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Autor: Inory Kanamari
16 de Out de 2024
Como advogada, é com profundo senso de responsabilidade que abordo a questão da tradução da Constituição Federal de 1988 para o Nheengatu. Este é um tema que, embora amplamente comemorado pela mídia, exige uma análise crítica minuciosa para que possamos compreender suas implicações no contexto dos direitos indígenas e da inclusão efetiva das populações no sistema jurídico brasileiro.
É importante destacar que a Amazônia brasileira, onde habitam cerca de 180 povos indígenas, como apontam os dados do IBGE 2022, mesmo com toda essa vasta diversidade étnica e cultural, muitos desses povos enfrentam a perda de suas línguas maternas em decorrência da imposição do português, a língua oficial do País. No caso do povo indígena Baré, por exemplo, essa perda da língua materna, resultou na adoção do nheengatu, uma variante da chamada "língua geral", desenvolvida pelos jesuítas durante o período colonial. É crucial entender que o nheengatu, embora reconhecido como uma língua indígena, foi uma ferramenta de controle e dominação, utilizada para facilitar a assimilação dos povos originários à cultura europeia e ao sistema cristão.
Essa imposição linguística de séculos atrás ressurge na contemporaneidade sob a forma de uma nova narrativa: a de que a tradução da Constituição para o nheengatu representaria um marco de respeito e inclusão dos povos indígenas. Contudo, ao examinar as razões subjacentes a essa ação, torna-se evidente que ela foi motivada em grande parte por pressões internacionais, particularmente no contexto da Década Internacional das Línguas Indígenas, promovida pela ONU. O que poderia ter sido uma verdadeira inclusão corre o risco de se revelar uma resposta superficial a essas exigências globais, sem considerar adequadamente a diversidade linguística dos povos indígenas brasileiros.
A escolha do nheengatu como língua para a tradução da Constituição levanta questionamentos. Primeiramente, essa decisão foi tomada sem a devida consulta às comunidades indígenas como um todo, especialmente àquelas que ainda mantêm vivas suas línguas originárias. O nheengatu é falado principalmente por povos que, ao longo do tempo, perderam suas línguas maternas. Ela não representa, portanto, a pluralidade linguística existente entre os povos indígenas no Brasil. Tal como ocorre em muitos outros aspectos da política indigenista, a decisão foi tomada sem uma verdadeira participação dos interessados, reproduzindo um padrão histórico de exclusão.
Como operadora do direito, é impossível não destacar que a tradução de uma obra tão complexa como a Constituição, com seu vocabulário jurídico denso, para uma língua que não tem equivalentes diretos para muitos termos legais, coloca desafios significativos. Isso levou à simplificação de diversos artigos, numa tentativa de torná-los compreensíveis para os falantes de nheengatu. Embora a intenção fosse nobre, a execução deixou a desejar. A tradução limitada, distribuída em pequena escala e de forma restrita, acabou por beneficiar mais o aparato jurídico estatal do que os povos que supostamente deveriam ser incluídos por essa iniciativa.
A ausência de consulta prévia e efetiva dos povos indígenas nessa tradução é um exemplo clássico de como as políticas indigenistas no Brasil, muitas vezes, são construídas de fora para dentro. Ignora-se que o entendimento da realidade indígena requer uma abordagem diversa e respeitosa, que envolva diretamente os indígenas desde o início dos processos decisórios. Esse erro histórico de conduzir decisões sem a participação direta dos povos interessados reforça o distanciamento entre as realidades indígena e não indígena. As políticas, muitas vezes bem-intencionadas, acabam impondo soluções que, na prática, não refletem as verdadeiras necessidades ou aspirações dos povos originários.
A história dos povos indígenas no Brasil tem sido contada por outros, desde a "descoberta" do país pelos portugueses até as tentativas de inclusão através de legislações e projetos como a tradução da Constituição. No entanto, essa história precisa ser resgatada e recontada a partir da perspectiva indígena, com suas vozes, suas vivências e sua resistência. Somente com essa abordagem é que será possível corrigir as falhas e construir um futuro mais justo e inclusivo, onde a verdadeira diversidade cultural e linguística do país seja não apenas reconhecida, mas celebrada.
