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Como ayahuasca renovou tradições de indígenas do Xingu

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/08/
Autor: LEITE, Marcelo
30 de Ago de 2023

Como ayahuasca renovou tradições de indígenas do Xingu
Chá psicodélico levou yudjás a retomarem conversas com antepassados e a reviverem figura do pajé

30.ago.2023 às 10h00
Marcelo Leite
Colunista da Folha e autor de livros como "Promessas do Genoma" (Editora Unesp, 2007) e "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira" (Fósforo, 2021)

[RESUMO] Povo yudjá do Parque Indígena do Xingu encontrou a ayahuasca em 2011 por meio da religião União do Vegetal. A partir daí, voltaram a ter pajés e reciclaram rituais com uso do chá, ou wapá, remédio sagrado que permite rever ancestrais e que, segundo seu relato, a primeira humanidade havia esquecido nas montanhas ao sair em busca do rio após dilúvio.

A medicina (ayahuasca) é do nosso criador, que deixou essa planta para a gente poder ter conexão com ele. Ouvia isso de nossos avós, contou Areaki em língua yudjá. A tradução para o português era feita pelo marido, Karin, professor da aldeia Tubatuba, no Parque Indígena do Xingu (MT), onde vivem três centenas de pessoas da etnia yudjá, também conhecida como jurunas.

Ela é muito grande, prosseguiu a mulher. Faz contato com o mundo dos espíritos, leva para lugar que a gente não conhece. Enxerga tudo, até onde o mundo vai. O Xingu é o coração do mundo, estamos preservando para o mundo respirar, não só para nós. A força da floresta protege muita gente, também em outros países.

Defenda esse lado bom para o mundo continuar, para a gente continuar vivendo, recomendou Areaki aos jovens indígenas e não indígenas reunidos na oca central da aldeia. Povo indígena não vai acabar, porque nossa raiz é Deus. E a gente não tem raiva, porque estamos aqui para ensinar.

A reunião em 5 de agosto foi iniciativa do núcleo florestal do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, a UDV, em Alta Floresta (MT). Moças e moços ligados à religião ayahuasqueira encheram um micro-ônibus para chegar à maior aldeia do povo yudjá e travar contato com rapazes e garotas que, como eles, tomam o chá que udevistas chamam de hoasca ou vegetal (daime é o outro nome da ayahuasca, usado por fiéis do Santo Daime e da Barquinha).

Areaki chamou atenção não só pelo conteúdo do discurso, mas por se tratar de uma mulher. No restante do diálogo entre jovens falaram só as moças não indígenas. Do lado dos anfitriões, com exceção dela, discursavam somente os homens.

O parque tem 28 mil km2, área maior que a de Alagoas. Nele vivem mais de 8.000 indígenas de 16 etnias, algumas levadas para lá no processo de ocupação do Brasil Central: aweti, ikpeng, kaiabi, kalapalo, kamaiurá, kisêdjê, kuikuro, matipu, mehinako, nahukwá, naruvotu, wauja, tapayuna, trumai, yudjá e yawalapiti.

Os yudjás são conhecidos como exímios canoeiros, os "donos do rio". O Xingu esteve no eixo de sua migração em direção às cabeceiras, mas parte do povo se fixou perto de Altamira (PA), cerca de 400 km ao norte. Esse contingente de "jurunas da Volta Grande" sofre hoje com a vazão fluvial diminuída pela usina de Belo Monte.

Kumadiwá, rapaz eloquente cujo corte de cabelo lembra jogadores de futebol, narrou em yudjá aos jovens não indígenas que, ao beber o "wapá" (remédio), entendeu como as formigas conversam entre si. Viu que eram verdadeiras as histórias dos anciãos sobre pajés.

Estou aprendendo sobre o mundo e o que aconteceu no passado, disse Kumadiwá. O passado se comunicando com o presente.

Faz apenas 12 anos que a ayahuasca encontrou os yudjás e, segundo seu próprio relato, lhes deu coragem para voltar a ser e ter pajés. Iniciou-se ali um tipo de renascença cultural, de reavivamento entremeado de inovação que atrai a curiosidade de outras aldeias xinguanas, que enviam representantes a Tubatuba para conhecer a bebida e descobrir por que as coisas estão dando certo por ali.

