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Coronavírus e indígenas: um novo extermínio dos povos nativos

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01 de Dez de 2020

Coronavírus e indígenas: um novo extermínio dos povos nativos
Novo coronavírus já infectou 34, 2 mil indígenas e matou 489 deles, segundo o Ministério da Saúde. No entanto, dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mostram que esse número é muito maior

WALDICK JUNIOR

Manaus - Durante o período colonial do Brasil, doenças trazidas por europeus causaram um genocídio indígena, ocasião em que mais de três milhões de pessoas que viviam nessas terras, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), morreram. Como não havia amparo ou assistência, desapareceram povos inteiros.

A história se repete em 2020, quando o novo coronavírus já infectou, apenas na zona rural, 34, 2 mil indígenas e matou 489 deles, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde.

Uma dessas vítimas é Raimundo Cardoso, indígena munduruku de 84 anos que vivia na aldeia Kwatá, nas proximidades do município de Nova Olinda do Norte (distante a 126 quilômetros de Manaus). Ele e a família foram os primeiros casos confirmados da doença, na comunidade onde moravam.

"Graças a Deus que eu ainda resisti, mas ele não resistiu. Dos nossos seis filhos, três ficaram doentes e saíram vivos", conta a esposa do falecido, Maria Brasil, também do povo munduruku.

A idosa conversou com a equipe do EM TEMPO na nova casa onde mora, no bairro Xicolândia, periferia da cidade de Nova Olinda do Norte. A casa é de alvenaria, ao lado de outras construções mistas, de tijolo e madeira, numa rua de terra batida.

"Não voltamos para a aldeia por causa da morte do meu marido. De lá eu já vim quase morrendo, pois não consegui atendimento por parte da Funai ou da Casa de Apoio ao Indígena. As enfermeiras não iam visitar nós, tinham medo de nós, o agente de saúde tinha medo de nós. Acho que medo da gente passar a doença pra eles. Eu nem tenho muita lembrança do que se passou, nem lembro direito da morte do Raimundo, eu estava mais morta do que viva", relata a anciã.

Maria e o marido adoeceram juntos e evoluíram para o estado grave da Covid-19. Eles ainda permaneceram por mais de uma semana na aldeia, com sintomas da doença, mas não lhes foi permitida a saída para um hospital, até que o resultado do exame fosse confirmado. Para a família, o patriarca morreu por causa da demora no atendimento.

"A gente não tinha apoio, mas depois que meu pai veio para Nova Olinda fazer o exame, os agentes vieram rápido. Assim que amanheceu, minha irmã foi avisar na aldeia que eles fizeram o teste e deu positivo. A gente ficou triste, porque a gente pensava que não era essa doença", conta Anubia Brasil, filha do falecido.

O casal de idoso foi encaminhado para tratamento no hospital Dr. Galo Manoel, em Nova Olinda. Maria Brasil recebeu alta dias depois, mas o marido permaneceu internado. "Eles disseram que meu pai precisava ir para Manaus porque lá havia mais recursos. Mas começaram com aquela história de 'ele viaja hoje, ele viaja amanhã'. No dia marcado, era para ele viajar às 5h. Fomos todos esperar na porta do hospital, mas quando deu 4h, ele faleceu, não conseguiu esperar", contou a filha.

À época, a Secretaria de Estado de Saúde (Susam) lamentou a morte do idoso e informou que ele seria o quarto da fila para ser transferido para Manaus. A viagem estava prevista para o dia 29 de maio, às 8h, mas ele faleceu antes do embarque.

"A Susam garante que a morte do idoso não ocorreu por falta de leito no Hospital de Combate à Covid-19 [...] o pedido de transferência do paciente foi inserido no Sister [sistema que as unidades de saúde usam para pedir transferências de pacientes] na quarta-feira (27) e não foi especificado se o mesmo era indígena. O paciente era o quarto da fila do município de Nova Olinda do Norte. No dia 28, um dia após o pedido, foram transferidos dois pacientes mais graves do município", diz a nota.

