VOLTAR

Comentários sobre os Guarani Kaiowá: entre a desinformação e a má-fé

Carta Maior-Braília-DF
Autor: Spensy Pimentel
05 de Mai de 2006

Um texto da repórter Fernanda Sucupira sobre a situação dos Guarani Kaiowá da região de Dourados (MS) suscitou debates na semana passada entre os leitores de Carta Maior. Não é verdade que a cultura guarani "sublima" a morte autoprovocada, como diz um dos comentadores.

Um texto da repórter Fernanda Sucupira sobre a situação dos Guarani Kaiowá da região de Dourados (MS) suscitou debates na semana passada entre os leitores de Carta Maior.

Ocupo este espaço para realizar alguns esclarecimentos, na qualidade de ex-morador de Dourados (1982-1992), jornalista que acompanha a situação desse grupo há dez anos, e antropólogo em formação, com dissertação de mestrado em preparação na Universidade de São Paulo.

1 - Em primeiro lugar, vamos situar o debate. Nada que aqui será dito está fora de referência ao chamado Estado de Direito, conceito comumente alegado pelos fazendeiros da região para justificar o direito à propriedade, diante dos índios. Tampouco se está defendendo impunidade para os culpados pelo assassinato. O que não pode haver é condenação prévia, ou injusta, baseada em confissões forjadas, por exemplo - o que vem sendo denunciado pelos indígenas sob acusação, e cuja evitação é também objetivo da atual legislação brasileira.

2 - Quando os antropólogos que realizam relatórios de identificação de terras indígenas no sul de Mato Grosso do Sul explicam que toda a região do sul do estado (cerca de 3 milhões de hectares) era território ocupado por esses grupos até poucas décadas atrás, obviamente, não estão defendendo que toda essa terra deveria ser entregue a eles. Qualquer pessoa com mínimo bom senso pode perceber que hoje essa região tem mais de 200 mil habitantes brancos. Nunca houve defesa de uma retirada generalizada dessa população dali. Quem dissemina esse tipo de boato - porque informação, de fato, não há aí - só pode estar agindo de má-fé. As áreas tradicionalmente ocupadas pelos índios eram as beiras de córregos e rios, lugares de vegetação mais alta e com água próxima. As demarcações feitas hoje se dão em torno de locais nessas condições, preservando-se áreas para comunicação entre os núcleos familiares, sem isolá-los uns dos outros.

3 - É bom deixar claro: racismo, segundo a Constituição de 1988, é crime inafiançável e imprescritível. Apesar de o termo ser comumente empregado em relação ao preconceito contra negros, como ex-morador da região (não está falando aqui nenhum "universitário", "ongueiro" ou "comunista" de fora - eu vi tudo com meus próprios olhos), em Mato Grosso do Sul, é vergonhoso o que se verifica contra os índios. Em março de 2005, colhi vários depoimentos de mães de crianças indígenas internadas em hospitais particulares de Dourados: havia muita reclamação sobre o tratamento dispensado, especialmente por conta do preconceito. Contaram-me, por exemplo, que as mães eram acusadas pelas enfermeiras de desleixo com seus filhos: "Como vocês índios são sujos, hein? Não cuidam dos seus filhos direito". O problema é reconhecido pelo poder público, tanto é que foi inaugurada às pressas no ano passado a ala pediátrica do novo hospital público de Dourados (primeiro de uma região com mais de 30 municípios). Representantes da prefeitura e da Fundação Nacional de Saúde disseram-me que isso, em grande parte, ocorria para tentar evitar otratamento preconceituoso que os índios recebiam nos hospitais particulares.

4 - Há, ainda, depoimentos numerosos de adolescentes indígenas que abandonam o ensino médio quando têm de recorrer às escolas nas cidades da região, simplesmente por não suportarem a pressão racista de professores e colegas brancos. Sem falar nas histórias sobre jovens índios que se mataram por se sentirem ofendidos com demonstrações de preconceito.

