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Crimes sem castigo

O Globo, O Pais, p.3-4
20 de Fev de 2005

Crimes sem castigo

Nos últimos 20 anos, a pistolagem matou, pelo menos uma pessoa a cada cinco dias no Brasil. Ainda hoje, pelo menos 213 ativistas estão ameaçados e sem proteção. Levantamento feito pelo GLOBO com base em relatórios de organizações de defesa dos direitos humanos mostra que mais de 1.400 pessoas foram assassinadas por pistoleiros desde 1985. Em 92,5% dos crimes, os responsáveis ficaram impunes. Durante os 20 anos anteriores, de ditadura, estima-se que menos de 400 ativistas morreram.

O advogado Manoel Mattos, de Pernambuco, tem dois mandados da Organização dos Estados Americanos (OEA) que obrigariam a Polícia Federal a protegê-lo, mas teve que sair de sua cidade, Itambé, e abandonar a militância no PT porque não tem proteção. Antigo companheiro de militância do secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, Mattos é testemunha em processos das Nações Unidas sobre grupos de extermínio.

Outras duas testemunhas ouvidas pela relatora da ONU para Execuções Sumárias, Asma Jahangir, em sua passagem pelo Brasil, em 2003, foram mortas após denunciar a pistolagem. Os acusados não foram punidos, e Mattos, que também foi ameaçado, hoje responde a processos por difamação.

— A maioria dos crimes fica sem inquéritos, portanto sem culpados ou punição. E os poucos que conseguimos levar a júri, por influências inconfessáveis estão sendo absolvidos, na Paraíba e em Pernambuco. Tiveram a ousadia de matar até a testemunha levada para ser ouvida pela relatora da ONU — diz Mattos.

Segundo Nilmário, a segurança do ex-petista foi tirada porque ele era indisciplinado. Ou seja: não acertava sua agenda de atividades com a dos policiais. Mattos afirma que alguns policiais fizeram um relatório sem provas neste sentido, para que deixasse de ser protegido:

— Prestei um serviço ao Estado e este me abandonou. Fui abandonado pelo governo federal e por meu partido. A luta pelos direitos humanos, que era uma bandeira de gente que hoje está no governo, hoje é um peso, um problema. É desalentador. Qualquer coisa que aconteça comigo e meus parentes é responsabilidade do governo federal.

Em 2004, 36 vítimas de pistoleiros

Só no ano passado, pistoleiros mataram 36 pessoas, contando apenas o meio rural: líderes sem-terra, índios, ativistas e religiosos — como a missionária americana Dorothy Stang, assassinada há uma semana no Pará, estado campeão da matança e da impunidade. Nestes últimos 20 anos, somente 15 mandantes e 64 executores foram condenados pela Justiça. De um total de 1.024 processos originários dos mais de 1.400 crimes, só 76 foram julgados até hoje, o que projeta um índice de punição de 7,5%, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem dados semelhantes. Em 2004, pelo menos seis líderes indígenas foram assassinados a mando de grileiros. Em apenas três estados, Pernambuco, Paraíba e Roraima, 21 líderes estão sob ameaças, inutilmente registradas na polícia, segundo a advogada Rosane Lacerda.

No meio urbano também há registros da pistolagem. Segundo o Centro de Justiça Global, são 50 ativistas ameaçados de morte. Entre os sem-terra, são 160 listados pela CPT.

A relação entre impunidade, ausência do Estado e aumento da pistolagem é direta, segundo o Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, único do Brasil especializado em pistolagem. As antigas milícias do início do século XX trocaram garruchas, cavalos e lenços no rosto por motos, escutas telefônicas e armas modernas, dizem os estudos.

Os pistoleiros continuam obedecendo às oligarquias. Em áreas mais urbanizadas, porém, juntam-se a esquadrões de policiais corruptos, segundo o pesquisador do LEV Giovani Jacó de Freitas:

— A pistolagem é uma ameaça à democracia. Tem crescido e mudado suas formas de expressão. O propósito é o mesmo: servir aos grileiros, aos coronéis, ao crime organizado, a todos os poderes que só existem onde o Estado se omite. É uma forma de repressão política a quem os contesta, aos movimentos sociais, em plena democracia.

Segundo Freitas, o latifúndio deixa as populações mais vulneráveis:

— Nas oligarquias, as elites são mais refratárias. Há ainda o isolamento e o comprometimento locais. Surgem, assim, verdadeiros exércitos privados. A cultura é de que a polícia é a extensão do poder local. Assim, o pobre vira o marginal, o perigoso. Há uma relação muito grande entre a pistolagem e a polícia.

O advogado Aton Fon Filho, um dos mais conhecidos defensores de ativistas na ditadura e que hoje milita na Rede Social de Justiça, tem uma explicação:

— O Estado brasileiro continua sendo organizado para garantir a impunidade dos ricos. Os pobres e seus defensores continuam pagando com seu sangue — afirma.

