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Cortando na carne

FSP, Especial/Tudo Sobre Desmatamento, p. 5
Autor: LEITE, Marcelo
24 de Set de 2015

Cortando na carne
Culpada por metade das emissões brasileiras de gases tóxicos, a atrasada pecuária ensaia mudança cultural que permita produzir alimento sem estragar a floresta

MARCELO LEITE ENVIADO ESPECIAL A ALTA FLORESTA (MT) E PARAGOMINAS (PA)

Caprichosa, uma novilha de 200 kg, resiste a entrar no corredor que conduz ao "tronco" de pesagem. Menos de dez metros a separam da armadilha de madeira e metal acoplada à balança.
Sacos de aniagem na ponta de varas fazem as vezes das bandeirolas, recomendadas nas boas práticas da pecuária para conduzir o animal sem irritá-lo, pois o estresse afeta a qualidade da carne. Caprichosa as ignora e pula de lá para cá, decidida a não entrar no corredor. Quando finalmente entra, empaca.
Ronildo Martins Carvalho, gerente da Fazenda Nelore Beviláqua, em Alta Floresta (MT), troca a bandeirola pela haste de metal na ponta de um cabo elétrico e aplica choques na novilha.
Cada descarga deixa um hematoma na carne, que só se tornará visível na carcaça, após o abate. A marca acaba removida pelo frigorífico e resulta em perda de remuneração para o produtor.
Na Beviláqua, os peões ao menos tentam usar bandeirolas, enquanto noutras fazendas impera a eletricidade.
O dentista Celso Crespim Beviláqua, 59, dono da área de 1.700 hectares e presidente do sindicato rural de Alta Floresta, não parece se preocupar com Caprichosa, uma entre 29 milhões de cabeças de gado bovino de Mato Grosso e 212 milhões no Brasil.
Há mais de 3.500 reses na sua propriedade, e mil são vendidas para abate ao ano.
O dentista fechou o consultório após três décadas arrancando dentes em Alta Floresta. Recebia em ouro para extrair a dor de homens como Chico Máquina e Marcha Lenta. Naqueles tempos de fartura, acumulou capital. Hoje investe em tecnologia: "Precisamos melhorar a capacidade de aproveitar a terra".
REVOLUÇÃO CULTURAL
As bandeirolas são apenas a parte mais visível da série de procedimentos que aguardam uma revolução cultural na pecuária de Mato Grosso, território do maior rebanho do Brasil. Por causa dele, o Estado é o quarto maior emissor de gases do efeito estufa no país em termos absolutos. Por habitante, é o líder isolado. Produz 46,4 toneladas de CO anuais per capita, seis vezes mais que a média nacional e no mesmo nível do campeão mundial, o Qatar.
A digestão do capim no rúmen de bois e vacas produz metano (CH), gás do efeito estufa (GEE). Cada grama de CH retém na atmosfera tanta radiação solar quanto mais de 20 g de gás carbônico (CO). A pecuária também contribui para emissões de CO com desmatamento e de outros gases associados a fertilizantes e resíduos animais.
Da área já desmatada na Amazônia Legal (764.225 km², uma Espanha e meia), dois terços viraram pasto. Somando a emissão de CO da floresta derrubada para pecuária com o CH expelido pelo gado, a atividade responde por metade (49%) das emissões brasileiras. A poluição é resultado direto de sua ineficiência: menos de cem reses por quilômetro quadrado.
Mato Grosso tem 192 mil km² de pastos degradados. Sua recuperação reduziria a contribuição desproporcional do Estado para a mudança climática. Com alimento melhor, o gado cresce mais rápido e emite menos CH.
Com esse objetivo, a ONG ICV (Instituto Centro de Vida) lançou em 2012 o Novo Campo. A Fazenda Beviláqua é uma das dez pioneiras nesse programa para pecuária de baixo carbono (hoje há 33, a meta é chegar a 300 em 2017).
O dentista/pecuarista, seguindo consultores indicados pelo ICV, separou 42 de seus 1.700 hectares para implantar a chamada unidade de referência tecnológica (URT), uma fazenda-modelo dentro da própria fazenda.
Mesmo quem não tem o olho treinado percebe a diferença entre os pastos. De um lado da estrada de terra, a cerca de arame farpado tem muitos mourões. Proliferam cupins e um arbusto invasor, o assa-peixe. O capim é mirrado e há grandes manchas em que ele foi dizimado.
Do outro lado, o capim brilha, e os tufos alcançam até 50 cm de altura. A cerca é eletrificada, com mourões espaçados por até 20 metros. Linhas de eucaliptos ou pinho cuiabano (paricá) fornecem sombra entre piquetes.
Essas subdivisões do pasto são a ferramenta para que o gado só coma o capim até a altura certa (sem danificá-lo), quando então a boiada passa para o piquete seguinte. No centro da unidade, a "praça de alimentação" oferece cochos para suplementação alimentar e bebedouro.
PASTOS DOENTES
O foco da intervenção recai na reforma dos pastos doentes. É preciso revolver a terra, corrigir o solo e adubá-lo antes de semear o capim.
Beviláqua consegue colocar até quatro vezes mais cabeças na unidade do que no restante da fazenda. O ICV, que paga metade da assistência técnica, orça em R$ 2.800 por hectare o investimento para reformar a pastagem, mas o dentista gastou mais, R$ 3.500, porque decidiu também fazer curvas de nível para diminuir a perda de solo fértil nas chuvas, carregado pelas enxurradas. Gostou tanto do resultado que fez mais 130 hectares de recuperação por conta própria.
Pecuaristas que decidem adotar boas práticas, uma minoria, enfrentam barreiras. A começar pela carência de mão de obra treinada para dar assistência técnica e trabalhar nas propriedades.
Outro obstáculo é a dificuldade de crédito. O governo destinou R$ 216,6 bilhões para financiar o agronegócio e a agricultura familiar na safra 2015/16, mas só R$ 2,5 bilhões (pouco mais de 1%) rubricados para o Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), o que dá uma boa medida da prioridade do tema em Brasília.
NA INTERNET
Assista ao vídeo em
folha.com/152612

GLOSSÁRIO
RÚMEN
Primeira câmara do estômago de animais ruminantes, como as vacas. Abriga microrganismos que ajudam a decompor as células vegetais
MOURÕES
Estacas utilizadas para prender o arame de cercas em fazendas
PLANO ABC (Agricultura de Baixo Carbono)
Programa do Ministério da Agricultura para promover a produção sustentável.
REDD+
Sigla para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal. É um mecanismo que tem como princípio remunerar com créditos de carbono iniciativas de preservação e recuperação de áreas de florestas

FSP, 24/09/2015, Especial/Tudo Sobre Desmatamento, p. 5

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial2/234217-cortando-na-carne.sht…

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial2/234217-cortando-na-carne.sht…

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