Embora alegue que não havia falta de leitos no hospital para Covid-19 em Manaus, houve falta de leitos na UTI aérea que fazia a remoção dos pacientes de Nova Olinda para a capital, como a própria secretaria específica. O fato de Raimundo não ter sido registrado como indígena é apontado pelos parentes como erro por parte do sistema de saúde. Alguns inclusive são registrados como 'pardos'.

Um entre muitos
A história de Raimundo é relatada por uma mulher que perdeu seu marido, uma filha que ficou sem pai, mas representa todo o dilema vivido pelas tribos indígenas em tempos de pandemia. O idoso não é a única vítima indígena da Covid-19, mas tem uma história parecida com muitas outras. Pessoas que morreram pela falta de assistência pela falta de estrutura em saúde, no interior de terras distantes de recursos, na Amazônia.

Até o dia 24 de novembro, quando essa reportagem foi escrita, o coronavírus havia matado 489 indígenas dos mais diferentes povos, e infectado outros 24.234. Os dados são do Ministério da Saúde, mas as principais associações indígenas rejeitam tais índices. porque ele leva em conta apenas os aldeados, sem considerar os que moram em perímetro urbano.

Por conta dessa incerteza de dados, muitos indígenas costumam utilizar as informações coletadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), no que diz respeito ao coronavírus nos povos tradicionais do País. De acordo com a sigla, até 24 de novembro, havia 39.978 infectados e 880 mortos, um número maior do que o registrado pelo governo federal.

A Sesai rebate as críticas feitas por associações indígenas sobre não considerar indígenas não aldeados em suas estatísticas. Segundo a pasta, não há "amparo legal" para isso.

"Quando um indígena é aldeado, cabe à Sesai o atendimento de atenção primária e articulação com os demais integrantes do SUS (estados e municípios) para os casos que requeiram atendimento de média e alta complexidade, situação em que a Sesai acompanha o paciente do início ao fim do tratamento. Logo, caso os indígenas não sejam aldeados, os atendimentos são feitos diretamente pelos estados e pelos municípios onde moram", defende a pasta, em seu relatório de ações.

Contradição do governo
Além da incerteza dos dados, o governo federal está envolto em outra condição no que diz respeito à proteção dos indígenas durante esse período. Ainda no dia 18 de março, uma semana depois de a Covid-19 ter sido declarada pandemia, a Fundação Nacional do Índio (Funai) proibiu a entrada de turistas em aldeias indígenas. Além disso, orientou para que indígenas se isolassem nas aldeias para evitar o contágio pelo novo coronavírus.

Já no início de abril, depois de muita pressão, o governo federal sancionou o auxílio emergencial de R$ 600 para auxiliar as famílias mais pobres na pandemia. Para solicitar o auxílio, as pessoas precisam baixar um aplicativo e depois irem até uma agência para sacar o benefício.

Organizações indígenas e de proteção ao meio ambiente apontam contradições nas duas informações, já que, enquanto indígenas são orientados a ficar nas aldeias, também precisam se locomover não apenas para sacar o auxílio, mas também solicitá-lo, já que nas comunidades a internet é quase inexistente.

"Para quem não tiver acesso à internet, porém, o governo orienta a fazer o procedimento nas agências da Caixa ou em casas lotéricas, solução que pode agravar as filas e aglomerações que já se formam em todo o país. Essa e outras recomendações não encontram sentido nas realidades específicas de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas e podem prejudicá-las ainda mais", diz uma publicação no site do Instituto Socioambiental (ISA), onde este responde o que indígenas precisam saber sobre o auxílio emergencial.

Bolsa família e auxílio emergencial 'infectaram' indígenas

Anubia Brasil, filha do idoso munduruku que faleceu, diz que uma das hipóteses para o coronavírus ter chegado na aldeia é por meio do vai e vem dos indígenas que precisaram sair para sacar os benefícios governamentais. Isso acontece porque, a maioria deles têm como complementação de renda o Bolsa Família ou a aposentadoria, como era o caso do Raimundo Cardoso.