Segundo Fon, Dorothy foi acusada por uma promotora, às vésperas de ser morta, de formar quadrilha, porque levava comida e água para os sem-terra.

— Assim, o próprio Ministério Público incentiva estes assassinatos. A impunidade não é filha de ninguém, tem pais e mães: a Justiça, a polícia, o Ministério Público, o Estado e a imprensa também.

Nilmário: governo está tentando agir

Para outro advogado, Darci Frigo, da Terra de Direitos, matar um trabalhador ou um ativista no meio rural é como acabar com um animal, uma pessoa de segunda classe.

— A propriedade se sobrepõe ao direito. É muito difícil convencer a polícia a investigar os casos. A polícia tem, em sua medula, os interesses do latifúndio. A proteção oferecida é a dos mesmo policiais que ajudam na pistolagem. Foi o que ofereceram à irmã Dorothy.

Nilmário já reconheceu que as coisas estão lentas, mas afirma que o governo está tentando agir contra a violência no Pará. Ele admite o caos criado pela pistolagem e alega que a dificuldade é que o governo federal só tem 6.000 policiais, o que dificulta dar proteção a todos os ameaçados.

— Os estados têm 700 mil policiais. Estamos tentando convencê-los a dar proteção. Mais do que proteger o ameaçado, seria preciso investigar os focos das ameaças. Mas ameaça no Brasil nem chega a ser crime.

Índios são executados

SÃO PAULO. O cacique Marcos Kuxuru vive em uma das reservas indígenas mais cobiçadas pelos grileiros de Pernambuco: são 27.555 hectares em Pesqueira, a 214 quilômetros de Recife. Além dos nove mil índios espalhados em 24 aldeias, cerca de cem fazendeiros ocupam a área. O pai de Marcos, o cacique Chicão, foi morto em 1998. Os fazendeiros pagaram R$50 mil a um pistoleiro. Em 2003, Marcos escapou de uma emboscada, mas dois kuxurus morreram.

— O líder dos kuxurus tem um mandado da OEA que obrigaria o governo a lhe dar proteção, mas isto não é cumprido — diz a advogada do Conselho Missionário Indigenista (Cimi), Rosane Lacerda.

As execuções são freqüentes, e até o filho do pajé foi morto. Mais de 150 grileiros já foram expulsos. Segundo Marcos, em todos os assassinatos que denunciam, os índios acabam como suspeitos e são humilhados. Sua mãe foi a primeira acusada pela morte de seu pai, até a confissão de um pistoleiro.

— Os poderosos não querem a nossa agricultura familiar. E o governo só quer exportar, antes de arrumar nossa casa — reclama o cacique Kuxuru.

A ESCOLTA DEVERIA TER DURADO MAIS TEMPO
20/02/2005

Proteção a juiz durou 4 dias

BRASÍLIA. O juiz Jorge Vieira foi o primeiro magistrado do país a aplicar uma sentença contra exploração do trabalho escravo. Numa dessas decisões, ele multou a poderosa e rica família Mutran, do Pará, em R$1,3 milhão, a maior multa já aplicada envolvendo esse tipo de crime. Vieira é juiz em Marabá e atua em outras cidades do Pará, estado que detém os piores índices de violência no campo e campeão também em exploração da mão-de-obra escrava. O juiz já foi ameaçado de morte, mas não abandona a área.

O ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho Francisco Fausto pediu escolta da Polícia Federal para o juiz, em 2003. A proteção durou quatro dias. O juiz vive em Marabá e leva uma vida normal.

— Desde 2003 sou ameaçado. A escolta deveria ter durado mais tempo. Quando o governo resolve erradicar crimes de grilagem de terra e trabalho escravo tem que estar aparelhado para isso — disse Vieira.

O juiz conheceu a missionária americana Dorothy Stang há quatro anos. Ele conta que a irmã, naquela época, relatava as ameaças que recebia e teria pedido proteção de vida ao Estado. Ficou sem resposta.
PROTESTOS EM MISSA PARA DOROTHY STANG
20/02/2005

SÃO PAULO. Cerca de mil pessoas participaram ontem em São Paulo de uma missa celebrada para lembrar a morte da irmã Dorothy Stang, no Pará, no último dia 12. Antes do ato, conduzido pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Claudio Hummes, moradores de rua protestaram em frente à Catedral da Sé com cartazes contra o descaso social” no governo Lula e também pediram empenho na investigação do caso dos dez mendigos mortos a pauladas há seis meses na cidade.

No interior da igreja, completamente lotada, as pessoas aplaudiam cada vez que Dom Claudio citava o nome de Dorothy Stang. Durante o sermão, Dom Claudio Hummes exigiu do governo uma apuração rigorosa do crime:

— Devemos exigir que esse crime seja apurado plenamente. Exigimos isso do governo.

