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Combater mudanças climáticas é possível e barato, diz ONU

OESP, Especial, p. H1-H4
Autor: DAVIDSON, Ogunlade; SKAF, Paulo
05 de Mai de 2007

Combater mudanças climáticas é possível e barato, diz ONU
Gasto para solucionar os problemas é de 3% do PIB até 2030 Sociedade tem os instrumentos, só falta vontade política Termos sobre responsabilidade foram abrandados no texto final Para alcançar as metas de mitigação todos os setores têm de agir Matrizes energéticas precisam mudar: saem combustíveis fósseis, entra energia limpa Biocombustíveis e até mesmo energia nuclear são as alternativas

Cristina Amorim e Andrei Netto

O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, no sumário para formuladores de política sobre como segurar o efeito estufa, mostra que a sociedade já tem em mãos instrumentos possíveis para evitar os males maiores do aquecimento. Mas isso tem um custo: 3% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial até 2030, ou apenas 0,1% a 0,2% por ano, valor que pode ser menor do que os custos da adaptação às mudanças climáticas. Mas falta comprometimento político para implantá-los.

O texto foi divulgado ontem, em Bangcoc, após uma semana de negociação entre as delegações de países desenvolvidos, com Estados Unidos à frente, dos emergentes, conduzidos pela China, e os cientistas que de fato escreveram o relatório. Em comparação com o texto inicial, de segunda-feira, alguns termos sobre responsabilidade foram abrandados.

Ainda assim, as conclusões continuam fortes. De acordo com a concentração almejada de gases-estufa na atmosfera terrestre - e o conseqüente aumento na temperatura média global, com seus devidos impactos na biosfera - os governos precisarão decidir se gastam mais ou menos do PIB. Basicamente quanto menos se investir, maior a concentração de gases, mais alta a temperatura e mais agudos os impactos.

Leia-se por investimento uma série de medidas. O IPCC deixa claro que nenhum setor sozinho ou tecnologia única (inclusive soluções da geoengenharia, como guarda-chuvas espaciais gigantescos) pode atingir as metas de mitigação.

Será necessário investir na mudança de matrizes energéticas: cai a participação dos combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, sobe a das fontes renováveis, como nuclear, solar, calor e biocombustíveis. É preciso controlar o desmatamento - que, além de elevar o setor florestal ao terceiro lugar entre os que mais emitem, ainda impede a retirada do carbono do ar. Deve-se modernizar usinas de energia, indústria, transporte, construção e agricultura para que poluam menos.

PORTFÓLIO DE SOLUÇÕES

É preciso, dizem os cientistas, investir em meios de transportes que consumam menos combustíveis, em métodos de controles de pragas agrícolas menos poluentes e em uma construção civil mais inteligente, que use melhor a luz solar e seja menos dependente de sistemas de climatização.

Há a necessidade de redesenhar as plantas industriais para que demandem menos energia e emitam menos gases e implementar técnicas de manejo da terra responsáveis, combinadas ao reflorestamento e ao combate irrestrito ao desmatamento - que detém sozinho o poder de controlar 50% das emissões de CO2 do planeta.

A criação de incentivos financeiros para manter a floresta em pé é aconselhada. Ela ecoa em propostas atuais de criação de um fundo para os países tropicais evitarem o desmatamento, entre elas uma brasileira.

É fundamental, diz o relatório, encontrar alternativas ao petróleo e aos demais combustíveis fósseis, responsáveis diretos pelo aquecimento global. O IPCC recomenda o investimento e a adoção de energias alternativas, citando os biocombustíveis - sem, no entanto, mencionar o etanol.

CONTRATO COM O FUTURO

A questão é justamente a escolha do cenário que a geração atual deixará para a próxima. Hoje a concentração de gases-estufa é de aproximadamente 430 partes por milhão (ppm) de CO2 equivalente (ou a quanto todos os tipos de gases que causam o problema correspondem, juntos, à quantidade de dióxido de carbono).

