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Como escapar da vida severina

CB, Brasil, p.22
26 de Set de 2004

Jovens entre 15 e 24 anos são maioria entre os migrantes que saem da zona rural para as grandes cidades. Projetos do ONGs do semi-árido nordestino tenta dar a eles condições de progresso sem sair do campo
Como escapar da vida severina
Paloma Oliveto
Da equipe do Correio
Eles não querem a mesma vida severina de seus pais, avós, bisavós e de tantos outros que vieram antes, quando da terra só brotava seca, e a esperança se afundava nas fendas abertas no solo. Mas, como seus pais, avós e bisavós, pensam que o futuro tem nome: cidade grande. Jovens entre 15 e 24 anos são a faixa da população que mais migra do campo para a zona urbana. Hoje, o Brasil rural concentra apenas um quinto dos habitantes do país, segundo o Censo 2000 do IBGE.
"Em grande parte, a educação é responsável pelo êxodo juvenil", acredita Francisca Batista, professora da Universidade de Feira de Santana (BA) e educadora do Movimento de Organizações Comunitárias (MOC). "As escolas rurais formam analfabetos. Ou iludem os jovens ou os expulsam, dizendo que só vão melhorar de vida se saírem do campo", diz. 0 destino destes 344 mil homens e mulheres que tinham abandonado seus municípios na época do Censo não é desconhecido. "Como não têm formação, eles saem para passar fome na cidade", diz Francisca.
Mas se a escola empurra o jovem para a zona urbana, também pode segurá-lo no campo. Experiências bem-sucedidas de organizações não-governamentais (ongs) no semi-árido nordestino - região onde estão os 43,7% dos analfabetos entre 12 e 17 anos - mostram que é possível elaborar modelos pedagógicos que valorizem a cultura local e incentivem o desenvolvimento sustentável. As ongs trabalham com recursos de empresas e apoio de prefeituras e secretarias estaduais de educação.
Um exemplo são as Escolas das Comunidades e Famílias Agrícolas (EFAS). 0 método de ensino baseia-se na pedagogia da alternância: os alunos passam 15 dias na escola e, nas duas semanas seguintes, ficam na sua comunidade, onde aplicam o conhecimento aprendido. Além das disciplinas tradicionais, os estudantes do ensino fundamental e médio freqüentam aulas de zootecnia, agricultura, pecuária e agronomia, por exemplo. No último ano, os alunos fazem cursos profissionalizantes, como técnica em agropecuária. "É um trabalho que valoriza a cultura camponesa. E dá condições para o jovem ter uma fonte de renda no meio rural", explica Silvia Pereira dos Santos, coordenadora pedagógica da Associação das EFAS da Bahia.
Orgulho da cultura
Até a 4asérie do ensino fundamental, Ildevagno Caetano de Santana, 20 anos, estudava em uma escola tradicional no município de Jacaraci, no sertão da Bahia. "Eu pensava sempre em me mudar para a cidade quando terminassem as aulas", conta. Na 5asérie, Ildevagno passou a freqüentar a Escola Técnica da Família Agrícola de Riacho de Santana, a quatro horas de sua cidade natal. Mudou de idéia. No último ano do ensino médio, ele está cursando Técnica em Agropecuária. Aprendeu a valorizar o campo e não quer mais sair de lá. "Tenho muito orgulho da nossa cultura. Quero aproveitar o que aprendi na minha comunidade", diz o rapaz.
Segundo Silvia Pereira dos Santos, pesquisa realizada nos anos 90 comprovou que 70% dos alunos das EFA$ permaneciam na área rural depois de formados. A associação atende a 56 municípios do semi-árido baiano. Para Ilza André Vicente, coordenadora pedagógica do Serviço de Tecnologia Alternativo (Serta), o trabalho das ongs não tem como objetivo "prender" o jovem na zona rural, mas capacitá-lo para, no futuro, ele intervir na realidade do campo. "0 jovem não precisa ficar plantando para o resto da vida. Pode ser doutor. Virar médico ou engenheiro. 0 importante é que ele sempre se preocupe em mudar para melhor a sua comunidade de origem", diz.
0 Serta é uma ong que trabalha em 28 municípios do sertão da Bahia, da Paraíba e de Pernambuco, além de 12 cidades do Vale do São Francisco. Entre os vários programas desenvolvidos pela organização, destaca-se o de educação rural. As escolas são incentivadas a valorizar o conhecimento local, e o projeto pedagógico é voltado à realidade de cada município. As famílias também participam ativamente do processo educacional. "Os pais são convidados a falar sobre suas experiências no trabalho do campo. Eles se sentem importantes. E os filhos têm orgulho. Fazemos um intercâmbio entre o saber popular e científico", explica lIza André Vicente.
As comunidades também se beneficiam das escolas atendidas pelo Serta. No começo de cada período letivo, grupos de alunos realizam censos para identificar problemas, desenvolver estratégias e encaminhá-los ao poder público. Em um dos municípios, os estudantes verificaram que os pequenos produtores tinham terra boa para plantar, mas não possuíam as sementes. A partir da análise do tipo de terreno, eles listaram as espécies que poderiam se desenvolver, a quantidade necessária de semente e encaminharam o problema - e a solução - à prefeitura. "Com isso, valorizamos o papel social das escolas."
Projeto inspirador
0 trabalho das ongs está servindo de inspiração para o Ministério da Educação (MEC) elaborar as políticas públicas do ensino no campo. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Seca(]) realiza desde o começo do ano seminários estaduais para divulgar as diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. No dia 7 de outubro, será realizado o 13o seminário, no Rio Grande do Sul.
Uma das bases para a formulação das políticas públicas é o diagnóstico Perfil da Educação do Campo, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 0 estudo revelou as desigualdades entre o ensino nas zonas urbana e rural (leia quadro nesta página) e apresentou propostas políticas de atuação elaboradas pelo Grupo Permanente de Trabalho (GT) do MEC. Um dos problemas levantados foi a formação dos professores que ensinam no campo.
"Os professores que vão para o meio rural geralmente são os que ficaram nas últimas colocações nos concursos. Além disso, eles não estão preparados para lidar com a realidade do campo", atesta a gestora Gildete Emerick, da Coordenação Geral de Educação do Campo da Secad. A educadora Francisca Batista, do MOC, concorda. 'A formação dos professores é a base de tudo. Eles têm de aprender a valorizar a zona rural e repassar isso aos alunos. Infeliz mente, mais de 50% das escolas do campo não passam de apêndices das escolas urbanas", diz.
0 Movimento de Organizações Comunitárias capacita educadores na Universidade de Feira de Santana para trabalharem em 11 municípios sertanejos, atendendo a 11.900 crianças da 1ª.à 4ª.série do ensino fundamental. Com programas pedagógicos que levam em consideração as especificidades do campo, o MOC estimula nos alunos o orgulho de viverem na zona rural. "Hoje, esses adolescentes e jovens já não têm vergonha de dizer que são do campo. Eles falam 'Se não for a gente, vocês (moradores das zonas urbanas) não comem"', atesta Francisca.
"E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).
(De Morte Vida Severina, João Cabral de Melo Neto)