5 - Não é verdade que a cultura guarani "sublima" a morte autoprovocada, como diz um dos comentadores. Uma formulação com essa não passa de uma maneira fácil de tranqüilizar as consciências dos habitantes brancos da região. Como acontece em qualquer cultura, em qualquer parte do mundo, os Guarani Kaiowá valorizam a integridade dos familiares e amigos, e choram pela sua morte. E mais: reprimem o suicídio e lamentam que muitos adolescentes acabem se matando em função de conflitos interfamiliares que poderiam ser evitados caso houvesse condições suficientes (fundamentelmente, mas não apenas, mais terras) para garantir o bem-estar geral. Estou falando isso depois de diversos anos de pesquisa em relação ao tema, note bem. A única sublimação a que os Guarani Kaiowá têm de submeter-se cotidianamente diz respeito à pobreza em que vivem - e se não o fizessem, certamente já teriam se matado em muito maior número do que os atuais 50 a 60 por ano, em uma população de pouco menos de 40 mil pessoas.

6 - Segundo a Fundação Nacional do Índio, por liminar do Ministério Público Federal (e não "do governo", como diz um comentador), a terra em litígio, onde aconteceu o crime, é, sim, considerada indígena, pelo menos em caráter temporário (enquanto o processo de reconhecimento da área tramita). Por isso é que vale o trato que teria sido estabelecido entre Funai, MPF e Polícia Civil dias antes da tragédia: para ir até a área, os policiais deveriam estar acompanhados pela Funai. As demais informações citadas pelo comentador merecem apuração pelas instâncias competentes.

7 - O mesmo comentador que lembrei no item 5 insinua que o fazendeiro tem mais legitimidade do que os índios porque ele "certamente está sóbrio" quando dá sua versão sobre o caso - o que, por inferência, lembra outra acusação racista freqüente na região. Caro Luiz, não é uma questão de "óculos de grossas lentes comunistas". Trate as pessoas com respeito. Se sua mãe não lhe ensinou isso, pelo menos tome cuidado para não ir preso qualquer hora dessas, quando tiver coragem de fazer um comentário desses publicamente, identificando-se com clareza. Não custa lembrar outra vez: racismo é crime.

8 - Para ser justo: outro comentador chama os fazendeiros da região de "grileiros". Na verdade, o problema é bem maior: a grande maioria dos habitantes do sul de MS foi levada para lá pelo próprio Estado brasileiro, há algumas décadas. Havia uma política de "ocupação da fronteira" e de colonização da região. Grande parte dos ocupantes, portanto, pode ser considerada "de boa fé". O problema maior foi o racismo do Estado, não deles. A questão é que, desde 1988, nossa Constituição se baseia em outro paradigma, o do respeito à pluralidade étnica e cultural. Buscar reconhecer os direitos indígenas e reparar injustiças que foram cometidas contra eles em períodos anteriores: isso também integra o rol de medidas necessárias para cumprir nossa atual Constituição. Aliás, segundo as atuais "regras do jogo", o direito à vida precede o direito à propriedade.

9 - Outro comentador, Paulo Barcellos, sugere que sem-terra e índios vão procurar terras da União ou na Amazônia para ocupar. Caro Paulo, os Guarani Kaiowá já ocupavam todo o sul de Mato Grosso do Sul há centenas de anos. Há montes de documentos históricos comprovando isso. Apesar de não disporem de "título de propriedade", eles chegaram primeiro, não os brancos. E, por muitos anos, não se opuseram a que os brancos viessem. Certamente havia espaço para mais gente, e muitos índios ficavam satisfeitos com diversas novidades como o sal, os machados e facões, ou as panelas de metal, por exemplo. O conflito na região só se aguçou nos anos 60 e 70, quando a monocultura extensiva mecanizada provocou o desmatamento generalizado, e os fazendeiros passaram a expulsar os índios das beiras de córregos, no fundo das propriedades, onde eles preferencialmente viviam, quase sempre de forma pacífica, até então. Mandaram-nos para reservas como a de Dourados, que se converteram em grandes guetos, quase campos de concentração, onde hoje não há terra nem nenhum outro tipo de recurso natural suficiente para todos. Foi aí que começaram os suicídios, a violência, os problemas que vemos atualmente entre eles. Em Dourados, por exemplo, moram mais de 10 mil pessoas, em 3,5 mil hectares, segundo dados da Funasa. Desafio qualquer um dos leitores a tentar sustentar a família com 1 hectare de terra (e, na verdade, muitos têm bem menos que isso), sem nenhuma assistência técnica nem financiamento.