Um investimento de até 3% do PIB até 2030 manteria a concentração em 445 ppm, o que provocaria um aumento de 2,4oC a 2,8oC na temperatura global, em comparação à medida na época pré-Revolução Industrial. Seria suficiente para ameaçar a existência de 30% das espécies do planeta, contudo é um índice considerado manejável pelos cientistas. O percentual do PIB varia de acordo com os cenários usados para criar projeções.

"Se mantivermos um crescimento mundial entre 3% e 5%, o custo das medidas mais ambiciosas para reduzir o aquecimento terão impacto de 0,1% a 0,2% do PIB mundial ao ano", disse ontem, em Bangcoc, o climatologista alemão Bert Metz, um dos coordenadores do grupo de escreveu este sumário.

O IPCC não detalhou valores, pois não trabalha com projeções de crescimento do PIB até 2030. Em valores atuais, representaria entre US$ 46 bilhões e US$ 92 bilhões por ano, considerando o PIB mundial atual de US$ 46 trilhões.

Mas, se nenhum investimento for feito para controlar as emissões de gases, em 2030 a concentração de CO2 equivalente na atmosfera pode quase duplicar. "O IPCC está oferecendo cenários que propõem idéias claras para escolhas políticas determinantes. Se continuarmos inertes, teremos grandes problemas", disse Ogunlade Davidson, o segundo coordenador do grupo.

No caso de inação, o mundo estará, em 2090, frente ao aquecimento médio de até 4oC - terrível entre as projeções para o futuro da Terra, com graves conseqüências como alteração de biomas, derretimento do gelo polar e mudanças extremadas no clima.

Texto final ficou menos enfático após negociações
Exclusão de trechos torna difícil a identificação do papel de emergentes no agravamento do efeito estufa

Andrei Netto

A comparação dos dois relatórios - o rascunho, produzido pelos cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), e o final, publicado ontem, após as discussões com delegados governamentais - mostram um texto menos enfático, fruto de negociações que tomaram a semana.

A desclassificação das informações já era esperada em função das pressões que delegações políticas exerceram sobre as conclusões científicas. Ao longo da semana, delegados dos Estados Unidos e da China - com apoio eventual do Brasil - se confrontaram, medindo forças sobre a responsabilidade pelo aquecimento global e para definir quem deve tomar medidas mais urgentes para evitar um desastre ainda maior.

Nesse cabo-de-guerra, citações foram retiradas do texto. Um exemplo é o que se refere à mitigação no setor de construção. No rascunho, constava que, em 2020, cerca de 30% das emissões de gases-estufa no setor poderiam ser evitadas em todo o mundo - e mais da metade do potencial estaria em países em desenvolvimento. No documento final, o valor não é citado.

Em outro trecho, o rascunho indica que "o potencial de mitigação no setor industrial é dominado pelas indústrias de uso intensivo de energia, das quais mais de 50% estão localizadas em países em desenvolvimento". Novamente, o trecho foi cortado do sumário divulgado.

Outro ponto eliminado dizia que combater o aquecimento global com energias alternativas tende a redistribuir a força política internacional, em referência indireta à possível queda das exportações e baixa do Produto Interno Bruto dos países produtores de petróleo. A supressão foi feita mesmo sem a presença da delegação da Arábia Saudita, uma das que mais interferiram no segundo sumário, sobre o impacto das mudanças climáticas, divulgado em Bruxelas em abril. Os árabes não apareceram em Bangcoc.

EMBATE

"Não temos medo de nenhuma delegação política. O importante é que nenhuma informação essencial está fora do relatório", afirma o presidente do IPCC, Rajendra Pachauri.

[6.4, 6.5][/6.4, 6.5]Uma das poucas referências explícitas às responsabilidades de cada bloco que sobreviveram à semana de debate fala sobre projeções de futuras emissões de CO2: entre dois terços e três quartos da poluição será de responsabilidade de nações emergentes e em industrialização - como China, Índia e Brasil. Isso se medidas de mitigação forem tomadas a partir de hoje e o desenvolvimento sustentável receba incentivos.

