura locais, logo pensamos em contar com a habilidade construtiva das comunidades indígenas", declaram os arquitetos. A idéia para a sede do ISA foi fazer uma edificação singela, com estrutura de concreto complementada com uma espécie de roupagem, toda de madeira, onde estariam os acessos, varandas e abrigo tanto para o sol inclemente quanto para as chuvas torrenciais. Aliás, esse é um item fundamental do projeto: o clima da região extremamente úmido e quente no qual, das 11 às 15 horas, ninguém trabalha ou sai às ruas. Por isso, a sombra é um recurso de grande importância.

O terreno tem cerca de 400 m² e se situa em um local privilegiado, de cota mais elevada, dominante em relação ao rio e à cidade. A solução em três pavimentos deve-se não somente às dimensões do lote, mas também ao programa, já que cada andar corresponde a um uso diferente. O edifício é um quadrado de 16 x 16 m, com 1.083 m² de área construída: no térreo, um salão multiuso é aberto à comunidade para realização de exposições e diversas atividades culturais. O espaço é dotado de itens como computadores, biblioteca, equipamentos de projeção e mapoteca. No segundo piso, acessível por uma escada externa, estão seis apartamentos de pesquisadores residentes por períodos definidos, além de lavanderia de uso coletivo. E o terceiro piso abriga a área de convivência, composta por escritório, sala de reuniões, cozinha, terraço para festas e redário (espaço para redes). Esse pavimento, não previsto no programa, transformou-se no grande destaque da edificação, inclusive pela belíssima vista para o rio.

Em estrutura convencional de concreto e alvenaria, a edificação ganhou uma espécie de capa envoltória de madeira capaz de protegê-la das chuvas intensas e criar a sombra tão necessária - além de formar um agradável avarandado. "Um dos momentos mais prazerosos é ficar na varanda em um final de tarde e sentir a brisa que vem do rio", afirma Marcelo Ferraz. Para reforçar a ventilação cruzada, as janelas são altas e as portas, do tipo veneziana.
Em todos os espaços internos há trabalhos do artesanato local. No segundo piso, por exemplo, o forro ganhou revestimento em cestaria. Ali, algumas aberturas deixam passar focos de luz para iluminação pontual.

O resgate da técnica indígena
A edificação se impõe pela arquitetura de sabedoria vernacular e a valorização do artesanato local. O ponto alto do projeto está na cobertura, único elemento não executado pela construtora e não calculado pela empresa responsável pelo restante da construção. Os autores são os índios do local, ou melhor, uma numerosa família indígena que, baseada em uma maquete imensa (a única linguagem que os índios compreenderam) escala 1:50 criada pelo escritório Brasil Arquitetura, executou com admirável habilidade a cobertura de madeira e piaçava. Os índios também se responsabilizaram pela estrutura, num trabalho intuitivo, porém preciso, sabendo escolher a peça da madeira (foram utilizadas acaricoara e pau d'arco) mais apropriada, homogênea e flexível.

A piaçava, fibra produzida em abundância na região, foi trabalhada pelas mulheres que prepararam os pentes - uma barra de madeira suportando feixes de piaçava amarrados com cerca de 50 cm de comprimento - escolheram a piaçava, enrolaram, deram o nó e entregaram os pentes prontos para os homens subirem e instalarem no local. Toda a amarração foi feita com cipó. Com 7,86 m de pé-direito, o pavimento tem um pilar central e vários ao redor, assim como mãos-francesas que suportam a carga.

Como um véu de proteção, a cobertura apresenta visual rústico e leve a um só tempo, criando um microclima ao projetar sombra nas paredes e refrescar o ar. "Estamos certos de que se trata de um projeto pensado para o clima amazônico. Utilizamos muita madeira ventilada, palha e várias camadas de proteção. E o principal: o resgate de uma técnica indígena de rara beleza", afirmam os arquitetos ao concluir que "a arquitetura não pode ser padronizada, tem de ser multifacetada, especialmente em um país como o Brasil. Fizemos uma arquitetura em consonância com o lugar, uma lição de Lucio Costa. Ouvir a comunidade é uma atitude óbvia, pois não projetamos com a comunidade, mas para ela. Nessa experiência creio termos dignificado uma técnica já abandonada, tida como superada, mas de grande eficiência".

Onde fica
O ISA é uma ONG que atua há mais de 25 anos na cidade de São Gabriel da Cachoeira, em plena Amazônia. A região, extremo noroeste do Brasil, está às margens do Rio Negro, na fronteira com Colômbia e Venezuela, é conhecida pelo nome "Cabeça do Cachorro" - por causa do desenho formado pela linha da fronteira brasileira com seus países vizinhos - e fica a quatro horas de Manaus, de avião. O local é habitado por aproximadamente 37 mil pessoas, a grande maioria representada por comunidades indígenas. No início do século 20, muitos habitantes do local fugiram para a Colômbia devido à estratégia de colonização promovida por padres salesianos. Ao introduzirem a idéia de habitações unifamiliares, a colonização reprimiu a cultura indígena original e, assim, casas, malocas e habitações coletivas foram substituídas.

AU LEITURAS
Veja EM www.revistaau.com.br
AU 130 - Preservação da vida. Entrevista com Marcelo Ferraz
AU 136 - Herança restaurada. Reportagem sobre o Museu Afro Brasil, projeto de Brasil Arquitetura
AU 150 - Arquitetura da convivência. Reportagem sobre o Museu Rodin, em Salvador, projeto de Brasil Arquitetura

Arquitetura & Urbanismo, n. 158, mai. 2007, p. 30-35

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