"Logo no início da Covid-19, não deixaram ninguém vir para cá para cidade, só viemos porque era mesmo preciso, porque lá onde a gente vive na aldeia, não tem o que é necessário para gente comprar. Eu vim receber o dinheiro da minha mãe e do meu pai, que era da aposentadoria, mas voltei para lá. Era assim, logo no início muitos indígenas vinham receber o dinheiro e voltavam. Acho que isso pode ter levado à doença para lá sim, porque dinheiro todo mundo pega e muitas vezes os parentes vinham com luva, máscara, mas mesmo assim pegaram a doença", conta ela.

Durante a pandemia, o Ministério da Cidadania, responsável por pagar o Bolsa Família, lançou uma cartilha informacional para os beneficiários. Além de tratar de temas como quem pode receber o auxílio e quais documentos são necessários, as instruções tratam também das pessoas que moram em áreas distantes ou com dificuldade de internet.

A cartilha foi enviada ao EM TEMPO, quando este solicitou do governo federal uma posição sobre quais medidas estavam sendo tomadas para ajudar ribeirinhos, indígenas e pessoas que moram em áreas de difícil acesso. O documento trata tanto do Bolsa Família quanto do Auxílio Emergencial da pandemia.

Para quem tem dificuldade de acesso à internet na hora de solicitar algum dos benefícios, o Ministério da Cidadania aconselha que espere para ir resolver a situação em uma cidade mais próxima. O mesmo vale para quem já solicitou o benefício e necessita de outros tipos de atendimento, como saque de valores.

A pasta não dá outras opções além da possibilidade de as pessoas esperarem para tentar requerer os auxílios em uma cidade mais próxima, ou de gastar dinheiro e se arriscar para conseguir ser atendido em uma agência bancária ou lotérica.

O atendimento para indígenas com Covid-19

O atendimento médico nos povos da floresta é realizado por meio dos 34 Distritos Especiais de Saúde Indígena (Dsei) distribuídos por todo o Brasil. Eles atendem cerca de 800 mil indígenas aldeados, o que é quase toda a população indígena do País (869,9 mil), segundo a Funai.

Casa de Apoio ao Indígena em Nova Olinda do Norte
Casa de Apoio ao Indígena em Nova Olinda do Norte | Foto: Brayan Riker
A distância das localidades, muitas em florestas, é um problema para atendimento de saúde em casos graves. O indígena que fica doente no Amazonas, por exemplo, precisa viajar, em média, mais de 400 km para receber atendimento. É a maior distância do Brasil para receber tratamento para coronavírus em estágios mais críticos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O indígena que apresenta sinais de alguma doença em sua aldeia, é atendido pela equipe de saúde do polo base. Esses profissionais de saúde encaminham o paciente para o hospital mais próximo. Quando o indígena não fica internado na unidade hospitalar, é encaminhado para uma casa de parentes na cidade ou para a Casa de Saúde Indígena (Casai) mais próxima, que funciona como um local de acolhimento.

Respeito à cultura no atendimento

Para saber mais sobre o atendimento a indígenas com Covid-19, o EM TEMPO visitou ainda uma ala exclusiva para pacientes com coronavírus que têm, entre seus internados, indígenas dos municípios de Borba, Nova Olinda do Norte e Novo Aripuanã.

"A gente tenta se adaptar aos hábitos que eles trazem da cultura deles. A grande maioria pede farinha de mandioca nas refeições, ou não aceita o uso do ar-condicionado. Tentamos nos adaptar a esses costumes para eles perceberem que estão sendo cuidados. O grande problema é a organização social. Sabemos que o coronavírus pede isolamento, mas os indígenas costumam andar sempre com algum parente, e por isso permitimos que alguns internados possam ter acompanhante, com a condição de que ambos estejam com o diagnóstico positivo para a doença", explica Geosimara Gama, médica epidemiologista do município e coordenadora da ala Covid-19 do hospital Dr. Galo Manoel.

Outros dados importantes

O Amazonas é o estado do Brasil com mais óbitos de indígenas pela Covid-19. Foram 211 casos. Mato Grosso vem logo atrás com 138 casos, seguido de Mato Grosso do Sul, com 93.

São 258 indígenas mortos não tiveram identificado o seu povo, sendo esse o maior número na comparação de mortes por etnia. Os Xavante foram os que mais perderam parentes (68), de acordo com os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Edição: Gláucia Chair e Rebeca Mota

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