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Crise na Venezuela: Enquanto prefeito do PSDB quer barreira na fronteira, índios Warao enfrentam morte e descaso em Manaus

Amazônia Real amazoniareal.com.br
Autor: Elaize Farias
29 de Mai de 2017

Em um prédio de dois andares no centro de Manaus chama atenção o entra e sai de índios Warao, imigrantes vindos do Delta do Orinoco que fogem da crise política e econômica da Venezuela para o Brasil. Nas salas do edifício-abrigo, alugado pelas Cáritas Arquidiocesana de Manaus, entidade da Igreja Católica, estão espalhados colchonetes, roupas, chinelos e sacolas com comidas e medicamentos.

De um canto de uma sala ecoa um choro incontrolável, desesperador. É o choro do luto da indígena Soterina Perez, de 40 anos, que perdeu havia um mês o bebê Mariana, de seis meses, por causa de complicações causadas por catapora e desnutrição.

Sem condições emocionais para falar, quem relata o drama da família migrante é o marido de Soterina, Orlando Martin, de 45 anos. Ele é uma espécie de líder do grupo de índios que mora no prédio. Orlando disse que cruzou a Venezuela e chegou à fronteira do Brasil com a mulher e a filha recém-nascida, em dezembro de 2016. O casal morou nas cidades de Pacaraima e Boa Vista, em Roraima. Em abril, a família chegou a Manaus numa viagem de ônibus pela rodovia BR-174.

"Ela ficou doente rapidamente e morreu de catapora", disse Orlando Martins.

Além da morte da filha, Soterina e Orlando perderam o pouco que tinham num incêndio ocorrido no dia 5 de maio na casa onde moravam, no centro de Manaus. A hipótese é que o fogo foi de origem criminosa, motivado por xenofobia. Uma testemunha teria visto um homem jogar um artefato, iniciando o fogo, contra o imóvel. Era madrugada, o casal e os outros 60 moradores tiveram que fugir às pressas. "Perdemos rede, roupas, colchões e muito material de artesanato que fazíamos para vender. Agora não temos mais nada", disse Orlando Martin.

Por consequência do incêndio, os indígenas Warao foram abrigados no prédio alugado pelas Cáritas. Orlando está preocupado com a nova moradia. É que o aluguel de R$ 2.500 pago pela entidade cobre apenas o mês de maio, que se encerra no início de junho. Daí por diante os moradores terão que encontrar outro meio de continuar pagando o imóvel com suas próprias economias, ou mudar mais uma vez. "Não sabemos como vamos fazer", disse.

Em Manaus, segundo a Secretaria Estadual de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc), há atualmente cerca de 500 indígenas Warao, em levantamento feito nesta segunda-feira (29), mas a estimativa é que o número de índios venezuelanos dobre nos próximos meses. Metade dos Warao vive embaixo de um viaduto próximo ao Terminal Rodoviário da capital, que tem sua economia movida pelas indústrias da Zona Franca.

As autoridades não conseguem chegar a um consenso do número exato de imigrantes venezuelanos em Manaus, mas informações não oficiais dizem que estão na cidade cerca de 30 mil não índios.

É o maior fluxo de imigrantes desde a chegada dos haitianos à Amazônia, em 2011. Mas o acolhimento aos indígenas pelas autoridades nas cidades de Roraima e do Amazonas têm violado os direitos humanos e provocado reações de instituições que defendem a proteção aos povos indígenas e os direitos de migrantes e refugiados.

Em março passado, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito civil para acompanhar a situação dos índios Warao em Manaus. Este mês de maio a instituição enviou uma recomendação aos governos federal, estadual e ao município pedindo auxílio social, humanitário e de saúde aos migrantes Warao. Na ocasião, além da morte do bebê Mariana, mais duas pessoas morreram: uma criança por pneumonia e um homem por infarto.

Outra preocupação das instituições é com o anúncio do 1o. Plano de Contingência que o governo do presidente Michel Temer (PMDB) organiza na fronteira do Brasil com a Venezuela. O Ministério da Justiça nega que a ação é a de militarizar a região de fronteira e que seja construída uma barreira para impedir a entrada dos imigrantes. Mas autoridades como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), partido aliado do governo, defendem a instalação de "um campo de refugiados e uma barreira" na fronteira para impedir a chegada de mais índios Warao na capital amazonense.

Campo de refugiados

Diante da chegada massiva dos imigrantes e sem um programa de atendimento humanitário aos refugiados, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, decretou no dia 4 de maio situação de emergência para obter recursos do governo federal e contratar serviços sem licitação. O decreto está em análise por Brasília.

