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Comunidade não quer perder tradições

Diário do Nordeste
Autor: FILIPE PALÁCIO
19 de Nov de 2007

CONCEIÇÃO DOS CAETANOS (19/11/2007)
Comunidade não quer perder tradições

Longe do tempo em que seus antepassados viviam sob a ameaça dos açoites dos senhores de engenho, hoje grande parte dos quilombolas enfrenta outro inimigo: o preconceito dentro das próprias comunidades. Os jovens não querem se assumir quilombolas, têm vergonha, lamenta a professora Maria Sandra Caetano, uma das lideranças da comunidade de Conceição dos Caetanos, localizada no município de Tururu, distante 130 quilômetros de Fortaleza.

As casas são cortadas por uma longa avenida de terra de batida. Há uma escola e uma creche, que servem também aos povoados vizinhos. Posto de saúde ainda não tem. Energia elétrica ainda não chegou para todos. Do tempo do quilombo, o pouco que resta se perde na memória dos moradores mais velhos.

Ali residem cerca de 230 famílias, que sobrevivem basicamente da agricultura de subsistência. Deste total, estima-se que em torno de 20% sejam de quilombolas puros. O restante tem descendência quilombola, mas é fruto de casamentos de negros com brancos ou pardos vindos de outras partes. As misturas começaram a ocorrer em meados dos anos 70, com a migração de moradores para a Capital e a conseqüente venda de propriedades.

Há 30 anos, conta Sandra, eram inaceitáveis as uniões de quilombolas com outras raças. Quaisquer sinais de relacionamentos de quilombolas com forasteiros eram vistos como verdadeiros escândalos. Por isso, casamentos entre parentes aconteciam com freqüência. Na última década, contudo, virou tarefa quase impossível impedir a mistura de raças, já considerada normal pela maioria.

O fato, contudo, é visto com ressalvas até por moradores como Maria Medina Caetano Lima, ela mesma casada com um não-quilombola, com que teve três filhos. Meus filhos são quilombolas como eu. O fato de ser só por parte de mãe não faz deles menos quilombolas, declara.

O problema, opina Medina, é a falta de incentivos para que as novas gerações, não apenas assumam, mas também tenham orgulho de sua condição. Não tem um projeto de valorização, que não seja só em datas comemorativas, denuncia.

Ela se refere às comemorações pelo Dia da Consciência Negra, que coincidem com os festejos de Nossa Senhora das Graças, padroeira da comunidade. Na programação da novena, está prevista, para amanhã, uma missa afro, cujos ensaios começaram há duas semanas. A movimentação contagia a comunidade, mas o ânimo logo arrefece. Fora isso, no resto do ano, não tem nada. O pessoal esquece das tradições, revela. Eu passo o que eu sei para os meus filhos, que já foi minha mãe que me passou. Mas vai se perdendo. Se continuar assim, a tendência é se acabar, conclui.

Reconhecida

Conceição dos Caetanos é uma das 16 comunidades reconhecidas pelo Incra no Ceará. Técnicos do órgão, informa Sandra, já visitaram a região mais de uma vez para iniciar as análises referentes a concessão do título definitivo daquelas terras aos quilombolas.

O processo aberto inclui ainda a comunidade de Água Preta, também em Tururu, originada em grande parte de quilombolas egressos de Conceição dos Caetanos. Para Sandra, a titulação das terras seria uma etapa importante para esse povo ter orgulho do que é. Mas antes é preciso que os quilombolas entendam sua importância e o que representam.

QUILOMBOLA, EU? - Muitos jovens não aceitam origens

Tururu. Conceição dos Caetanos. Turma da 9ª série da Escola Municipal de Ensino Fundamental Caetano José da Costa. Ao serem perguntados se sabiam quem era a personalidade que emprestava seu nome ao local onde estudavam, dos cerca de 20 alunos presentes, apenas um levanta o braço em resposta afirmativa. Eles estão tímidos, minimiza a diretora Hilzete Batista Bonfim, para logo depois reconhecer que está cada vez mais difícil envolver os estudantes a tomar parte no passado - e no futuro - de sua gente. Essa meninada não quer essa ligação com os escravos, se sentem inferiores por isso, diz ela.

