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Crime ambiental e erro historico

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: MAIA, César
25 de Fev de 2005

Crime ambiental e erro histórico

César Maia

Um dos patrimônios ambientais do Estado do Rio de Janeiro é a Restinga da Marambaia, preservada graças à presença das Forças Armadas. O primeiro grande trecho é controlado pelo Exército, uma faixa intermediária pela Aeronáutica e a parte final pela Marinha. Esta última é um complexo de praias, ilhas e montes que constituem uma das poucas pérolas preservadas de nosso litoral. Lá, a Marinha mantém um de seus centros de adestramento e consegue manter o equilíbrio entre suas atividades de treinamento de pessoal - em especial fuzileiros navais - a preservação da área - ambiental e historicamente - e o apoio à população local remanescente. Esta área de marinha é chamada Ilha da Marambaia.

No século XIX, um dos maiores negociantes de escravos usou a Ilha da Marambaia para recepção de negros vindos da África, recuperação física dos mesmos, cinicamente conhecida na época como engorda, e revenda. Ainda se pode ver ali uma senzala remanescente com suas paredes de pedra preservadas, hoje adaptada para ser um hotel oficial de trânsito. Décadas mais tarde, o presidente Getúlio Vargas transformou a área num equipamento social onde jovens em situação de exclusão social aprendiam técnicas de pesca. Construiu os prédios para as aulas, os dormitórios para os alunos, uma igreja e casas para a direção, sendo que uma delas era ocupada por ele mesmo, o que até hoje mexe com a imaginação da população.

Este conjunto foi abandonado progressivamente, as terras foram parcialmente invadidas, começando assim um processo de deterioração. A partir de 1970, a Marinha assumiu a área por cessão patrimonial da União, iniciando um trabalho de preservação, recuperação e adaptação das instalações, que passaram a abrigar o centro especial de treinamento. A tradição dos presidentes da República visitarem o local e conhecerem este patrimônio natural, além de sua história, foi mantida. Anos depois, esta área foi declarada Área de Preservação Ambiental (APA). Por outro lado, esta ocupação auxilia a patrulha do mar e evita a aproximação de navios que poderiam descarregar contrabando e drogas.

Surpreendentemente, no Diário Oficial da União de 21 de novembro de 2003, o presidente da República publicou o decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, no qual define as condições da Ilha da Marambaia - enquanto sede de quilombos - e estabelece direitos sobre o solo. Certamente assessorado por visões gráficas equivocadas e distantes da realidade, o decreto supõe que na área teriam existido quilombos e que, com isso, os descendentes dos quilombolas hoje teriam direitos sobre o solo. Em primeiro lugar, é um erro supor que teriam existido quilombos numa área como aquela, com as características comerciais citadas, e onde a impossível mobilidade e a arriscada proximidade certamente impediriam que as fugas produzissem quilombos.

O que nos diz o decreto é algo no mínimo ingênuo. Garante aos descendentes dos hipotéticos quilombolas o controle do solo. E, como identificá-los não seria tarefa simples, afirma no caput do artigo 2 e em seu parágrafo 1 que esta identificação será feita por "auto-atribuição", ou seja: quem se disser descendente dos hipotéticos quilombos terá imediatamente direito à terra que teria pertencido a seus ancestrais. Nenhuma análise maior se exige além da autodeclaração. É evidente que o método utilizado abre espaço para um sem-número de alegações e para o parcelamento completo da Ilha da Marambaia.

Imaginava-se que após este decreto viria algum tipo de regulamentação que prevenisse os inevitáveis excessos. Mas o artigo 13 do decreto 4.887/2003, em seu caput e parágrafo 2, atribui ao Incra a tarefa de considerar desapropriadas as áreas que pertenceriam aos descendentes autodeclarados dos quilombolas.

O mais espantoso disso tudo é que o Incra já está na Ilha da Marambaia fazendo a demarcação e se preparando para a desapropriação liminar da área de controle da Marinha. As primeiras observações indicam que, quando muito, restará à Marinha 15% da área. A APA existente se transformará inicialmente em área residencial precária de economia informal, vinculada à pesca artesanal. E, depois... a experiência de áreas próximas é suficiente para sinalizar o que ocorrerá.

É fato que existem no STF argüições de inconstitucionalidade do decreto 4.887/2003. Mas um erro grave como esse, cometido pela assessoria do presidente da República, deveria ser evitado por ato do próprio presidente, cancelando o decreto. Assim como outros presidentes, o presidente Lula poderia visitar o local, passar um fim de semana lá, ver e ouvir, conhecer e avaliar, e por fim evitar que em seu passivo fique um ato de tamanha predação contra o patrimônio histórico e natural do Estado do Rio de Janeiro. Tenho certeza de que uma visita de S. Excia. será suficiente para impedir um erro cujas conseqüências são irremediáveis.
CESAR MAIA é prefeito do Rio.

O Globo, 25/02/2005, Opinião, p. 7

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