Mostrando inexperiência no tema da imigração, o prefeito tucano, que é diplomata de carreira, acabou cometendo uma gafe ao sugerir a construção de "um campo de refugiado e uma barreira em Pacaraima" na fronteira de Roraima com a Venezuela para impedir a chegada dos índios Warao à capital amazonense. Roraima é governado por Suely Campos (PP), que não foi consultada sobre o tema.

Segundo nota da prefeitura, "esse assunto já está sendo tratado com o ministro das Relações Exteriores [Aloysio Nunes] e será também levado ao ministro [Eliseu] Padilha, da Casa Civil, no sentido de criar um campo de refugiados e termos a barreira na fronteira", conforme disse o prefeito Arthur Virgílio.

Em reunião com representantes do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e do governo federal no dia 17 de maio, no Palácio Senador Hélio Campos, em Boa Vista, a governadora de Roraima, Suely Campos, foi questionada pela imprensa sobre as declarações do prefeito Arthur Virgílio sobre a criação do campo de refugiados e da barreira em Pacaraima.

"O governo do Estado não tem essa responsabilidade. Isso é competência das autoridades federais e, mesmo assim, seria necessário estudar como proceder com algo assim, para controlar o fluxo migratório", disse a governadora. No estado estão vivendo cerca de 500 índios Warao entre os mais de 21.705 venezuelanos migrantes, segundo a Polícia Federal.

"São refugiados do governo horroroso"

Em entrevista à Amazônia Real, o prefeito Arthur Virgílio defendeu o "campo de refugiados", mas mudou o nome da iniciativa em Roraima. "Se faz na fronteira um campo de abrigo, um centro de acolhimento".

"De certa forma, eles são refugiados daquele governo horroroso [do presidente Nicolás Maduro]. É um problema criado a partir de uma política interna desastrada, de um governo que tudo que podia fazer de mal para a Venezuela fez, e agora fere as pessoas mais pobres, principalmente aquelas que ironicamente eram a base de sustentação de seu apoio".

Para o prefeito de Manaus, a primeira abordagem aos refugiados venezuelanos tem que ser em Pacaraima. "Eu sei que as fronteiras são difíceis, mas pra mim tem que haver uma primeira abordagem ali. Evitar a hipertrofia das dificuldades das cidades. E seria uma forma de não negar o que elas estão pedindo. A ideia é dar a elas o que elas vêm buscar aqui."

A construção da barreira proposta por Arthur Virgílio seria para impedir que os venezuelanos cheguem até Manaus, uma viagem de mais de 900 quilômetros pela BR 174.

"Elas [populações Warao] não teriam necessidade de avançar. Seria [uma forma] de suprir a necessidade delas sem precisar ir para Boa Vista ou vir para Manaus. Elas não querem visitar Manaus, conhecer Manaus. Vêm para atendimento de saúde, vacinação. Tudo isso pode ser feito lá. O importante é você atender lá, o que eles vêm buscar aqui."

A Amazônia Real perguntou a opinião do prefeito sobre o 1o. Plano de Contingência do governo Temer com o apoio do Acnur na fronteira com a Venezuela. "Tudo que for feito sem se resolver essa questão lá no nascedouro, na fronteira com Venezuela, a gente dando toda ajuda humanitária, ONU, OEA, governo federal, governo de Roraima... Tudo o que fizer é paliativo".

Em relação às ações recomendas pelo MPF para o atendimentos aos índios Warao que estão em Manaus, Arthur Virgílio afirmou que "tem maior apreço" pelo órgão, mas que não pode "fazer milagres". E disse que aguarda a resposta do governo Temer para homologar o decreto de situação de emergência.

Arthur Neto destacou que a prefeitura está dando assistência social, de saúde, alimentação e abrigo aos refugiados, mas não informou qual o valor que disponibilizou para a ajuda humanitária municipal e nem quanto pediu ao governo federal.

"A vinda de dinheiro federal para cá fica mais agilizada. É um dever constitucional dar assistência. Quero prestar máxima assistência humanitária, cristã, a eles, sem deixar de prestar assistência que eu devo ao povo brasileiro que mora em Manaus. Atuar em conjunto para darmos a melhor assistência possível às pessoas" disse.

O prefeito disse também que não tem condições para fazer as ações humanitárias sem os recursos federais. "Quero lidar com dados da realidade. Quando a gente governa, a gente tem dois caminhos. Ou a gente vive de quimeras e falsos sonhos, e até sonhos mentirosos, como é o caso do chavismo, ou você governa com realismo com que governo. As condições objetivas nossas para conceder ajuda é da nossa Secretaria de Finanças, aqui não tem dinheiro sobrando, a gente tem pegar dinheiro de algum lugar", afirmou.

Dinheiro começou a aparecer?

