VOLTAR

Conhecimento Tradicional Indígena: afinal, de quem é a autoria?

Gilberto Azanha
Autor: Gilberto Azanha
22 de Jun de 2002

Amigos e Parceiros do CTI,
Estamos enviando a vocês um texto de autoria de Gilberto Azanha, enviado ao Departamento de Edição do Caderno Ciência da Folha de São Paulo, mas infelizmente não publicado, que esclarece alguns pontos confusos da matéria editada por esse Caderno da Folha no dia 19 de junho sobre pesquisa com ervas medicinais junto aos Krahô e suas conseqüências.
Digo a todos que o CTI tem e pode repassar essa matéria a quem possa interessar.

A propósito da matéria veiculada pela Folha no dia 19/06/2002 (na Folha Ciência), gostaria de fazer algumas observações, sobretudo tendo em conta que trabalho com os Krahô, profissionalmente há vários anos (desde 1976, na verdade) e que, em grande medida, fui o responsável pela apresentação da pesquisadora Eliana Rodrigues àquele grupo indígena. Segundo a matéria, a polêmica parece estar ocorrendo porque a pesquisadora não teria consultado todos os Krahô ao propor e realizar sua pesquisa. E está sendo cobrada (ou melhor a sua instituição de pesquisa, a UNIFESP) por meio de uma entidade que, supostamente, representaria todos os Krahô. Portanto, um lado da questão estaria centrado na representatividade legal dos Krahô: quem os representaria, e sobre quais bases legais, num eventual recebimento de royaltes por disporem de seu "conhecimento tradicional" para a produção de fitoterápicos. Mas creio que a matéria envolve um outro lado, que diz respeito a como se dá a produção do conhecimento naquela sociedade indígena e de que forma a pesquisadora pode ter acesso a ele.

Primeiramente esclareço que a Terra Indígena Krahô, localizada no norte do Tocantins, é formada originalmente por dois grupos distintos: os Mãkrare e os Pãrekramekra, cujos descendentes continuam se aglutinando em aldeias distintas. Como nos diz J.C. Melatti, "é Krahô, quem nasce em qualquer aldeia Krahô" ; mas esta máxima definidora da identidade é voltada tão somente para o exterior e não é acionada internamente como uma entidade jurídica interna que permitisse o estabelecimento de uma representatividade inconteste. Além disso, as aldeias Krahô são unidades políticas autônomas e nenhuma pode responder pela outra, como nenhuma associação indígena pode se sobrepor à decisão de cada aldeia. Vale lembrar, ainda, que existem atualmente cinco associações indígenas na área Krahô. Nestes termos, invocar a representação única e exclusiva da Associação Kààpej, tal como colocada pelo seu assessor, carece de fundamento.

Por outro lado, a relação que a pesquisadora estabeleceu para obter os dados da sua pesquisa não foi com todos os Krahô, mas com alguns indivíduos muito especiais da sociedade Krahô, chamados de "curadores". O "contrato" que estabeleceu, se colocarmos isso em termos jurídicos, foi um contrato particular que todo e qualquer antropólogo estabelece com indivíduos que chamamos, na nossa prática profissional, de informantes. Como todo contrato particular, envolve obrigações e direitos: o pesquisador se obriga a pagar, não necessariamente em dinheiro (e esta é uma regra informal, mas geral da antropologia), pelas informações prestadas pelo(s) informante(s). Ora, o contrato particular entre pesquisador e informante não fere nenhuma norma Krahô ou lei brasileira. Poderíamos até contestá-lo invocando o regime tutelar a que as sociedades indígenas estão submetidas no Brasil. Dai a presença necessária da FUNAI como mediadora do contrato, o que neste caso ocorreu, dado que a pesquisadora obteve a devida autorização do órgão para realizar sua pesquisa, nos termos em que ela de fato se deu e que o assessor da Kààpej, como funcionário da FUNAI que é, deveria saber.

