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Corpo Selvagem

OESP, Caderno 2, p. C1, C3
Autor: CASTRO, Eduardo Viveiros de
28 de Ago de 2015

Corpo Selvagem
Fotos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro reúnem índios a amigos outsiders em exposição
Exposição realizada no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo

Os índios continuam peregrinando pelo território brasileiro. Insubordinados, eles resistem ao genocídio cultural porque, no passado, conheceram o extermínio do corpo. Já viram, portanto, o fim do mundo, em 1500, e sabem como é, como diz o antropólogo carioca Eduardo Viveiros de Castro, homenageado na exposição Variações do Corpo Selvagem, que o Sesc Ipiranga abre neste sábado, 29, às 16 horas, com curadoria dos escritores e professores Eduardo Sterzi e Veronica Stigger.
A mostra reúne 337 fotografias feitas pelo etnólogo, que foi considerado pelo colega Lévi-Strauss o fundador de uma nova escola de antropologia, conhecida como perspectivismo ameríndio. De modo bastante sintético, o perspectivismo de Viveiros de Castro se diferencia do relativismo cultural por entender que, no mundo indígena, os animais podem assumir a perspectiva humana, de maneira inversa ao que se passa no mundo dos brancos, submetido ao princípio de que a cultura é construída, e a natureza, imutável. Para o índio, o dado universal é justamente o contrário: é a cultura. O corpo, esse, sim, se constrói, como mostram os rituais de pintura e escarificação entre os índios. Não existe nada de natural na natureza. Para eles, ela é sobrenatural.
A exposição dialoga com o perspectivismo ameríndio de forma original, estabelecendo relações entre as fotos feitas nos últimos 40 anos pelo antropólogo nas tribos com as quais teve contato e sequências de stills dos filmes dirigidos pelo amigo Ivan Cardoso, com quem colaborou em algumas de suas produções, entre elas como roteirista de A História do Olho, baseado no livro homônimo de Georges Bataille, com Claudia Ohana e Mustapha Barat.
Se o livro de Bataille trata de uma história libertina do corpo, acompanhando as experiências sexuais do narrador, a exposição de fotos no Sesc Ipiranga é uma história libertária desse mesmo corpo - tanto entre os índios como nos filmes de Ivan Cardoso, entre os quais o experimental H.O. (1979) com o artista Hélio Oiticica.
Os curadores ocuparam todo o Sesc Ipiranga com a mostra, inclusive os arredores, instalando nas alamedas do parque da Independência painéis com fotos dos filmes de Cardoso, entre eles O Segredo da Múmia, clássico do "terrir", gênero criado por ele que funde a linguagem dos filmes de terror com o humor camp, desmontando o cinema convencional com o deboche tropicalista.
Ivan Cardoso é amigo de infância de Viveiros de Castro, que, descendente de senadores e ministros da República, foi garoto rebelde, frequentador da casa de Oiticica. O artista, como se sabe, circulava tanto em Ipanema como no morro da Mangueira, produzindo uma arte marginal hoje disputada por ricos colecionadores. Oiticica (1937-1980) é autor de uma série que ficou popular, a dos parangolés, resultado de suas experiências com os passistas da Mangueira. O parangolé, que pode ser tanto uma capa como um estandarte, corresponderia a uma tentativa de construção de um corpo como fazem os índios ao escarificar a pele ou pintar o rosto. Numa das paredes da primeira sala da exposição, o poeta Wally Salomão aparece com um "parangolé" de rosto numa foto colocada ao lado de um índio na mesma situação.
"Tentamos na mostra estabelecer rimas visuais, começando já no prólogo, a parede frontal, por evidenciar a relação entre o corpo hierático de um índio e o de um passista da Mangueira vestido com um parangolé", explicam os curadores. Da mesma forma que os índios fazem associações aparentemente malucas para entender os fenômenos e o universo, os curadores recorrem a analogias entre as imagens das tribos indígenas e urbanas - no caso, a de Oiticica e Ivan Cardoso - em busca de sinais que as aproximem. O resultado é desestabilizador.