A emissão per capita, contudo, continua muito desfavorável aos ricos. Os países desenvolvidos devem apresentar uma emissão média per capita de 9,6 a 15,1 toneladas de CO2 em 2030 por habitante. Os moradores das nações em desenvolvimento responderão, cada um, por 2,8 a 5,1 toneladas de CO2.

DIFERENÇAS

De acordo com a cientista Suzana Kahn Ribeiro, professora do Programa de Engenharia de Transportes da Coppe e uma das autoras do sumário, o documento deixa clara a falta de informações científicas disponíveis sobre a realidade dos países em desenvolvimento. Isso acaba privilegiando os emergentes, uma vez que os documentos do IPCC tendem a se concentrar nas certezas, não nas incertezas.

Há diversas referências à necessidade de transferência tecnológica dos países ricos aos pobres, para que possam implementar medidas necessárias para mitigar as emissões, seja em instalações antigas quanto nas novas. Contudo, esse é um dos pontos mais enfraquecidos dentro da Convenção-Quadro de Mudanças Climáticas. Até hoje, foram feitos poucos esforços nesse sentido e não há previsão de alterações realmente substanciais nesse ponto.

Além d[1.3, 3.2]as alterações textuais, alguns tópicos foram criados no documento final. Um deles ressalta a responsabilidade do cidadão em conter o aquecimento. "Mudanças no estilo de vida e comportamentos padrão podem contribuir para a mitigação das alterações climáticas em todos os setores", escreveram cientistas e delegados.

O resultado da inação foi detalhado nos primeiros sumários do IPCC: intensificação de fenômenos extremos, como inundações e secas, derretimento das calotas polares, perda de território para os oceanos e, sobretudo, risco crescente à vida.

Ricos e pobres devem agir juntos, diz Marina
Para ministra do Meio Ambiente, 'não adianta criar bode expiatório'

Ana Paula Scinocca

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou ontem que o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) revela a "dramaticidade" do impacto ambiental e reforça a necessidade de haver um esforço global para combater as mudanças climáticas e o aquecimento. "Não adianta criar um bode expiatório. Os esforços têm de ser conjuntos entre os países ricos e pobres", disse Marina.

Segundo a ministra, nenhum país ainda "fez seu dever de casa". Mas o Brasil, segundo ela, tem feito grande esforço. Ela citou o fato de o Brasil ter 45% de sua matriz energética limpa, enquanto as nações ricas têm apenas 6% e os países em desenvolvimento, 13%. Marina também mencionou a preocupação do Brasil em enfrentar o desmatamento, além do incentivo aos biocombustíveis.

"O Brasil já começou a fazer seu esforço, tanto é que o desmatamento está caindo. Entre 2005 e 2006 houve queda do desmatamento de 51% na Amazônia e de 75% na mata atlântica", afirmou. Marina salientou ainda o pioneirismo do Brasil em relação aos biocombustíveis. "Não queremos ser a Opep dos biocombustíveis, mas certamente o Brasil poderá colaborar, inclusive em relação à tecnologia", afirmou.

Na avaliação de Marina, o diagnóstico do IPCC não vem tarde e mostra ainda que é preciso fazer um trabalho conjunto visando o desenvolvimento, mas sem que se perca de vista a importância da conservação e da área ambiental. A ministra lembrou ainda que a falta de atenção à questão do ambiente tem reflexo na recessão econômica dos países.

A ministra antecipou ainda que o governo está preparando um plano de enfrentamento da mudança do clima, ainda sem nome definido, e que deverá ser anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos próximos 90 dias. O projeto, segundo ela, é resultado de trabalho interministerial e reforça a importância que o País tem dado ao tema.