Neste contexto, se formos levar ao pé da letra a discussão em tela na matéria desta Folha, chegaríamos ao reconhecimento, in limine, de que todo e qualquer conhecimento obtido junto às sociedades indígenas (e não somente aquele que envolve os fitoterápicos) deveria ser objeto de um contrato que assegurasse os direitos indígenas na forma de royalties, isto é, pagamento por um conhecimento derivado de uma pesquisa, seja qual for. E porque a polêmica ocorre somente quando o que está em jogo são os fitoterápicos, e não o parentesco, a cultura material, a cosmologia etc.? Creio que isto ocorre por uma questão de escala: o pesquisador de parentesco "ganha" somente os direitos autorais de um possível livro (e que é irrisório, em se tratando do Brasil) ou o prestígio acadêmico (que materialmente pode se traduzir em um ganho salarial, também desprezível); mas uma pesquisa que pode redundar em um medicamento significa muito dinheiro envolvido. E o pedido dos autoproclamados "verdadeiros representantes" dos Krahô parece confirmar essa hipótese.

Dito isso, volto ao tema da relação pesquisadora e os "curadores" Krahô e, indo mais além, entre a representatividade e os detentores do chamado "conhecimento tradicional". Esta sim não é uma discussão sem importância, porque exige uma reflexão mais acurada sobre estas relações e que deve ser considerada na legislação que está sendo discutida sobre propriedade intelectual. Antes porém, uma breve digressão sobre a produção do "conhecimento tradicional", dentro dos parâmetros culturais das sociedades indígenas sul-americanas.

A base do chamado "conhecimento tradicional" para a identificação e eleição de determinadas plantas (ou insetos ou qualquer outro item do mundo natural), para aquelas sociedades, está fundada em uma cosmologia, conceito que os antropólogos definem como um conjunto coerente de categorias intelectuais que explicam, para determinada sociedade indígena, a ordem do mundo e as relações entre os seres que o povoa . E essas relações são definidas como relações entre sujeitos: praticamente todos os seres do mundo são agentes de um poder de reação ou são sujeitos capazes de revidar uma ação humana, ou seja: uma ave, um peixe, uma pedra, uma planta não são, para as sociedades que estamos tratando, meros "objetos" - como a racionalidade científica ocidental em geral os trata; ao contrário, nestas sociedades todos os seres respondem a uma determinada ação dos sujeitos humanos e se este porventura abusa de ações inapropriadas sofre de imediato as conseqüências de seus atos. O cosmos aqui, e as relações que a define, se apresenta como um conjunto de setores (ou "mundos") com fronteiras bem definidas entre eles, onde qualquer contaminação ou ultrapassagem de um a outro acarreta riscos para os humanos. As doenças (nos humanos) advêm exclusivamente desta contaminação (excluídas aquelas trazidas pelos não-índios, porque, logicamente, não compõem cosmos indígena). Nesse universo de conhecimento, somente um personagem pode - e está preparado para - refazer as relações entre os seres ou reafirmar suas fronteiras e, assim, aliviar a contaminação havida: é o que os antropólogos definem como xamã ou pajé ou ainda curador.

Entre os Krahô esses indivíduos são denominados wajaká. Possuem um poder extraordinário, de curar e/ou matar, dependendo de sua intenção, ou como dizem, de ter a "mão limpa ou não". Seu poder, de um ponto de vista mais geral ou abstrato, vem do fato de estar autorizado a percorrer os vários mundos sem se contaminar e, nesse percurso, refazer as relações e as fronteiras embaralhadas . E é bem disto que se que trata: o "doente" é definido entre os Krahô como aquele que "embaralhou" as fronteiras entre os mundos, aquele que "abusou" dos, ou ficou em contato além do necessário com, seres dos outros mundos. Todos estes entes possuem, como já dito, um poder de ação, uma força vital, um "duplo" ou "sombra" chamado carõ entre os Krahô. Não é o ente propriamente dito que provoca a reação ou "doença" (hàà), mas seu carõ, seu princípio vital. O poder do wajaká advém do fato de ele estar autorizado por um (ou mais) carõ a trafegar entre os mundos e conhecê-los e, deste modo, prescrever os resguardos e os remédios (em geral fitoterápicos) para a cura.