Na etnografia dos jurunas não existe registro de que tenham conhecido o chá. Não há na região do Xingu ocorrência natural dos vegetais chacrona e mariri, ingredientes da ayahuasca. A bebida, usada como sacramento nas religiões Santo Daime, Barquinha e UDV, provoca visões conhecidas como "mirações" e problemas gastrointestinais (vômito e diarreia).

As folhas do arbusto chacrona (Psychotria viridis) contêm a substância psicoativa dimetiltriptamina. A DMT, como é mais conhecida, figura entre os psicodélicos clássicos, ao lado da mescalina (do cacto peiote), psilocibina (de cogumelos) e LSD. DMT e psilocibina têm comprovado efeito antidepressivo e estão entre os carros-chefes do chamado renascimento psicodélico para a medicina.

O cipó mariri, ou jagube (Banisteriosis caapi), fornece à ayahuasca o componente crucial das betacarbolinas. São compostos, como a harmina e a harmalina, capazes de inibir a ação de uma enzima, a monoaminaoxidase (MAO), que degrada a DMT no trato digestivo. Ou seja, sem mariri a ayahuasca não teria efeito psicodélico.

A beberagem chegou aos yudjás por mãos não indígenas (mas eles contam essa história de outra maneira, como se verá mais adiante). O pioneiro foi o "avô" branco Abeatamá (sem camisa, em yudjá), apelido dos jurunas para Eduardo Biral, 71, dentista que deixou o consultório em São Paulo em 1979 para se dedicar ao Xingu.

Nos anos 1980, contratado pela Funai, Biral ainda não era membro da UDV, que viria a conhecer em 1998. Pouco depois de entrar para a religião, foi procurado pelo mestre Jair, filho do fundador mestre Gabriel, interessado em seu trabalho no Xingu.

Mestre Jair perguntou se os indígenas de lá conheciam a hoasca e, ao saber que não, disse ao dentista para levar -mas só quando recebesse a estrela, ou seja, se tornasse mestre, grau da hierarquia religiosa que autoriza o membro a dar ayahuasca para outras pessoas. A estrela só veio em 2006.

Nos anos seguintes, Biral começou a dar o chá para um e outro indígena no Xingu, inclusive na aldeia de Raoni, a Piaraçu. Ouviu do líder Kayapó que, apesar de branco, era também um pajé, pois sua bebida e seus cantos (chamadas, como se diz em rituais da UDV) ajudavam a ver espírito do alto, onde não havia escuro, mostravam onde a sucuri dorme (lugar importante de conhecer, para se evitar).

Ao lado de Piaraçu fica a aldeia Pakayá, dos yudjás. Ali morava Marrurimá Juruna, mais conhecido como Marru, que em 2000 havia tomado ayahuasca com os ashaninkas, uma das dezenas de etnias da Amazônia que usam o chá. Foi durante visita ao Acre para uma oficina de agroflorestas organizada pelo Instituto Socioambiental (ISA).

Marru bebeu e se lembrou das histórias que um tio contava sobre a medicina sagrada, "wapá", de um antigo pajé. Sob efeito do chá, viu um espírito descer do céu, que lhe falou: "Eu sou superior, sou espírito, mas moro aqui. Você é bem-vindo e pode levar para seu povo a minha força".

Ao voltar para o Xingu, contou tudo para o cacique dos yudjás. O líder acreditou que era, de fato, o remédio que os pajés bebiam antigamente. Marru esteve no Acre de novo, em 2001, tomou ayahuasca e viajou nas costas de uma jiboia pela floresta, que lhe mostrava cada remédio existente na mata.

De regresso ao Xingu, procurou Biral, cuja fama de pajé branco se espalhara pela região. Queria saber como obter ayahuasca para seu povo. O dentista então lhe disse que a fonte mais próxima ficava em Alta Floresta, onde havia um núcleo da UDV.

Um dos fundadores do Núcleo Florestal e seu dirigente na época era o psiquiatra curitibano Duarte Antônio de Paula Xavier Fernandes Guerra, 53, udevista desde os 26 anos, que se mudara para Alta Floresta em 2003. Ele também é professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus de Sinop, que tem programa de atendimento de saúde no Xingu.