Pouco depois da missa, o presidente do PT, José Genoino, disse que o governo federal precisa fazer valer sua autoridade empregando a força contra o atrevimento das pessoas que mandaram matar a freira:

— É um desafio e um atrevimento (dos mandantes). E o governo tem que usar inclusive a força para fazer valer sua autoridade. Concordo com o uso de tropas do Exército na região.

O secretário nacional de Direito Humanos, Nilmário Miranda, informou que a partir de amanhã será instalada em Brasília uma coordenação-geral do programa de proteção aos defensores dos direitos humanos. O ministro deveria chegar hoje à China, mas cancelou a viagem anteontem à noite, depois de tomar conhecimento de uma quinta morte no Pará. Só mais tarde o ministro soube que a morte não tinha ligação com conflitos agrários.

Preso no Pará suspeito de contratar pistoleiros que mataram missionária

Amair Feijoli da Cunha, o Tato, negou participação no crime depois de se entregar

BELÉM E ALTAMIRA (PA). O fazendeiro Amair Feijoli da Cunha, o Tato, suspeito de ter contratado os dois pistoleiros que assassinaram a missionária americana Dorothy Stang, entregou-se ontem à tarde à Polícia Civil e foi levado para a Delegacia da Mulher em Altamira, no Pará. O delegado Walame Fialho Machado, da Polícia Federal, disse que Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusado de ser o mandante do crime, também avisou por intermédio de um advogado que está disposto a se entregar.

Acompanhado do advogado Oscar Damasceno Filho, Tato prestou depoimento ao delegado-geral da Polícia Civil do Pará, Luiz Fernandes Rocha, e negou participação no crime. Ele admitiu, porém, que os pistoleiros Raifran das Neves Sales e Uilquelano de Souza Pinto, o Eduardo, já identificados por testemunhas como matadores da freira, trabalhavam para ele recebendo R$15 por dia.

Tato diz que fugiu
com medo de vingança

Tato disse que, na hora do crime, estava bem perto de onde a missionária foi morta, em Anapu, derrubando árvores na floresta com motosserra. Ele disse que não ouviu os tiros, mas viu pessoas armadas e fugiu com medo de ser morto pelos trabalhadores rurais, por vingança.

— Se eu fico lá, tinha morrido — disse Tato, que também admitiu já ter cumprido pena em Afonso Cláudio, no Espírito Santo, cidade onde nasceu.

O fazendeiro foi levado à noite para o Centro de Recuperação Regional, um presídio de Altamira. Em entrevista coletiva dentro da cela, ele revelou que, na véspera do assassinato, viu irmã Dorothy participando de reunião com os colonos do Programa de Desenvolvimento Sustentável (PDS), em Anapu.

— Ouvi a irmã dizendo que eles (os colonos) tinham de ganhar aquelas terras de qualquer maneira, que a terra era deles e que tinham de expulsar a gente de lá — contou Tato.

Apesar disso, garantiu que não tinha nada contra a freira. O fazendeiro estava escondido no município de Belo Monte, que fica a cerca de duas horas de carro de Altamira, na direção de Anapu. Disse que ficou três dias andando na mata até chegar lá.

De acordo com a polícia, Tato teria contratado os pistoleiros Raifran e Eduardo a mando do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura. O delegado Luiz Fernandes disse que o suspeito se entregou porque as investigações estavam no caminho certo.

— Isso fez com que conseguíssemos que o suspeito se entregasse, acompanhado de um advogado. E como as investigações estão bastante adiantadas, dentro de algumas horas é provável que os outros suspeitos também sejam presos.

Polícia deteve homem acusado de ajudar na fuga

Na noite de sexta-feira, a Polícia Civil também deteve na região um homem suspeito de ter ajudado na fuga do fazendeiro Bida. Identificado apenas por Júnior, o homem teria viajado de Altamira até a fazenda de Bida, na região de Anapu, para resgatá-lo depois do crime. Júnior foi liberado horas depois, após prestar depoimento. Ele negou que tenha participação no assassinato. Um delegado da Polícia Civil informou que, ao chegar à fazenda para dar fuga a Bida, o fazendeiro já teria fugido.

Ontem, a Polícia Federal fazia buscas pela manhã em estradas vicinais às margens da rodovia Transamazônica para tentar prender os dois pistoleiros suspeitos da morte da freira. Testemunhas informaram aos agentes federais que os dois pistoleiros, Eduardo e Raifran, teriam ficado na região pelo menos até a última terça-feira. Eles pediram abrigo e comida em duas casas localizadas a cerca de 30 quilômetros do local do crime.

A Polícia Federal acredita que eles ainda possam estar escondidos na área. A dupla, que chegara a Anapu há pouco mais de um mês, não conhece profundamente as matas da região. A suspeita é de que eles estejam fugindo à pé no rumo da rodovia Transamazônica. O Exército continuava ontem patrulhando as ruas de Anapu e dando apoio logístico à Polícia Civil e à Polícia Federal.

O Globo, 20/02/2005, O País, p.3-4

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