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Concessões de Lula a quilombolas deixarão bomba fundiária para Dilma

OESP, Nacional, p. A4
21 de Nov de 2010

Concessões de Lula a quilombolas deixarão bomba fundiária para Dilma

Roldão Arruda

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrega amanhã o título de propriedade da terra aos moradores da comunidade Ivaporunduva, reduto quilombola do interior de São Paulo, em Eldorado Paulista. O evento terá tom festivo, passando ao largo da polêmica e das tensões cada vez mais maiores que envolvem a demarcação de terras quilombolas - uma das questões espinhosas no passivo social que deixará para Dilma Rousseff.
O título a ser entregue, de forma simbólica, uma vez que vigora desde maio, abrange uma área de 2,7 mil hectares, na qual vivem 70 famílias de uma comunidade tradicionalíssima, cujas origens remontam ao século 17. Ele é uma pequena parte de um grande problema: faz parte de um lote de 113 terras quilombolas tituladas, diante de um conjunto de 3.524 comunidades identificadas, segundo dados da Secretaria da Igualdade Racial - todas elas interessadas em títulos.
De acordo com estimativa feita pelo Estado, se todas as comunidades identificadas forem atendidas, o governo terá de titular 8,5 milhões de hectares - o equivalente a quase duas vezes o Estado do Rio. É uma estimativa conservadora, com base na média de títulos já expedidos, que totalizam 971,3 mil hectares, beneficiando 11.506 famílias.
No cálculo foram excluídas, por serem casos excepcionais, grandes extensões de terras devolutas tituladas no Pará e o Quilombo Kalunga, no sertão de Goiás - o maior já regularizado. Tem 253,2 mil hectares, hoje pertencentes a 600 famílias.
Novo cenário. As previsões de que as tensões devem aumentar no próximo governo estão relacionadas principalmente a informações contidas em relatórios do Incra. Eles mostram que as terras regularizadas eram quase todas devolutas - o que significa que pertenciam ao poder público e podiam ser tituladas com baixo índice de conflito.
Outra informação dos relatórios é que mais de 60% das terras tituladas estão na Região Norte, em áreas de florestas, ainda pouco visadas pelo agronegócio.
O cenário agora é diferente. Das 3.524 comunidades identificadas, 1.523 recorreram à Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, e obtiveram o atestado oficial de que são mesmo quilombolas. E, dessas, 996 abriram processos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pedindo titulação de suas terras.
Quem observar a lista desses processos verá que a demanda pela titulação mudou de foco. Agora cresce no Centro-Oeste, Sudeste e Sul, regiões onde o agronegócio viceja a plena carga. Outra mudança é que parte das terras reivindicadas está ocupada por proprietários rurais que possuem títulos, muitos concedidos pelo governo, e costumam ir à Justiça contestar o Incra.
A contestação começa quando o Incra divulga seu relatório técnico, feito com a participação de antropólogos, definindo o tamanho do quilombo. Neste momento estão sendo discutidos 117 relatórios, que abrangem uma área de 1,4 milhão de hectares, para 15 mil famílias.
Quando os proprietários perdem na Justiça, são indenizados. Foi o que ocorreu no caso do Quilombo Kalunga, onde 170 fazendeiros aguardam o pagamento das terras pelo Incra.
O presidente do Incra, Rolf Hackbart, não tem dúvida de que as tensões vão aumentar. Para ele, isso faz parte do processo político e decorre sobretudo da decisão do presidente Lula de assinar, em 2003, o Decreto 4.487, que regulamentou o dispositivo transitório da Constituição de 1998, sobre os direitos dos quilombolas. Segundo Hackbart, o decreto tornou efetiva a decisão dos constituintes e estimulou as comunidades a reivindicarem direitos. "Milhares de famílias que viviam esquecidas nos quilombos passaram enfim a fazer parte da República Federativa", diz.

Agricultor diz que não quer morrer sem ''papel''
Famílias lutam por reconhecimento de propriedade do Quilombo do Jaó