Energia nuclear é considerada uma alternativa
Relatório da ONU aponta a energia obtida pela fissão nuclear como uma opção aos combustíveis fósseis

ANDREI NETTO, GIOVANA GIRARDI E REUTERS

A energia nuclear foi considerada, pelo relatório do IPCC, uma alternativa concreta aos combustíveis fósseis que pode ser usada no combate ao aquecimento global. A decisão foi bem recebida em especial pelo governo brasileiro, que pretende retomar até o meio do ano seu programa nuclear, segundo o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende.

A palavra "nuclear" aparece cinco vezes no relatório. São menções rápidas que, no entanto, devem transformar para sempre a relação de cientistas e ambientalistas com a energia obtida pela fissão nuclear.

A classificação de "alternativa" antes era vinculada no imaginário de ecologistas a formas de produção de energia ditas limpas, ou que não geram - ou geram pouca - poluição. A fissão nuclear está longe desse conceito. Não apenas produz rejeitos, mas também os mais perigosos do gênero: são radioativos e altamente cancerígenos, na melhor das hipóteses de contato humano. Mesmo com os riscos de acidentes, como o ocorrido em 26 de abril de 1986 na Usina de Chernobyl, na Ucrânia, a fissão entrou para o rol de meios de contenção das emissões de CO2 e demais gases causadores do aquecimento global.

"É uma questão de bom senso. O que mais existe para a maioria da geração de eletricidade que é carbon-free?", questiona Ian Hore-Lacy, da Associação Nuclear Mundial.

As cinco referências são breves e não incluem juízos de valor. Na primeira delas, o termo "advanced nuclear power" aparece em um quadro no qual os cientistas e delegados governamentais apontam como conter a poluição atmosférica.

Já na mais extensa, a perspectiva de seu crescimento para os próximos 23 anos é abordada: "A energia nuclear, que foi responsável por 16% da energia elétrica produzida em 2005, pode ter 18% do total da produção energética em 2030 se os preços de cotas de carbono forem superiores a US$ 50 por tonelada de CO2 emitido", diz, prosseguindo em tom de alerta: "Mas segurança, proliferação armamentista e desperdício seguem como problemas".

Bert Metz, co-presidente do IPCC, enfatizou, no entanto, que isso não é um endosso à energia nuclear: "Isso é absolutamente uma revisão técnica. Não estamos fazendo recomendações políticas, disse.

A simples possibilidade de menção da fissão nuclear no relatório final causou controvérsia ao longo da semana, em Bangcoc. Na quinta-feira, Hans Verolme, diretor do Programa de Mudanças Climáticas da WWF, ressaltou ao Estado que a ONG seguia não considerando a energia nuclear como "alternativa" e que não acreditava na sua inclusão no documento do IPCC. Ontem, sua postura foi mais conciliadora: "O relatório adota a neutralidade em relação às alternativas ao petróleo como fonte de energia", julga. "Em um documento de 35 páginas, cinco referências sobre energia nuclear não me parece muito importante. E não há um juízo de valor sobre nenhuma das alternativas, determinando se são boas ou más."

Também a ONG Greenpeace havia se manifestado contra a inclusão da fissão no rol de soluções. Na nota divulgada pela organização após o evento de ontem, contudo, não consta nenhuma crítica ou comentário.

AVAL À ANGRA 3

No governo brasileiro a decisão do painel foi recebida com entusiasmo. "A notícia de que o IPCC considera a energia nuclear como verde veio em boa hora. Estamos prestes a anunciar a retomada do programa nuclear brasileiro e a construção de Angra 3", disse o ministro Rezende ao Estado.

"Neste momento precisamos de apoio. O maior obstáculo ao uso desta energia é a preocupação com o ambiente, o problema dos rejeitos nucleares, etc. O fato de agora ela aparecer como alternativa é muito importante. A ONU dá um respaldo pelo menos do ponto de vista das mudanças climáticas. Acredito que o relatório vai fazer com que a sociedade compreenda a importância desta energia para o País", afirmou.

