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Cresce presença evangélica entre índios

FSP, Brasil, p. A11
18 de Abr de 2005

Cresce presença evangélica entre índios
Número de povos com presença de protestantes aumentou 75,5% em 10 anos, afirma associação

Rafael Cariello
Enviado Especial a Cuizbá (MT)

"Senhor, nosso Deus, queremos pedir pelo povo muçulmano, esse povo que está oprimido", diz, de cabeça baixa e olhos fechados, um dos presentes ao culto da manhã de quarta-feira na capela da escola-internato Ami, a 55 km de Cuiabá, em Mato Grosso.
De pé, diante dos bancos de madeira da capela, há pouco mais de 60 índios, vindos de várias partes do Brasil e representantes de 14 etnias. Embora alguns falem e compreendam o português com dificuldade, todos mantêm a cabeça inclinada e o silêncio respeitoso até que termine a oração, amém. Pedem por quem, ao contrário deles, ainda não conhece "a palavra do Senhor".
O Ami pretende formar os índios como vanguarda do trabalho missionário evangélico entre as populações indígenas do Brasil.
O internato, cujo nome em hebraico significa "meu povo", fica à margem da estrada que liga Cuiabá à Chapada dos Guimarães. Foi construído em 1995 por diferentes organizações evangélicas. Reúne 30 edificações simples, que se espalham pelo terreno inclinado em área pouco habitada.
Vindos de aldeias que já foram "alcançadas" por missionários brancos, jovens que trazem o sobrenome de seus povos, como César Xavante, Rafael Nambiquara e Marina Ayore, passam ao menos três anos em cursos de "Orientação Cristã", "Bíblia, Base da Fé", "História do Cristianismo".
Voltarão mais tarde para casa, deixando os missionários americanos e brasileiros que financiam e fazem funcionar a escola com a esperança de que contribuam, eles também, para um empreendimento que não pára de crescer.
Dados da AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras), que reúne organizações protestantes, mostram que o número de grupos indígenas "alcançados satisfatoriamente" ou "alcançados e com liderança autóctone" cresceu 75,5% em dez anos: de 53 povos, em 1995, para 93, hoje.
Os povos "sem presença missionária evangélica" caíram de 139, há dez anos, para 92, em 2005. Entre uma categoria e outra, há grupos intermediários, "alcançados insatisfatoriamente" ou "alcançados só por leigos".
O antropólogo da USP Marcos Rufino, que, no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, faz trabalho ainda não concluído de levantamento dessa presença entre índios, diz que os dados da AMTB "fazem sentido". "O cenário é de aumento mesmo."
Entre as duas datas limites do levantamento evangélico, os dados do Censo 2000 do IBGE tabulados pelo economista Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, revelam uma fotografia da "evangelização" dos índios.
Tomando a categoria "cor ou raça" assumida pelos entrevistados, o grupo em que há maior fatia de protestantes declarados é o dos indígenas. Entre eles, 22,4% se dizem protestantes, contra a média nacional, de 18%.
A razão óbvia e de boa-fé que move esses "jesuítas" do século 21 é a mesma que sempre motivou cristãos: ir e pregar o Evangelho.
Rufino menciona, entre os motivos para a expansão atual, a disputa entre diferentes denominações evangélicas. "Muitas missões protestantes acabaram tomando uma decisão tardia de entrar em áreas indígenas. Mas, quando uma missão vê que outras denominações estão entrando, isso provoca um ímpeto de querer estar presente também", ele diz.
Henrique Dias, 43, terena que é um dos diretores da escola, diz que várias denominações brasileiras e organizações missionárias norte-americanas mantêm o Ami -o custo mensal, diz, é R$ 10 mil.
Onze casais -seis brasileiros e cinco americanos- e um missionário alemão são os professores de 65 alunos (contados também seus filhos, são 107 índios vivendo por lá). Metade faz "curso paralelo", no qual aprendem português.
A outra metade freqüenta os cursos religiosos. Terminado o culto da manhã, 12 alunos ocupam a sala de aula localizada na casa ao lado. O americano Eric Peterson, 30, há três anos na escola, começa seu curso de cristianismo. Pergunta a Pedrinho Nambiquara por que Salomão se afastou de Deus. "Não lembro mais", responde o aluno. "Então, quantos livros a Bíblia tem?", pergunta. "66", diz Pedrinho. "Pode sentar."
A "boa nova" anunciada diariamente tem como objetivo permitir que os índios, "que são místicos", abandonem seus "medos" -a crença em espíritos que podem lhes fazer mal.
Dificuldade
Na hora do almoço, no refeitório, o aluno Inácio Nambiquara fala sobre as dificuldades de converter seu povo depois que terminar o curso, no fim do ano. Entre o arroz com feijão mais ensopado de carne e a sobremesa, explica que o cristianismo é mais que religião, "é coisa seríssima". "A vida que eu tenho é Deus que nos dá. Deus, que morreu por nós."
Afirma não crer "nos espíritos do mundo", mas diz também que é difícil convencer seus vizinhos de aldeia, no noroeste de Mato Grosso, do mesmo.
"Eles falam que ser cristão é cultura do branco, mas não é. É para todos", comenta. "Falam que o cristianismo muda a nossa cultura. Falam do cristianismo, mas antigamente não tinha bebida", diz, ao defender sua nova fé e apontar outra mudança em que, para ele, mora perigo maior.
Entidades
Os dois principais grupos americanos que financiam o internato Ami trabalham há décadas na tentativa de conversão religiosa dos índios. A SIL (Sociedade Internacional de Lingüística, em português) está presente no país desde a década de 50 e hoje tem 20 integrantes trabalhando com 11 povos indígenas. Um dos objetivos é verter para as línguas dos índios o Novo Testamento.
O administrador da organização em Cuiabá, Alec Harrison, disse à Folha que a SIL doa à escola US$ 12.200 por ano, desde a fundação, em 1995.
O principal empreendimento da South America Mission no país é o internato. Procurada, não informou quantos missionários tem no país nem em quantos povos atua. O diretor de desenvolvimento do grupo, Jeff Orcutt, diz que o objetivo é ajudar índios a se tornarem "brasileiros melhores".
Colaborou Antônio Gois, da Sucursal do Rio

FSP, 18/04/2005, Brasil, p. A11

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