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Conflito indígena: sem essa de apito

Jornal Pessoal -Belém-PA
Autor: Lúcio Flávio Pinto
06 de Mai de 2004

Muita gente ficou perplexa quando Lula, depois de vencer Fernando Henrique Cardoso na disputa pela presidência da República, elogiou a capacidade de realização do regime militar. A admiração tinha dois motivos. O primeiro parece ser o fascínio de Lula pelo planejamento centralizado dos governos militares, que produziam enormes documentos prevendo tudo que podia (ou devia) acontecer, embora nem sempre acontecesse (ou acontecesse diferentemente da previsão).

O outro motivo da admiração era a ferramenta desse planejamento, as empresas estatais, multiplicadas durante o regime de exceção independentemente de sua necessidade, funcionalidade, competência ou mesmo seriedade. Tirando a ideologia e o discurso, que os afastavam, Lula e os militares se pareciam nessa forma de abordar a organização econômica da sociedade. Daí os elogios.

Esse - digamos assim - insight se revela, límpido, na forma de reação do presidente ao massacre de 29 garimpeiros por índios Cinta-Larga de Rondônia. O fato sujo e sangrento foi colocado debaixo do tapete de certas definições teóricas, dogmáticas ou catequéticas. Perdoe-se o erro. Ele foi cometido pelo "bom selvagem". Como evitar que novos conflitos venham a ocorrer?

Criando-se uma empresa estatal. Ela intermediará as relações comerciais entre os índios e os compradores de diamante, tangenciará a proibição de garimpagem em reservas indígenas e garantirá a continuidade do processo produtivo, apesar das restrições legais e do substrato rousseauniano mal digerido e pior explicado. Será a Indiobrás, funcionando à margem da Funai.

A única vez em que esse esquema funcionou foi no garimpo de Serra Pelada, que, por certos aspectos, era um campo de concentração sob gestão militar (e de um órgão polêmico, para dizer o mínimo, o Serviço Nacional de Informações, o SNI, na área então representado pelo tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura, hoje na reserva do Exército e prefeito peemedebista de Curionópolis, município batizado com seu apelido, Curió). Por isso não houve, com a Caixa Econômica, a Docegeo e o DNPM tantos incidentes como os que certamente haverá se essa empresa estatal for criada para fazer o meio-de-campo entre os índios e compradores externos. Entre eles, corrupção.

Durante a década de 70 andei bastante pela área dos Cinta-Larga e de seus vizinhos, os Suruí. Jamais me passou pela cabeça, nessa época, que um dia eles explorariam garimpo de diamantes, manteriam relações confusas com empresários, abririam (ou deixariam abrir) pistas de pouso na reserva Roosevelt e seu cacique saltaria de uma camionete Mitsubish envergando blusa Lacoste para dar entrevista coletiva.

Tudo bem: tudo isso já é realidade. De um lado, ela traz todas essas comodidades (distorcidamente partilhadas, quando partilhadas). Mas também altera o conceito penal da inimputabilidade dos índios e o antropológico, de sua pureza. Se original, pureza perdida na chamada fricção interétnica.

O processo, que, com viés etnocêntrico, chamamos de aculturação, é, na verdade, como sabem os bons antropólogos, de destribalização e descaracterização (o índio não consegue se adaptar à sociedade de classes, mas também a identidade étnica, que jamais desaparece de todo, passa a perturbar-lhe a vida, deixando-o com um pé na cidade e outro na aldeia, esfrangalhado por dentro). Um terceiro participante vai apenas complicar ainda mais essa geléia geral. O que cabe ao Estado é agir como instância técnica e, quando o caso (se é que ainda é o caso), órgão tutelar.

Se querem entrar na atividade produtiva e têm amparo legal para isso, que os índios atuem diretamente, sob supervisão do órgão teoricamente competente (ou ao menos formalmente), a Funai. Os Gaviões, de Marabá, foram pioneiros nessa experiência, saindo do garrote do DGPU (Departamento Geral do Patrimônio Indígena), mal comparando, mas comparando, uma espécie de gigolô da renda tribal. Produzindo e comerciando sua safra de castanha, os Gaviões cometeram erros, como seria de se esperar (e inevitável), mas são responsáveis por eles.

Os Cinta-Larga podem fazer o mesmo, mas dentro da ordem legal e seguindo os procedimentos adequados. O que quer dizer que, como agentes autônomos de sua vida, também passam a ser responsáveis por seus erros, desde os mais simples até os mais graves, sobretudo os delitos, especialmente os homicídios. Sem ilusões falsamente rousseaunianas nem desvios patrimonialistas e burocráticos, como os que surpreendentemente unem Lula aos tecnocratas e militares.

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