10 - Outra coisa, Paulo. Ao contrário do que você diz, na verdade o fato de as coisas "estarem prontas" atrapalha bastante os índios. Braquiária e colonião por todas as partes, florestas derrubadas, riachos assoreados. Isso pode ser bom para a soja e o gado, mas é péssimo para a agricultura tradicional e necessidades das comunidades indígenas como lenha, palha etc. Os índios insistem em ficar ali porque querem estar perto de seus parentes e de marcos geográficos a que fazem referência inclusive em suas narrativas sobre a origem do mundo (sim, Paulo, eles têm seu próprio Gênesis, e alguns morros e rios do sul de MS, aos olhos guarani, são tão importantes como Jerusalém, para os cristãos).

11 - Caro J. Abdon: os fazendeiros de Dourados e região só pagam impostos (quando pagam, é claro: não ponho a mão no fogo por muitos que conheci pessoalmente) porque têm acesso à terra que historicamente era ocupada pelos Guarani Kaiowá. Aliás, nem sei por quanto tempo vão conseguir continuar gerando riqueza ali, porque as técnicas geralmente adotadas são predatórias e - como mostra a atual choradeira na região causada pela queda no preço da soja e pelo surgimento dos focos de febre aftosa - envolvem opções econômicas pouco inteligentes, em termos estratégicos. Vale lembrar que uma das possíveis explicações para a aftosa na fronteira envolve informações sobre fazendeiros que comprariam as vacinas para conseguir o certificado sem aplicar as doses, para economizar o dinheiro gasto com a operação, ou mesmo investigações sobre contrabando de gado.

12 - Talvez, Abdon, os fazendeiros não precisem de ONGs porque podem ter juízes, prefeitos, governadores e parlamentares (vide a bancada ruralista, que agora tenta aprovar no Congresso uma tunga bilionária dos cofres públicos em favor dos latifundiários nordestinos).

13 - Maurício: pelo que representou nas décadas passadas a política da Funai em Mato Grosso do Sul em relação aos Guarani Kaiowá, eu diria que eles mantiveram sua cultura apesar das políticas públicas, não por causa delas. E quanto à alimentação, cito frase do líder Sílvio Paulo, da área Kaiowá de Caarapó (MS): "Nós não queremos continuar sendo 'tratados', recebendo ração do governo, como porcos ou galinhas. Queremos terra para produzir nosso próprio alimento".

14 - Qual é o problema de haver estrangeiros nas ONGs? Por que a xenofobia? Para que os fazendeiros continuem tratando os índios como tratam longe das câmeras de TVs e lentes dos fotógrafos? Não somos todos os brasileiros estrangeiros que chegaram aqui estrangeiros na terra dos índios? Até onde se sabe, eles chegaram primeiro (claro, como diz o outro comentarista, há os povos dos sambaquis, mas não dá para saber ainda o que aconteceu exatamente com eles...).

15 - Luiz: a própria Funai concorda que os proprietários de boa-fé merecem indenização, e os técnicos da fundação dizem inclusive ter auxiliado a Assembléia Legislativa de MS no ano passado na elaboração da proposta que altera a Constituição do Estado, permitindo pagar indenização pela terra, em caso de reconhecimento como área indígena (antes, só podia haver indenização pelas benfeitorias). O problema é que há um erro histórico de nossos governos a ser corrigido. Não há como fugir disso.

16 - Do que mais se comenta, não se pode dizer outra coisa senão que cabe às autoridades competentes apurar o que ocorreu. E esperar que se dê o mesmo com as mortes dos índios Dorvalino Rocha, morto em dezembro por seguranças contratados por fazendeiros, em Nhanderu Marangatu, ou Marcos Verón, assassinado a pauladas por jagunços em 2003 - lamentavelmente, não posso desejar o mesmo com relação a Marçal de Souza, morto em 1983, porque, segundo nossas leis, o crime já prescreveu. Sem falar em tantas outras vítimas menos conhecidas, ou mesmo nas dezenas de jovens índios que tiram a própria vida revoltados com as condições que encontram em determinadas reservas da região, quase "campos de concentração" contemporâneos (embora hoje em condições muito melhores que há alguns anos), como já notou mais de um visitante da região.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.