VOLTAR

Como o êxodo na Amazônia agrava favelização em Manaus e abre brechas para tráfico e milícia

OESP - https://www.estadao.com.br/
03 de Abr de 2024

Como o êxodo na Amazônia agrava favelização em Manaus e abre brechas para tráfico e milícia
Capital do Amazonas continua atraindo migrantes dos rincões em busca de trabalho e melhores condições de vida, o que só faz crescer a concentração na cidade; parte se acomoda em comunidades com problemas típicos das favelas, de falta de saneamento básico a disputas por pontos de venda de drogas

Vinícius Valfré

03/04/2024

A chuva forte na periferia de Manaus (AM) não atrapalhou os planos de Cristina Quirino, 28, para o almoço especial de domingo. O caldo de galinha caipira é preparado em um panelão colocado sobre uma fogueira improvisada no fundo da casa de alvenaria onde vive com o marido e o filho. A receita tem inspirações colombianas trazidas da região de Belém dos Solimões, na fronteira com a Colômbia, de onde a indígena da etnia ticuna partiu em busca de oportunidades que dizia não encontrar na aldeia.

A chegada foi dura. Logo engravidou de Roney, 5, e o objetivo principal, de tentar algum estudo profissionalizante, ficou no papel pelos primeiros três anos. Aos poucos, conseguiu um curso técnico em análises clínicas e depois uma bolsa na faculdade de farmácia. Parte dos custos são arcados com o dinheiro que o irmão consegue com a venda de frutas em Tabatinga. A história de Cristina é semelhante a de milhares de indígenas que saíram de aldeias do Amazonas para viver no Parque das Tribos, em Manaus.

A comunidade localizada na região do Tarumã-Açu é resultado de uma migração iniciada nos anos 1980 por indígenas baré e kokama, contribuindo para o "boom" populacional de Manaus provocado pela criação da Zona Franca. Os que não eram absorvidos pelo mercado de trabalho ao menos tinham uma área para cultivar roças. Quase 50 anos depois, o território continua acolhendo indígenas e não indígenas atraídos pelo sonho de uma vida melhor na cidade grande.

Após experimentar alguns dos ciclos migratórios mais marcantes do País nos séculos XIX e XX, Manaus nunca deixou de ver crescer a proporção de habitantes da capital em relação ao estado. Personagens e características desse movimento permanente ilustram esta que é a última parte da série de reportagens Êxodo na Amazônia, publicada pelo Estadão em três capítulos.

O Parque das Tribos é um pequeno retrato do êxodo dentro da capital. Oficialmente reconhecido em 2014, o local abriga cerca de 850 famílias de descendentes de 32 etnias, segundo as pesquisas mais atuais. São pelo menos 4,5 mil pessoas. A comunidade indígena dentro da capital tem todos os aspectos de uma favela: ruas sem pavimentação, falta de saneamento básico, barracos amontoados, inúmeras igrejas evangélicas, conflitos por pontos de venda de drogas e uma maioria trabalhadora que encontrou ali o único lugar possível para fazer morada.

Recentemente, a polícia debelou o embrião de uma milícia na comunidade. O grupo criminoso "grilava" terras e vendia lotes para pessoas muito simples. Em seguida, surgia cobrando taxa de segurança, energia elétrica e água. Quem não pagava era roubado, tinha casas incendiadas ou sofria atentados. O esquema, segundo a polícia, começou a funcionar pouco depois da constituição do bairro, em 2015, e as primeiras prisões ocorreram em 2021.

A atração de indígenas para Manaus, expressada não só na realidade da favela das tribos, mas também na de outras regiões para onde esses povos se espalharam, faz da capital amazonense a cidade com mais indígenas no Brasil. São 71,7 mil, segundo o Censo 2022. O número é 18 vezes maior do que a população indígena na capital em 2010, de 3,8 mil.

Apesar do crescimento de 1.768% em pouco mais de uma década, os números precisam ser vistos com ressalvas. Houve mudanças na metodologia de recenseamento e muitos manauaras mudaram a forma de fazer a autodeclaração. Mas não há quem conteste o fato de que a promessa de uma vida melhor em Manaus seja determinante para o êxodo que não cessa há anos.