Hilzete diz que, com o passar dos anos, vai se tornando cada vez mais difícil mobilizar os jovens para participar de manifestações como a missa afro. Ela lembra que, no desfile da Independência do Brasil do último dia 7 de setembro, o tema na comunidade foi a abolição da escravatura, mas ninguém queria fazer o papel dos escravos. É um absurdo. A chamada consciência negra não pode morrer nas gerações mais velhas, afirma. Os escravos são vistos pelos mais novos como perdedores, quando deveriam ser lembrados pela força, pela garra, enfatiza.

O estudante Adailton Caetano considera-se uma raridade entre os jovens de sua idade. Ele integra o grupo que se apresenta na missa em memória de Zumbi, durante os festejos de Nossa Senhora das Graças e ganha algum dinheiro fazendo penteados afro. Faço o que posso, mas nem todo mundo pensa como eu; ao contrário, tem vergonha, diz.

Um local impregnado de história, como é Conceição dos Caetanos, só consegue se fazer conhecida através de iniciativas pontuais, a exemplo do que faz a professora Fátima Ceciliana Moura. Quilombola com muito orgulho, ela ensina História e Geografia. É difícil a luta para que as tradições não desapareçam. Os meninos não querem assumir suas origens, admite.

"Era muito melhor antes, mais sossegado", Pedro Manoel Caetano, Agricultor

Aos 80 anos, a memória do agricultor Pedro Manoel Caetano já começa a lhe pregar peças. ´Minha cabeça está ruim´, diz com a voz quase ininteligível. A audição também já não é das melhores. A despeito das limitações impostas pelo tempo, vai para a lavoura todos os dias. A escola, não freqüentou. ´Só sei capinar´, conta.

Casado há 50 anos com uma das mulheres mais respeitadas de Conceição dos Caetanos, Maria Caetano de Oliveira, a Dona Bibiu, sua prima, Pedro está no segundo matrimônio. Do primeiro saiu viúvo, depois de sete anos de união. Filhos são 14. É com saudade que ele fala do passado. ´Era muito melhor antes, mais sossegado. Não tinha essa misturada. A gente vivia a nossa vida em paz, sem esse negócio de quilombola. Isso é coisa de agora´, resmunga.

Pedro é o mais velho de dez irmãos. Os outros vivem na Capital. ´Eu nunca quis. Fortaleza é só para passear. Bom é aqui e é aqui que eu vou me enterrar. Mas ainda vai demorar´.

CAETANO JOSÉ DA COSTA - História do fundador é conhecida por poucos

Liberto, o escravo Caetano José da Costa saiu de Pacoti, no Maciço de Baturité, em 1887 e, por 200 mil réis, adquiriu as terras onde foi fundado o quilombo de Conceição dos Caetanos. Os poucos registros oficiais sobre a história do lugar e os causos” que contam os moradores mais antigos, como a aposentada Maria José Caetano, de 61 anos, dão conta de que ele se instalou na região ao lado da esposa Maria Madalena da Paz e dos 12 filhos.

As posses da família, além das terras, incluíam apenas um animal de carga, um tear e um caixão de madeira, onde era armazenada farinha de mandioca. Aos poucos, primos e outros parentes chegaram ao local. Os casamentos eram realizados entre primos e a presença branca, nula.

Quase não há documentos da época, apenas um caderno, manuscrito, redigido a partir de contribuições de estudantes. Uma das nossas maiores dificuldades é reconstruir as origens dessas comunidades. A memória delas não é preservada, ressalta a antropóloga Marta Magalhães.

FILIPE PALÁCIO
Repórter

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