Guerra já percorreu várias vezes os 400 km de rodovia e 33 km no rio Xingu, de lancha voadeira, que separam Alta Floresta das aldeias que visita na condição de médico. Na última delas, acompanhado da reportagem da Folha, foi como mestre da UDV, não como profissional de saúde, neste caso para um encontro de intercâmbio entre jovens de seu núcleo religioso com moças e rapazes yudjás.

Em 2011, em campanha de prevenção contra alcoolismo na aldeia Piaraçu, Guerra havia sido procurado por Taradju Juruna, da vizinha aldeia Pakayá. Queria saber se o médico trazia consigo o "remédio do Biral". Dias depois, seis yudjás foram os primeiros da etnia a beber ayahuasca no Xingu. Na segunda sessão apareceram 20; na terceira, 30.

No ano seguinte, em maio, após levar quantidade maior do chá, Guerra chegou a distribuir ayahuasca para uma centena de indígenas. O mestre se limitava a fazer chamadas do ritual da UDV, como a do Caiano e a da União, obrigatórias na abertura, dispensando as leituras estatutárias com que se iniciam as sessões usuais da religião e a fase de perguntas dirigidas ao mestre oficiante.

Afora as chamadas, as primeiras sessões transcorriam geralmente em silêncio, e após três horas os indígenas iam para suas casas. "Respeitamos a cultura deles", diz o mestre psiquiatra.

"Sentimos confiança neles: são ordeiros, pessoas de paz, que mostram respeito pelo vegetal", havia relatado Guerra para dirigentes da UDV numa reunião em Barra do Garças (MT). Ali recebeu a incumbência de seguir o trabalho iniciado por Biral, cumprindo a orientação de mestre Jair.

O Núcleo Florestal não se limita a fornecer a bebida para os yudjás. Udevistas incentivaram os indígenas a plantar chacrona e cipó. Hoje Tubatuba tem mariri por todo lado. Há chacrona, também, mas o arbusto não se dá muito bem no clima mais seco do Xingu, em comparação com a floresta chuvosa do noroeste amazônico.

Os jurunas ergueram uma casa cerimonial só para rituais com ayahuasca, a Kubepá. Ali o pessoal da UDV os ajudou a construir uma fornalha rústica, para que possam ferver as plantas por várias horas em panelões doados pela igreja, sem gastar muita lenha.

Ainda não têm autossuficiência com o chá, mas já realizam cerimônias sem a presença de mestres da cidade e passaram a criar suas próprias chamadas, em português e na língua da aldeia. Cantam ao som de maracás e de folhas de uma planta que consideram sagrada e chamam de "onaha".

"Com o wapá eles se reencontraram, e o wapá com eles", diz Guerra. O psiquiatra ressalta que a recepção da ayahuasca pelos yudjás foi diferente da dos kayapós, ikpengs ou kaiabis, que tiveram contato com a ayahuasca da UDV no Xingu sem se tornarem usuários frequentes. "Fez muito mais sentido para eles do que para outros povos."

Um dos fenômenos concomitantes com a introdução da ayahuasca entre os yudjás foi a volta dos pajés. Um deles é Yabaiwá Juruna, 41. "Hoje a gente está fazendo práticas que não fazia antes. Parou, ficou adormecido", diz o vice-cacique e professor que sofreu 22 anos com dor de cabeça crônica, aliviada depois do chá.

Na terceira vez que tomou ayahuasca, Yabá, como também é chamado, teve visões com antigos yudjás, que lhe deram orientações. Conheceu o lugar em que viviam, nas montanhas, e faziam oferendas no centro da aldeia, chamando espíritos. Numa das mirações, foi encorajado a tratar dores no joelho e na barriga de uma prima, o que nunca tinha feito antes.

Sob efeito do wapá, começou a soprar o corpo da mulher nos locais doloridos, conta, e lhe pareceu que havia fumaça saindo da articulação e do ventre. Por trás, o espírito lhe dizia o que fazer. Proferiu um rezo (oração) pedindo que a dor saísse. Quanto mais soprava, mais crescia a força (ou burracheira, como se diz na UDV).

"Foi um peso muito forte entrar nesse processo de formação como pajé, não tinha pajé para me conduzir", conta Yabá. "Essa informação eu recebia na força do chá. Espírito que faz mal começa a atacar a gente, tem de lutar para não ficar doente. Estou ocupando o espaço que estava vazio -eu, Marru, Karin."

