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Como é a vida em quilombo ameaçado por possível expansão da base de Alcântara (MA)

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/01/
01 de Jan de 2024

Como é a vida em quilombo ameaçado por possível expansão da base de Alcântara (MA)
Comunidade de Mamuna vive clima de pânico desde a instalação do centro aeroespacial, na década de 1980

1o.jan.2024 às 16h00
Marina Lourenço
Alcântara (MA)

Toda vez que o CLA (Centro de Lançamento de Alcântara) arremessa um foguete ao espaço, os moradores do quilombo Mamuna ficam cientes. Não necessariamente por aviso do instituto ou notícia em jornal, mas porque o chão de toda comunidade estremece.

É assim desde 1990, ano do primeiro lançamento da base aeroespacial de Alcântara (MA). De todos os centenas de povos que compõem o município, a comunidade de Mamuna é a que está mais próximo da área. É como se fosse vizinha da instituição.

Responsável pelo CLA, a Força Aérea Brasileira afirma que o risco de um foguete atingir a comunidade é baixo. Mesmo assim, a moradora Maria José Lima Pinheiro diz temer a vibração da terra.

Esse medo, no entanto, está longe de ser a maior preocupação de dona Maria -nome pelo qual é conhecida. Parte de uma geração que cresceu ouvindo que seria despejada a qualquer momento, ela afirma estar hoje, aos 50 anos, menos ansiosa do que na juventude, mas ressalta ainda ter horror à ideia de ser expulsa do lugar onde cresceu.

"O medo deu uma trégua. Antes, a gente era muito apavorado", diz a maranhense. "Se Mamuna for realocada, todas as outras comunidades serão. É estilo dominó."

A quilombola se refere às especulações de uma possível ampliação da base, o que provavelmente faria Mamuna ser transferida para outra região, como aconteceu com vários povoados na instalação do CLA, na década de 1980 -ao menos 312 famílias, de 32 comunidades, foram realocadas de forma compulsória, num processo que se tornou um dos casos mais emblemáticos da causa quilombola no país.

Em 2019, a Folha revelou que o plano mais recente de ampliação do CLA -baseado num acordo firmado por Bolsonaro com os Estados Unidos- previa a remoção de 350 famílias quilombolas de Alcântara, ao contrário do que prometia o então ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia).

Em 10 de abril daquele ano, ele disse em uma comissão da Câmara dos Deputados: "Quanto à pergunta sobre se haverá a expansão da área, devo dizer que não. A área estabelecida do centro é aquela já definida. Não existe uma questão de expansão".

"O que tranquiliza é saber que só vamos sair daqui se Deus permitir", afirma dona Maria. "Deus está acima de todos eles."

Apesar de celebrar o fim da gestão Bolsonaro, ela diz que o momento atual não é garantia de paz. "O governo não é só Lula. Tem um montão de parlamentares e deputados. E a gente sabe que tem muito dinheiro envolvido na base."

A quilombola conta que era criança quando o clima de pânico começou a se instalar na comunidade, entre o fim dos anos de 1970 e o começo da década de 1980.

"Era ditadura. Ninguém tinha poder. A gente sempre foi um povo muito isolado. Não tinha estrada, energia, nada", afirma. "Realocaram algumas comunidades nas agrovilas e disseram que, depois, seríamos nós. Falavam que não era para fazermos mais a roça [de coivara] aqui, porque íamos nos mudar."

Para exemplificar o nível de ansiedade que o assunto gerava, ela cita seu pai, que teria se recusado a consertar uma parede da casa imaginando que logo seriam todos despejados.

"O desenvolvimento só serve a algumas pessoas. Para outras, não serve para nada, apenas para destruir famílias."

Apesar das particularidades culturais e históricas entre as dezenas de comunidades realocadas, o governo transferiu os quilombolas para viverem juntos em sete agrovilas, que, desde então, apresentam problemas como acesso a saneamento básico e infraestrutura.

A indenização prometida pelo Estado a essas famílias também não aconteceu conforme o previsto, deixando a maioria à margem da pobreza. "Tem muita gente ali sofrendo. A distância da praia deles ficou longe."

Antes do remanejo, boa parte dos quilombolas vivia à beira-mar, fazia pesca e plantava o próprio alimento. Hoje, porém, eles estão afastados do litoral e, muitas vezes, se queixam de terras impróprias para plantio.

"A praia é a nossa feira. Lá tem jurupari, sururu, caranguejo, vários peixes", diz dona Maria. "Daí vão tirar a gente daqui e pôr onde não tem mangue, igarapé, nada?", questiona.

"Uma vez perguntaram quanto vale a minha casa. Ela é de taipa, mas vale muito mais do que qualquer uma de alvenaria em São Luís, porque o meu território tem o que nenhum outro lugar oferece: liberdade."

Pescador desde os 11 anos, Joel Lemos dos Santos, 54, também reclama da ideia de uma possível transferência. Ele diz que não só o estilo de vida deles seria afetado, como também o das agrovilas, que vez ou outra compram peixes em Mamuna.

O quilombola conta que desde criança torce para permanecer no território. Como dona Maria, ele afirma estar hoje mais relaxado, apesar do medo contínuo.

"Eu não aprendi a leitura, aí me preocupava. Como vou sair daqui? Tudo eu tenho, crio minhas galinhas, trabalho com a roça, e a praia está bem perto. Me preocupei um tanto."

Ele afirma que a comunidade tem um sistema de troca de alimentos. Após pescar uma safra de peixes, Joel oferece alguns a vizinhos, que, em retribuição, lhe dão frutas, legumes e verduras.

Para Joana Barbosa Diniz, 43, quebradeira de coco babaçu, se a comunidade for realocada, todos de Mamuna terão a alimentação empobrecida. Sua suposição, ela diz, vem do que ouve dos povos que foram transferidos. "As terras dão muito o que comer." Entre os alimentos estão mandioca, milho, juçara, murici, gajuru, goiaba e manga.

Além da relação direta com a comida, o território é, segundo dona Maria, lazer e cura emocional.

"É como morar num paraíso", diz a quilombola, apontando para a praia, que é deserta e rodeada de pequenos morros, que dão vista para o CLA. "Digo por experiência. A praia cura, desestressa. Você se sente leve, toma banho, brinca com as crianças. Esquece de qualquer problema, até de que pode ser despejado."

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