Exposição no Sesc Ipiranga mostra afinidades entre antípodas

Se o corpo ocupa lugar de destaque na cosmologia indígena, a alma é inconstante, como sugere a leitura dos livros do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Isso justifica a busca incessante de afinidades eletivas entre eles, uma vez que os laços biológicos não têm para as populações indígenas o mesmo valor que o sangue familiar para os caucasianos "civilizados". Foi mais ou menos a ideia de que é preciso "construir" um corpo que levou os curadores Eduardo Sterzi e Veronica Stigger a organizar a exposição Variações do Corpo Selvagem como um percurso que vai do registro dessa construção corporal à destruição ecocida que avança sobre a Amazônia.
As últimas imagens da exposição são apocalípticas. A Amazônia invadida pelos colonos brancos, as queimadas, a construção de hidrelétricas, há de tudo um pouco nesse segmento final, retrato amargo de um país que renegou um modelo de civilização que considera atrasada, primitiva. Também por isso, a exposição de fotos de Viveiros de Castro tem um papel didático na formação das novas gerações, submetidas ao discurso desenvolvimentista do Brasil grande, mesmo que seja à custa do sacrifício indígena. Viveiros de Castro, aliás, lançou no ano passado, em colaboração com Deborah Danowski, um livro assustador sobre o apocalipse, Há Mundo por Vir? (Cultura e Barbárie em coedição com Instituto Socioambiental, R$ 35).
A escritora Veronica Stigger deve lançar ainda este ano um livro baseado na teoria etnológica de Viveiros de Castro, sua interpretação pessoal dirigida às crianças sobre o perspectivismo ameríndio. Em linhas gerais, o que Veronica vai tentar explicar é que o índio não existe no singular, mas no plural. "Todos somos índios no Brasil, exceto quem não é", costuma dizer o antropólogo. No livro infantil Onde a Onça Bebe Água, que será lançado pela editora Cosac Naify e marca sua primeira colaboração com Viveiros de Castro, Stigger ensina que uma onça - apenas uma besta para o homem branco - se encontra em outra dimensão na cultura indígena, podendo assumir uma perspectiva humana - a onça não se vê como onça, segundo algumas etnias, mas como gente, que come tapires (índios), suas presas. Para a lógica indígena, o mundo se divide entre caçadores e caça.
A entrada das fotos dos filmes de Ivan Cardoso na mostra, associadas às imagens registradas por Viveiros de Castro em tribos como os kulinas e os arawetés, tem um pouco esse viés canibal, uma cultura se alimentando da outra para sobreviver, como defendia o modernista Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago (1928). Cardoso deglutia os filmes de terror americanos e escancarava nossa precariedade associada à estética da fome vampiresca. Mortos-vivos no país da cobra grande. Há fotos engraçadíssimas do antropólogo, entre elas o de uma múmia de ray-ban (do filme O Segredo da Múmia, de 1981).
A amizade entre os dois é antiga. Na adolescência, o antropólogo, filho da próspera classe média carioca, morava na Gávea e conheceu uma turma maluca que fazia filmes experimentais em super 8, defumando a casa com a chamada erva maldita, como o fazia Hélio Oiticica, que frequentava tanto a elite do Museu de Arte Moderna como marginais da favela. Ivan Cardoso, também amigo de Oiticica, era o demolidor da construção formal. O poeta concreto Haroldo de Campos, inclusive, chamava essas suas intervenções fílmicas de "Mondrian no açougue", dando a entender que a ordem ortogonal do pintor holandês era sacudida pela desordem tropicalista de Cardoso.
Já Oiticica era uma espécie de xamã da turma, um ser com capacidade de chamar espíritos para a luta contra a repressão, imposta aos artistas durante a ditadura. Suas intervenções, após o abandono do construtivismo, do qual foi um dos representantes, significou o nascimento de movimentos culturais importantes como a Tropicália, cujo nome Caetano e Gil tomaram emprestado de uma instalação sua de mesmo nome, de 1967.
Há algo de tropicalista nas roupas que os índios usam em algumas fotos registradas por Viveiros de Castro. O curador Eduardo Sterzi chama a atenção para a de um índio com duas bolas de gás penduradas na cintura, dançando. As fotos não têm legendas, mas o conceito de cada parede está expresso em frases paródicas sobre o trabalho como a "essência" do homem, mostrando como o ócio criador é muito mais importante para os índios. Se existe uma lição que eles ensinaram ao homem branco, segundo o antropólogo, é que podemos viver melhor num mundo pior, dominado pela ânsia de consumo e de ser consumido, baseado na obsolescência programada. Um antídoto para esse veneno está no Sesc Ipiranga. É só tomar. E é grátis. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO, FOTÓGRAFO
Sesc Ipiranga. R. Bom Pastor, 822, 3340-2000. 7h30/21h30 (sáb., 10h/21h30; dom., 10h/ 17h30; fecha 2ª). Grátis. Até 29/11.

OESP, 28/08/2015, Caderno 2, p. C1, C3

http://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,fotos-do-antropologo-eduar…

https://www.dgabc.com.br/Noticia/1553924/exposicao-no-sesc-ipiranga-mos…

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