O ponto principal da questão reside aqui: as plantas indicadas por um determinado wajaká somente ele conhece, pois este conhecimento foi lhe transmitido pelo carõ específico com quem entrou em contato e que lhe repassou o huurã . E se ele revelar esse conhecimento aos demais membros do grupo perderá seus poderes, e o carõ levará o seu huurã, fato que poderá lhe acarretar a morte. Isto ocorre porque divulgar esse conhecimento representa, na verdade, uma traição ou melhor, a quebra do contrato estabelecido com o carõ no momento da entrega do huurã. E do mesmo modo que o wajaká não tem poder de cura sobre as doenças trazidas pelos cupen (não-índios), revelar seus conhecimentos a estes (em uma relação toda íntima, quase confessional), também não acarreta perigo.

Portanto, a pergunta que fica, no contexto da matéria publicada por esta Folha, é: a quem pertence o conhecimento transmitido à pesquisadora Eliana Rodrigues ? A todos os Krahô? A todos os Timbira? A todos os falantes da língua Jê que compartilham dos mesmos traços culturais dos Timbira? Ou ainda a todas as sociedades indígenas sul-americanas, que "pensam" sobre a cura e as doenças de modo similar aos Krahô? Se levarmos em consideração o exposto acima, creio que fica evidente que o conhecimento sobre as plantas reveladas à pesquisadora é fruto de poucos indivíduos, ou, no caso, de um wajaká específico, cujo direito de revelar seus conhecimentos, parece-me, lhe cabe inteira e exclusivamente.

Parece que a polêmica suscitada pelos assim autoproclamados "legítimos representantes dos Krahô" se origina no fato de que as plantas utilizadas por estes curadores Krahô não foram ainda divulgadas pela vasta literatura sobre plantas medicinais indígenas, o que lhes conferiria um caráter de ineditismo. O mesmo poderia ser dito em relação ao banco genético de sementes tradicionais, sementes que foram disponibilizadas pelos Krahô, através de uma de suas associações, justamente a Kààpej, mediante convênio com a Embrapa.

Mas devo reconhecer que a pesquisadora - e seu instituto de pesquisa, a UNIFESP - pecaram por excesso: como se tratava de matéria polêmica (pois os dados coletados na pesquisa poderiam eventualmente prestar-se a servir de base a produção de medicamentos com fins comerciais), a UNIFESP houve por bem traduzir o contrato particular entre a pesquisadora e o wajaká em um acordo prévio entre pessoas jurídicas (no caso, entre a UNIFESP e a Associação Vyty-Cati, que representaria no caso os interesses dos grupos Timbira, a quem os Krahô pertencem culturalmente). Creio que este acordo foi um preciosismo desnecessário e acredito também que foi a sua exposição precipitada na mídia por parte do professor Elisaldo Carlini (orientador de Eliana Rodrigues) que provocou a intimidação a que a pesquisadora e a UNIFESP se vêm hoje submetidos.

Senti-me obrigado a redigir estes esclarecimentos para recolocar a questão em patamares mais corretos. Não há "ingenuidade" por parte dos assessores da associação Vyty-Cati (entre os quais me incluo) e muito menos leviandade ou má fé. Caso os interesses dos Krahô em particular, ou dos Timbira em geral, venham a ser lesados, a própria FUNAI, as associações indígenas ou qualquer indivíduo Krahô, poderá acionar o Ministério Público. Mas a reação despropositada dos representantes da Kààpej, tal como manifestada na matéria, a meu juízo, não passa de uma conjectura demagógica e mal intencionada porque pretende marcar, "no grito" como se diz, a soberania representativa de uma única associação indígena sobre todos os Krahô.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.