José Maria Tomazela

O agricultor Diniz Estevão de Lima vai fazer 71 anos em dezembro e não quer morrer antes de ver "o papel escrito" dos 166 hectares que seus filhos, netos e parentes ocupam no Quilombo do Jaó, na zona rural de Itapeva, a 285 km de São Paulo. "A saúde está boa, mas nunca se sabe... O tempo vai passando e o documento não sai", reclama.
Muito antes da Constituição de 1988, as famílias descendentes de escravos já lutavam pelo reconhecimento de sua propriedade sobre aquele "capão de terra" deixado como herança pelo casal Joaquim Carneiro de Camargo e Josepha Paula Lima. Eles eram escravos do fazendeiro Honorato Carneiro de Camargo, que adotou Joaquim como filho e deu a ele as terras conhecidas como Sítio da Ponte Alta.
Lima sabe por ouvir dizer que a doação foi feita logo depois da abolição da escravatura, em 1888. "Quem sabia bem de tudo isso era meu cunhado Hilário, mas, coitado, não aguentou esperar."
Hilário Martins morreu há cinco anos, não sem antes ter conseguido que a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) reconhecesse a comunidade quilombola. Durante décadas, ele impediu que os familiares - eram todos parentes, ali - vendessem as terras para os fazendeiros da região. Chegou a brigar quando um fazendeiro começou a soltar o gado na área "dos pretos". "Ele nunca deixou que as famílias se dispersassem. Houve diferenças internas, mas todos ficaram por aqui", conta Diniz.
O relatório técnico-científico com a identificação do território quilombola saiu em 2000. Na época, eram 63 famílias. Hoje, são 85, num total de 460 pessoas. As casas, a maioria de tábuas ou de barro, embora algumas já sejam de alvenaria, se concentram nas proximidades da estrada vicinal que liga as fazendas do entorno a Itapeva. O núcleo tem uma escola, com ensino até a 8.ª série, um posto de saúde e dois galpões - um para atividades, o outro para a produção agrícola.
Diniz mora numa casa de tábuas com a mulher Floriza, de 66 anos, e uma cunhada. As casas dos dois filhos, também de tábuas, são vizinhas. Numa mora Orlei, de 32 anos, com a mulher e o casal de filhos; na outra, Orlando, a mulher e seus dois meninos. "Os garotos do Orlei já estão na escola", conta o avô. Ele diz que os filhos, "iludidos pela promessa da terra" não quiseram sair do Jaó. Os dois trabalham como boias-frias em fazendas próximas, como a maioria dos homens do quilombo. A comunidade está cercada por grandes fazendas de gado, grãos e laranja, além de reflorestamento de pinus. "Dizem que a terra aqui vale muito, mas para nós não tem preço", afirma Diniz. Ele mesmo deixou a comunidade aos 18 anos para estudar em Itapeva. "Não sabia nem ler, nem escrever. Trabalhava de servente de pedreiro de dia e estudava de noite." Foi só aprender a ler e voltou para casa.
Hoje, ele considera boa a vida no quilombo. "Tem água de poço, encanada, energia elétrica, tem médico duas vezes por semana. A gente planta arroz, milho, feijão, cria umas galinhas, uns porcos. Só falta um pouco de chuva", diz, de olho no céu sem nuvens.

FHC cedeu mais títulos, mas em áreas sem disputa

No período 1995 a 2002, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foram titulados 777,7 mil hectares de terras para comunidades quilombolas. Esse número é quatro vezes maior do que a área titulada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 193,6 mil hectares.
Para entender a diferença é preciso lembrar que no período de Fernando Henrique foram titulados quilombos mais facilmente identificados, com pouca disputa, e localizados em grandes áreas de terras devolutas. Os títulos foram distribuídos em grande parte pelos institutos estaduais de terras, responsáveis pelas áreas devolutas. Foram beneficiadas 6.771 famílias, de 90 comunidades. Lula, numa área menor, atingiu 93 comunidades e 4.735 famílias.
O Incra apareceu mais na cena em decorrência da necessidade de desapropriar áreas particulares reivindicadas pelos quilombolas. São processos mais demorados, que dependem do Judiciário. Mas não só. Assim como na questão da reforma agrária, quando evitou atualizar os índices de produtividade, para não irritar a bancada ruralista no Congresso, Lula preferiu investir mais na concessão de benefícios sociais aos quilombolas do que no confronto agrário.
As ações de governo variaram de distribuição de cestas básicas a construção de casas. Em 2008, cerca de 20 mil famílias de quilombolas estavam incluídas no Programa Bolsa-Família. No ano passado eram 25 mil.
O acesso aos benefícios estimulou novas comunidades a se identificarem como quilombolas. "Depois que se apresentam e conseguem o certificado da Fundação Palmares, as comunidades ficam aptas a acessar as políticas que beneficiam os quilombolas", diz Ivonete Carvalho, diretora de programas de comunidades tradicionais, da Secretaria da Igualdade Racial.
Nenhum órgão do governo sabe dizer quantas famílias de quilombolas vivem no País. A Fundação Palmares estima em 124 mil famílias a população das 1.523 comunidades às quais já concedeu certificados. Considerando a média de 4 pessoas por família, seriam 500 mil pessoas.

OESP, 21/11/2010, Nacional, p. A4

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