Desigualdade no ensino
Apesar de o número de matrículas no ensino fundamental ter aumentado 21 % desde 1970 na zona rural, a qualidade da educação e as instalações das escolas ainda são precárias. Hoje, 5,9 milhões de jovens vivem no campo, segundo o Censo 2000.
A escolaridade média da população de 15 anos ou mais residente na zona rural é de 3,4 anos. Na zona urbana, passa para sete anos.
28% da população adulta (a partir de 15 anos) na zona rural são analfabetos.
95% das crianças de 10 a 14 anos residentes na zona rural estão matriculadas nas escolas. Porém, 72% dos alunos apresentam defasagem de série/idade.
66% dos jovens de 15 a 17 anos freqüentam a escola na zona rural. Apenas 12,9% deles estão no ensino médio, nível adequado a esta faixa etária.
Há 107.432 escolas rurais no Brasil, 50% dos estabelecimentos educacionais do país. Metade dessas escolas tem apenas uma sala de aula e oferece exclusivamente ensino fundamental da 1ª.à 4ª.série.
94% das escolas rurais têm menos de cinco salas de aulas. 67% atendem em média a 51 alunos.
64% das escolas que oferecem ensino fundamental da Ia à 4a série são formadas por turmas multisseriadas ou com apenas um professor. As turmas recebem em média 27 alunos.
21 % das escolas rurais não possuem energia elétrica, apenas 5,2% dispõem de biblioteca e menos de 1% oferece laboratório de ciências, informática e acesso à internet.
Apenas 9% dos professores de 1ª. à 4ª.série na zona rural possuem formação superior. 8,3% têm formação inferior ao ensino médio e, portanto, não estão habilitados para exercer a profissão.
Nas séries finais do ensino fundamental, apenas 57% dos professores cursaram o ensino médio.
O salário médio do professor de ensino fundamental varia, no campo, de R$ 296,34 a R$ 351,07. Na zona urbana, vai de R$ 619,45 a R$ 869,86.
Fonte: Perfil da Educação do Campo, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)

CB, 26/09/2004, p. 22

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