O desafio que permanece é garantir que as próximas iniciativas, seja no campo jurídico ou em qualquer outro, envolvam os povos indígenas como protagonistas. O Brasil precisa urgentemente avançar em direção a uma política que realmente valorize e preserve as línguas e culturas originárias, reconhecendo-as como parte intrínseca de sua identidade nacional. Isso exigirá não apenas a tradução de documentos, mas um comprometimento genuíno com a promoção de políticas educacionais, sociais e culturais que respeitem e fortaleçam a diversidade que torna este país único.
Como mulher indígena advogada, posso afirmar com convicção que a inclusão plena das populações indígenas no Brasil ainda é uma utopia distante. Embora muitas iniciativas tenham sido promovidas ao longo dos anos, a realidade nos mostra que essas ações muitas vezes carecem de profundidade, de efetiva participação e de um compromisso genuíno com os direitos e a dignidade dos povos originários.
É fundamental que o Brasil comece a perceber que não basta criar políticas públicas ou leis em nome da inclusão se essas ações não envolvem, desde o início, os verdadeiros interessados: os próprios indígenas. Não há como promover inclusão real sem a participação ativa dos povos indígenas em todas as fases do processo. É preciso ter a coragem de reconhecer que, historicamente, as decisões sobre questões indígenas no país têm sido tomadas de maneira unilateral, sem consulta adequada, e muitas vezes resultam em imposições, e não em soluções.
A sociedade brasileira, como um todo, ainda não desenvolveu o senso crítico necessário para entender que as inclusões destinadas aos povos indígenas são, em grande parte, superficiais. Há um discurso de inclusão, sim, mas a prática está longe de acompanhar essa retórica. O que temos, de fato, são iniciativas pontuais que não refletem a profundidade das questões que envolvem a preservação das culturas, línguas e modos de vida desses povos. E essas iniciativas, na maior parte do tempo, falham por não proporcionarem uma verdadeira transformação social.
A adoção de medidas como a tradução da Constituição para o nheengatu, por exemplo, é uma ação que, à primeira vista, parece um avanço. No entanto, quando analisada mais de perto, revela-se uma tentativa superficial de atender a pressões internacionais, sem considerar a real diversidade linguística dos povos indígenas brasileiros.
Se a intenção é promover inclusão, então essa inclusão deve ser autêntica, profunda e construída a partir de um diálogo genuíno com os povos indígenas. Cada ação, cada medida, deve ser pensada e implementada com a presença e o protagonismo dos indígenas do começo ao fim. Somente dessa forma poderemos evitar erros históricos que continuam a prejudicar essas comunidades e perpetuar a marginalização de suas vozes.
É imperativo que o Brasil promova avanços concretos e urgentes. Não há mais espaço para uma inclusão que existe apenas no papel, enquanto as culturas, tradições e línguas dos povos indígenas seguem ameaçadas de extinção. É preciso que haja um reconhecimento verdadeiro de que essas culturas são uma parte essencial da identidade nacional e que sua preservação é fundamental não apenas para os povos indígenas, mas para toda a sociedade brasileira.
É importante destacar, que o desaparecimento das línguas e tradições indígenas não representa apenas uma perda para essas comunidades, mas para toda a nação. As línguas originárias são portadoras de saberes ancestrais, de visões de mundo que enriquecem a diversidade cultural do Brasil. Sua extinção significaria o empobrecimento de nossa sociedade como um todo.
Portanto, o desafio que se impõe ao Brasil é gigantesco, mas não impossível. Precisamos de uma mudança de mentalidade, de uma sociedade mais crítica, consciente e disposta a repensar suas relações com os povos indígenas. Somente assim, poderemos alcançar uma inclusão verdadeira, que valorize e preserve as riquezas inestimáveis que esses povos representam. Até lá, a inclusão, tal como é apresentada hoje, permanece uma utopia.
(*) Inory Kanamari é articulista da Cenarium e a primeira advogada indígena do povo Kanamari. Está como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM, vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena Nheengatu no Conselho Nacional de Justiça, ativista, poetisa, membra na Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia (Alcama).
(*) Esse conteúdo é de responsabilidade do autor.
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