O vice-cacique integra hoje um grupo de sete indígenas dedicado a estudar e trocar conhecimento sobre curas e pajelanças. "Graças ao wapá, está voltando tudo isso. É uma felicidade encontrar com o passado, onde tudo começou", ensinou o pajé em sua apresentação para os jovens reunidos no centro da aldeia.

"Quando a gente fala do passado, é muito tempo, milhares de anos. Mas, quando pensa e fala, vive no presente. O passado está no presente, a gente está criando."

No modo yudjá de narrar essa transformação, em que predomina uma concepção circular e não linear do tempo, o que aconteceu foi um reencontro com a ayahuasca, não uma introdução. Inovações contribuem para reafirmar a identidade cultural, criando práticas e rituais que recompõem aquilo que ficou para trás.

O advento do wapá, na perspectiva indígena, nasceu de busca recíproca, o vegetal procurando os indígenas e os indígenas atrás do vegetal, como registrou em 2018 a etnóloga Tânia Stolze Lima no artigo "A Planta Redescoberta: Um Relato do Encontro da Ayahuasca com o Povo Yudjá" (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69).

Segundo o relato coletado pela pesquisadora, o criador da humanidade se comunicou com Tarinu, pai de Yabaiwá, em resposta a um apelo. Contou-lhe a respeito do mariri, um remédio que a humanidade abandonara no alto da montanha, para onde tinha sido levada pelo criador por ocasião do dilúvio que precedeu a diversificação dos povos.

Quando as águas diluvianas baixaram, e os yudjás seguiram com o criador em busca do canal do rio Xingu, prossegue o artigo, o remédio, por esquecimento, acabou largado no alto da montanha. Foi encontrado depois pelos yudjás que se deixaram ficar para trás e não realizaram o percurso até o Xingu, terminando por se transformar em outros povos indígenas.

Em sua busca dos yudjás atuais, o mariri repetiu, assim, o caminho da humanidade antiga até o Xingu.

No sábado à noite, uma centena de pessoas se reuniu na Kubepá, em torno de uma fogueira, para tomar o wapá. Mulheres e homens de várias idades, inclusive meninos de uns 12 anos, beberam o chá, após aguardar cerca de 15 minutos até que todos os copos descartáveis estivessem servidos, respeitando a liturgia da UDV em que todos ingerem o líquido ao mesmo tempo.

Ouviram-se apenas as chamadas de abertura da UDV, entoadas pelo mestre Duarte Guerra. Nenhum indígena cantou. Não se viam pinturas nem cocares e outros adereços que os yudjás envergam em suas cerimônias. Não houve farfalhar de folhas de onaha nem chiado dos maracás.

Mesmo sem as leituras estatutárias, foi um ritual da linha UDV. Por cerca de uma hora e 30 minutos predominou o silêncio, rompido só por pessoas vomitando, até que Guerra abriu o tradicional espaço udevista para perguntas da audiência.

O que se seguiu foi uma série de discursos em yudjá, acompanhados de versão para o português. Pelo menos um deles durou mais de meia hora. Vários dos que falaram se desculpavam pela festa sem brilho, explicando que não podiam exibir alegria num período de luto pela morte de um irmão do cacique Tinini.

Depois de discursar e traduzir-se a si próprio, Yabaiwá disse que abriria uma exceção e daria de presente para os visitantes uma música composta ("recebida") por ele na força do wapá. E cantou: "A vida do bem-te-vi é só alegria, ia, ia, ia, ia / A casa do beija-flor é só harmonia, ia, ia, ia, ia...".

Em português, foi uma pequena concessão na firmeza do renascimento yudjá: o imperativo de observar luto costumeiro sobrepujou a tentação de satisfazer expectativas dos visitantes com cocares de penas, pinturas corporais e cânticos em língua nativa.

Passado que revive no presente. Menos por influência dos parceiros da UDV, ao que parece, e mais pela força da ayahuasca que os mensageiros da cidade receberam de outros povos da Amazônia e fizeram chegar aos donos do rio Xingu.

Os jornalistas Lalo de Almeida e Marcelo Leite viajaram de Alta Floresta ao Parque Indígena do Xingu a convite do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV)

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