Após forte cobrança e pressão das organizações de direitos humanos e do MPF, o governo do Amazonas e a prefeitura anunciaram há duas semanas a construção de um abrigo para os indígenas e a destinação de recursos para as ações junto aos Warao na zona leste de Manaus.

O governo do Amazonas anunciou que vai repassar à Prefeitura de Manaus de R$ 300 mil. O dinheiro, segundo o governo, será usado na reforma de um prédio localizado no bairro Coroado, na zona leste. A secretária da Sejusc, Graça Prola, afirmou que será neste prédio que serão abrigados os índios Warao que vivem em ruas e em viadutos que ficam no entorno do Terminal Rodoviário. A previsão é que a reforma seja concluída nesta semana, mas ainda não há data para a transferência dos indígenas para o local.

Segundo a secretária, a prefeitura de Manaus deve receber ainda mais R$ 205 mil para despesas como alimentação, material de higiene e segurança dos refugiados.

"Vamos organizar as famílias, as mulheres que estão sozinhas com crianças, os homens sozinhos, etc. Há sete salas que serão transformadas em abrigos, mais duas para administração e um para atendimento médico. Também estamos providenciando a segurança", disse Graça Prola.

Campo e barreiras são discriminação
A proposta do "campo de refugiados" defendida pelo prefeito de Manaus provocou críticas do MPF e da Cáritas Arquidiocesana. O procurador da República Fernando Soave Merloto afirmou que cabe ao governo federal tomar qualquer medida relacionada à fronteira e que, mesmo assim, a construção de um centro como forma de barreira é inconstitucional e vai contra tratados internacionais de acolhimento de imigrantes e refugiados.

"Discordo dessa política de barrar os indígenas. Discordo dessa visão de barrar a entrada ou limitar o seu acesso. Não pode haver uma discriminação em relação aos nacionais e estrangeiros. O caminho é buscar relações diplomáticas", disse o procurador.

O padre Joaquim Hudson Ribeiro, da Cáritas, que acompanha a situação dos Warao em Manaus, afirmou que criar um campo de refugiados no território brasileiro, na fronteira com a Venezuela, é uma forma de criar barreira e causar mais estigma contra os imigrantes, especialmente os indígenas.

"Primeiro, tem que entender o direito do cidadão latino-americano de ir e vir. Existem tratados que protegem. Campo de refugiados? Coisas assim vêm de gente ignorante", afirmou o padre.

Em nota enviada à Amazônia Real, a assessoria de imprensa do Ministério da Justiça informou que "há estudos para verificar a viabilidade de implantação de um centro de acolhida" na fronteira brasileira com a Venezuela. "Caso seja construído, o público-alvo serão os imigrantes venezuelanos", destacou o órgão, que negou novamente a criação de campo de refugiados.

"O centro de acolhimento não pressupõe construção de barreira ou muro. Não há interesse em reter imigrantes em nenhum local do território brasileiro", disse a assessoria do MJ.

ONU critica vetos na Lei de Migração

Na última quinta-feira (25), o presidente Michel Temer sancionou a Lei de Migração, que substitui a legislação anterior, de 1980. A nova lei traz avanços na defesa dos imigrantes, como "acolhida humanitária", a "igualdade de tratamento", a "inclusão social, laboral e produtiva", mas pode restringir a vinda dos refugiados indígenas venezuelanos para Brasil.

A contradição é que a circulação de povos indígenas entre fronteiras, em terras tradicionalmente ocupadas - proposta no Projeto de Lei do Senado -, foi um dos 18 pontos vetados na sanção presidencial. O autor da lei é o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), hoje ministro das Relações Exteriores. A medida foi criticada pela ONU.

Erika Yamada, perita da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direitos dos povos indígenas, afirma que o veto é ruim porque o artigo avançava na atualização da lei para reconhecer um direito dos povos transfronteiriços.

"São povos que cruzam a fronteira como parte de seu modo de vida e organização cultural e seguirão fazendo isso", disse Erika Yamada à Amazônia Real.

A perita chamou de "estereotipados" os argumentos [ameaça à segurança nacional] apresentados por Temer para o veto, mas elogiou o conteúdo geral da nova legislação.

"Mesmo com os vetos, é um avanço. Trata o imigrante de maneira bem mais digna e equiparável ao cidadão brasileiro. A lei anterior era da ditadura e o imigrante era um ser explorável e não um ser humano. Mas a gente precisa olhar os vetos e especialmente o que está por trás dos vetos para seguirmos entendendo as limitações de nosso país", afirma Erika Yamada, que também é relatora de direitos humanos e povos indígenas da Plataforma Dhesca Brasil, uma rede formada por 40 organizações da sociedade civil.

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