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Considerações a respeito dos procedimentos de regularização fundiária em territórios quilombolas

Observatório Quilombola (Ong KOINONIA)
Autor: Aline Lopes e Rosa Peralta
01 de Out de 2005

Nacional • set-out/2005
Considerações a respeito dos procedimentos de regularização fundiária em territórios quilombolas
Por: Por Aline Lopes e Rosa Peralta

Em todo o Estado brasileiro, a luta pela permanência na terra do movimento quilombola tem como principal obstáculo a lentidão dos processos burocráticos de regularização dos territórios e algumas lacunas e contradições na legislação referente ao tema.

Isso se deve, em grande parte, à forma como foi concebido o texto do Artigo 68 do ADCT da Constituição de 1988. Se por um lado nele é bastante claro que a propriedade da terra é reconhecida às comunidades remanescentes de quilombos, por outro não há indicações de como isso se dará na prática.

Para contornar essa situação, foram criados instrumentos infraconstitucionais. Primeiro, o decreto no 3.912, de 10 de setembro de 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e em 2003, o Decreto 4.887, do presidente Lula. Este último, que revogava o anterior, representou avanços. Os principais pontos foram: a garantia às comunidades ao auto-reconhecimento enquanto remanescentes de quilombos, tendo como fundamentação a convenção 169 da OIT (ver Boxe 1), que prevê o direito de auto-determinação dos povos indígenas e tribais; a transferência para o Incra das atribuições relativas aos procedimentos de regularização das terras ocupadas pelos quilombolas, que pelo decreto anterior eram de competência da FCP (Fundação Cultural Palmares), e a previsão de atos necessários à desapropriação de imóveis com título de domínio particular, quando couber.

Boxe 1

O que é a Convenção 169 da OIT?

Por meio desta Convenção, os países participantes da OIT, entre eles o Brasil, reconheceram, entre outras coisas, que:

- os povos indígenas e tribais (onde se incluem, por generalização, as comunidades quilombolas) têm a aspiração em a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram;

- esses povos, em diversas partes do mundo, não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão freqüentemente; Por isso, os países presentes, entre eles o Brasil, estabeleceram, entre outros compromissos:

- Que os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.

- E que essa ação deverá incluir medidas que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições.

A partir daí, o Incra elaborou uma primeira Instrução Normativa no 16, em 24 de março de 2004, que consiste em norma de efeito interno com o objetivo de estabelecer procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades de quilombos sob o comando do decreto.

A aplicação prática da instrução no 16 mostrou lacunas que o regulamento não contemplava, como os casos de sobreposição de títulos de propriedade válidos em território quilombola e a não previsão legal da obrigatoriedade de peças antropológicas no Relatório Técnico de Identificação.

Em 19 de setembro de 2005 é publicada nova Instrução Normativa do Incra, a no 20, que revoga a anterior e transfere os processos iniciados pela Instrução Normativa no 16 para serem regulados de acordo com a nova, aproveitando as etapas já concluídas que não estejam em desacordo com o regulamento em vigor.

Ficam então definidas, segundo a Instrução Normativa no 20, as etapas que o Incra deve seguir para a regulamentação do território quilombola. São elas: o reconhecimento da autodefinição da comunidade como remanescente de quilombo, a identificação e delimitação do território, o levantamento cartorial para a composição da cadeia dominial da área, a divulgação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação e, por fim, a publicação de edital dos ocupantes e confinantes. Depois de concluídas essas fases, será emitido o título de propriedade à comunidade remanescente de quilombos para o posterior registro em cartório pelo Incra, sem qualquer ônus para a mesma.

Análise das mudanças e polêmicas acerca da nova Instrução

Entre as principais mudanças da Instrução no 20, encontramos, logo na exposição dos objetivos, o termo desintrusão – corrente na legislação de proteção às terras indígenas –, que consiste na definição do procedimento apropriado para a retirada de possíveis intrusos da área em questão, prevendo no art. 20 do documento o processo de desapropriação, que é regulado da seguinte forma: caso o imóvel de título válido não seja regulado pelas possibilidades de desapropriação do artigo 184/C.F – que embasa a lei de reforma agrária e contempla apenas as áreas improdutivas –, recorre-se então ao artigo 216, § 1o da C.F., que prevê que o Poder Público protegerá o patrimônio cultural brasileiro, entre outros meios, através da desapropriação.

Esse é um ponto polêmico nos meios de discussão do tema, pois se o art. 68 reconhece a propriedade das comunidades remanescentes de quilombo sobre o território ocupado, baseado numa resistência histórica, seria inconstitucional haver indenização de terra previsivelmente grilada.

Há um entendimento entre os técnicos e procuradores do Incra do Rio de Janeiro, por exemplo, de que a nova instrução normativa não mudará muita coisa. Na opinião deles a desapropriação para fins de garantir a propriedade da terra às comunidades remanescentes de quilombos continua sendo um instrumento frágil por ter fundamentação legal baseada em decreto presidencial, sendo um ato apenas do Poder Executivo, sem aprovação do Legislativo, que pode ser revogado e substituído a qualquer momento. Ao contrário da desapropriação para fins de Reforma Agrária, que tem embasamento na Lei Nacional de Reforma Agrária, totalmente regulamentada.

Torna-se, portanto, de vital importância a capacitação de militantes engajados na luta quilombola no sentido de formular teses jurídicas que legitimem o procedimento desapropriatório nas comunidades, uma vez que esse dispositivo foi previsto no decreto 4.887/03 e consagrado na Instrução Normativa no 20, do Incra, não cabendo contestação.

O outro ponto importante na nova instrução normativa é a inclusão de relatórios antropológicos nos procedimentos de identificação dos limites das terras das comunidades remanescentes de quilombos. Até então, não havia uma determinação expressa de como o Incra – que tem experiência em assentamentos por unidade familiar, mas não em delimitação de terras de uso comum – faria a delimitação do território reivindicado pelas comunidades. O artigo 10o da nova instrução traz inclusive os itens que devem compor o relatório antropológico (ver Boxe 2), o que constitui uma maior segurança de que as comunidades remanescentes de quilombos irão de fato dispor das terras que garantam não só seu espaço de moradia, mas também de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

Boxe 2

Art. 10 O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação será feito por etapas, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas, e compor-se-á das seguintes peças:

I - relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-cultural do território quilombola identificado, devendo conter a descrição e informações sobre:

a) as terras e as edificações que englobem os espaços de moradia;

b) as terras utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural do grupo humano a ser beneficiado;

c) as fontes terrestres, fluviais, lacustres ou marítimas de subsistência da população;

d) as terras detentoras de recursos ambientais necessários à preservação dos costumes, tradições, cultura e lazer da comunidade;

c) as terras e as edificações destinadas aos cultos religiosos;

e) os sítios que contenham reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Aline Lopes - Estagiária de Direito do Programa Ebgé Territórios Negros de Koinonia

Rosa Peralta - Assistente do Programa Ebgé Territórios Negros de Koinonia

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