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Como nasceu o gaúcho

Adital - http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=41205
Autor: Selvino Heck
17 de Set de 2009

Sou gaúcho, em termos gerais. Nascido no Rio Grande do Sul. Gaúcho-alemão, quem sabe. Alguém que hoje só fala alemão com sua mãe de 82 anos, cresceu no meio de uma comunidade brasileira-gaúcha-alemã, aprendeu a falar português aos 7 anos quando foi para a escola e tem muitos dos hábitos da agricultura familiar tal como vieram da Alemanha no século XIX, mas que incorporou o sotaque dos gaúchos (em qualquer lugar do Brasil que eu chegue, digo duas palavras e as pessoas já perguntam 'você é gaúcho, não?'), um certo jeito de ser e reagir, um machismo particular, alguns valores bem típicos, amor especial à terra ou ao pago, etc., etc.

Agora, está-se descobrindo como, onde e quando surgiu esse gaúcho celebrado e cantado em prosa e versos. É uma história triste, muito triste.

Os charruas, grupo indígena cultuado na Argentina, no Rio Grande do Sul e no Uruguai - que usa seu nome quase como gentílico - foram dizimados em 11 de abril de 1831, nos descampados de Salsipuedes. Poucos escaparam do genocídio premeditado, restando posteriormente os mestiços, chamados de gaúchos, nome emprestado ao homem do Pampa. Dos sobreviventes charruas puros, crianças e mulheres foram levadas a Montevidéu, onde famílias abastadas daqueles tempos de fertilidade e fartura as tomaram como criadas (Léo Guerchmann, o Fim chegou em Salsipuedes, Zero Hora, Caderno de Cultura, 12.09.09).

Eduardo Picerno, pesquisador uruguaio, que está lançando 'El Genocídio de la Población Charrua', diz: "Tenho um documento do presidente Rivera (do Uruguai) no qual ele pede às autoridades que exterminem todos os charruas que escapassem do Uruguai. Não se esqueça: não havia limites territoriais, há vários charruas que estiveram em Passo Fundo, por exemplo, e deixaram descendentes. Mas dos que foram atacados em 1831 poucos sobreviveram."

Antecipando uma Operação Condor dos tempos recentes de governos militares, Rivera enviou carta a Bento Manuel Ribeiro, militar brasileiro responsável pela fronteira, em Alegrete, Rio Grande do Sul. E pediu: "Solicitamos cooperar com seus militares para a destruição total do resto dos charruas, como também contra militares sediciosos que poderiam se refugiar ultrapassando a fronteira."

Assim aconteceu. Diz Picerno: "Entre 1831 e 1834, os charruas que sobreviveram se esconderam ou se misturaram com os brancos. Como mulheres sobreviveram mais que homens, e se misturaram aos europeus forjando o gaúcho, existem descendências espalhadas pelos nossos países. Charruas, puros, não sobreviveram. Passaram a ser mestiços e foram chamados de gaúchos, (o famoso personagem pampiano que deu origem ao gentílico sul-rio-grandense)." Calcula-se, hoje, que, entre Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, haja 6 mil descendentes de charruas. No Estado do Rio Grande do Sul, são 400, entre a região das Missões e Porto Alegre (Léo Guerchmann).

A informação saiu em plena Semana Farroupilha. 20 de setembro é a data máxima dos gaúchos. Feriado, é quando se comemora a Revolução Farroupilha que, de 1835 a 1845, chegou a fundar a República do Piratini, República independente dos gaúchos. Por isso, dizem alguns, o Estado do Rio Grande do Sul e o gaúcho escolheram ser brasileiros.

Na Semana Farroupilha, os festejos se espraiam por todo Rio Grande, e hoje Brasil afora, em todos os lugares onde há gaúchos espalhados abrindo fronteiras. Acontecem acampamentos de milhares de pessoas como em Porto Alegre no Parque da Harmonia, no centro da capital. Durante um mês famílias inteiras transferem seu lar para o acampamento, que se torna uma grande confraternização de tradições. Inúmeras cavalgadas de centenas de quilômetros são feitas para celebrar o gaúcho a cavalo e sua memória de alguém apegado ao campo e ao cuidado do gado. E muito chimarrão, hábito, aliás, de origem indígena, muita 'canha' (cachaça), muita música, muita trova e festa.

A história agora (re)contada faz um desnudamento: o gaúcho surgiu de muito sangue e discriminação. Um povo foi praticamente dizimado. Mas como os humilhados e ofendidos da história sempre resistem, os charruas usaram os meandros da história para permanecerem vivos. Misturaram-se, viraram mestiços, e suas virtudes de povo de heroísmo e valentia de alguma forma aí estão, vivos, ressuscitados no gaúcho.

Importa, neste momento histórico, reconhecer a origem e humildemente pedir perdão. Que não se repita na história o genocídio de um povo livre. Que os milhões de índios e negros escravos assassinados neste país gritem mais alto por dignidade, por direitos, por justiça.

A valentia, a honradez, a coragem, a altivez do gaúcho têm, finalmente, sua origem e raiz (re)conhecidas. "No vizinho Uruguai, fala-se 'del alma charrúa'. No Rio Grande do Sul, é usual dizer que o comportamento aguerrido de um time de futebol é fruto dessa mesma alma. Na Argentina, charrua é índio de respeito" (Léo Guerchmann) Os gaúchos são, pois, charruas, são indígenas, vêm de um povo que teve que morrer, ser sacrificado no altar do branco dominador. Que os gaúchos, os gaúchos-alemães como eu, os gaúchos-italianos, os gaúchos-poloneses, os gaúchos-judeus, os gaúchos-árabes, os gaúchos-japoneses e os brasileiros jamais se esqueçam destes assassinatos históricos. E nunca mais se escreva uma carta como a do presidente Rivera ao senador Julián de Gregório Espinosa, seu amigo, no dia 15 de abril de 1831, em que avisa estar lhe enviando objetos dos índios dizimados quatro dias antes: "Meu estimado Julián. O entregador lhe dará uma lança, um arco e flechas. Conserva essas memórias dessa tribo selvagem que já não existe. Não tenho outra coisa a oferecer-te, amigo."

* Assessor Especial do Presidente da República do Brasil

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