O sonho do trabalho e a necessidade de fugir das mazelas do interior do Amazonas explicam parte do crescimento desordenado de Manaus ao longo das últimas décadas. Só nos últimos 20 anos, a população da capital do Amazonas cresceu 47%. Saiu de 1.403.796 em 2000 para 2.063.547 em 2022.

É um crescimento sem paralelos com outras metrópoles brasileiras no período. Para efeito de comparação, a população de São Paulo aumentou 10% em duas décadas. O salto da população nacional como um todo nesse intervalo foi de 19%.

No bairro das tribos, são comuns as empregadas domésticas, os pedreiros e os carpinteiros. Em geral, os moradores da comunidade indígena urbana têm fisionomias características de suas etnias e convivem, além da pobreza, com o preconceito.

"Tem muitos parentes (forma de os indígenas se referirem a eles mesmos) que preferem dizer lá fora que não é índio, que só a mãe, o pai e a avó são. Sempre existe um preconceito, uma parte que nos discrimina por achar que não podemos morar em uma casa de alvenaria, usar um relógio, um cordão. Os falantes da língua são zombados por falar a língua dentro do ônibus, por exemplo. O venezuelano não é, mas nós somos"
Lutana Kokama, liderança da Associação Indígena e dos Moradores do Parque das Tribos

A liderança de Lutana é uma herança do pai, pioneiro na ocupação da área onde está a comunidade. Ela se apresenta como cacica-geral e fundadora, condição que lhe dá a representatividade para reivindicar melhorias junto à prefeitura e aos vereadores. A força política, contudo, não é suficiente para resolver os problemas históricos.

"A gente já tem tantos documentos protocolados para demandas como saneamento, mas sempre falam que não tem como. Só olham para a gente no tempo da política", lamenta.

Uma ticuna diplomada desce para a periferia de Manaus

A mais de 1 mil quilômetros do Parque das Tribos, mais uma indígena ticuna desce o Rio Solimões em direção à periferia de Manaus, a contragosto. A viagem de barco é a principal forma de partir do lado oeste do Amazonas para a capital e dura quatro dias. Desconfortável e perigosa, a rota é uma opção para quem migra dos rincões da Amazônia em direção às grandes cidades.

Luciane Samias Forte, 32, gosta da vida que leva em Benjamin Constant, onde se formou em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) pesquisando os hábitos e a história dos kokama.

O contato desse povo com os brancos a partir do início da colonização provocou um fenômeno de negação da própria identidade. Os kokama abdicaram da cultura para tentar frear o extermínio. Aos poucos, o povo abriu mão de falar a própria língua por causa da violência.

O movimento de resgate da identidade do povo que habita o Alto Solimões é recente, datado dos anos 1980, graças a um reencontro dos kokama com ticunas como Luciane. O trabalho permanente de preservação do idioma, a adaptação nas escolas das comunidades e a transmissão de conhecimentos culturais às novas gerações são temas das pesquisas da universitária.

A ida para Manaus é em busca da qualificação para o mestrado, etapa dos estudos que não encontra na cidade onde preferia morar. "Não gosto muito de Manaus, gosto muito de Benjamin Constant. Mas onde eu vou morar depende do mercado de trabalho", diz. Para se manter, tinha à disposição uma bolsa de estudos de R$ 1,6 mil.

Não é a primeira vez que o interesse pelos estudos tira a indígena da floresta. Aos 13 anos, ela deixou a comunidade Cidade Nova com os irmãos para viver com familiares em Benjamin Constant. "A gente faz isso para ter educação melhor. Na comunidade não tinha Ensino Médio nem o Fundamental", conta.

O futuro é uma incógnita. Serão alguns dias em Manaus, hospedada por amigos, com a ideia de voltar para a fronteira. Mas ciente de que a vontade costuma ser a realidade que se impõe.

https://www.estadao.com.br/politica/como-o-exodo-na-amazonia-agrava-fav…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.