Na quinta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já havia dado dicas nesse sentido. Ele afirmou que o País pode entrar na "era da energia nuclear" caso persistam os obstáculos às construções de usinas hidrelétricas. A declaração de Rezende, no entanto, mostra que esses planos são bem mais concretos. "Temos reserva de minério de urânio suficiente para operar Angra 1, 2 e 3 por 500 anos. Não podemos deixar isso de lado. Em breve vamos anunciar a retomada."

Painel recomenda uso de biocombustíveis
Especialistas não citam exemplos, deixando etanol fora do texto

Cristina Amorim

A utilização dos biocombustíveis como alternativa aos combustíveis fósseis, especialmente aos derivados do petróleo, aparece na versão final do sumário apresentado ontem, em Bangcoc, pelo IPCC. Segundo o grupo, "os biocombustíveis podem ter um importante papel no controle das emissões de gases-estufa no setor de transportes". Nesse campo, eles podem substituir a gasolina, o diesel e seus aditivos.

O crescimento global projetado nesse setor é de 3% do total de energia necessária para transportes em 2030. É um cenário conservador, uma vez que o preço do petróleo tem impacto direto na busca por alternativas. O crescimento pode ser de 5% a 10%, de acordo com o valor do mercado do óleo, mais a eficiência crescente dos veículos e o sucesso de tecnologias que utilizem a celulose como matéria-prima.

Não consta no documento nenhuma informação que classificaria a que tipo de biocombustível o grupo se refere. As referências são feitas em relação à segunda geração, baseada em celulose. O etanol obtido a partir da cana-de-açúcar, campo em que o Brasil é líder mundial, não é citado. Tampouco há dados sobre a produção baseada em milho, liderada pelos Estados Unidos.

Num parágrafo que se refere à agricultura, há um pedido de atenção para que a segurança alimentar seja mantida, sem que os campos produtivos sejam tomados pelas matérias-primas para a produção de biocombustíveis, em detrimento ao fornecimento de alimentos.

É o que tem sido chamado de "síndrome de Fidel Castro", que recentemente criticou a intenção declarada dos governos brasileiro e americano de investirem no aumento de produção da cana. Fidel afirma que os alimentos vão encarecer.

É o que aconteceu no caso do milho. Sua valorização como fonte para alimentar veículos fez aumentar o preço das tortillas, base da alimentação dos mexicanos. A questão não é detalhada no novo sumário dos cientistas.

'Ninguém quer sacrificar suas taxas de crescimento'
Engenheiro fala sobre os conflitos travados durante a redação do relatório do IPCC sobre mitigação do aquecimento global

Ogunlade Davidson: Coordenador do Grupo de Trabalho 3 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC)

Andrei Netto

Pode-se dizer que o terceiro sumário do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), "Mitigação das Alterações Climáticas", divulgado ontem na sede da ONU em Bangcoc, na Tailândia, mitigou os efeitos da disputa entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Epicentro de um debate acalorado entre Estados Unidos e ricos, de um lado, e China e emergentes, de outro, o relatório confirmou, além de informações científicas, uma evidência política: delegados governamentais estão se empenhando para ver interesses de seus mandatários traduzidos nos documentos.

Ogunlade Davidson foi um dos encarregados de mediar esse conflito de interesses, na posição de coordenador do Grupo de Trabalho 3 do IPCC, responsável pela elaboração do documento. Se faltaram palavras fortes ao terceiro, sobram a Davidson. Em entrevista ao Estado após a conferência, o coordenador sentencia: "Políticos pensam nas eleições seguintes".

Esse relatório, como o de Bruxelas, volta a revelar pressões políticas fortes sobre as constatações científicas relacionadas ao aquecimento global. Por que ocorrem?

Esse é um relatório sobre mitigação das alterações climáticas. É um assunto que revela fortes vínculos entre ciência, política e economia. Mitigações do aquecimento global envolvem interesses setoriais. Por isso ocorrem divergências. Estamos falando de decisões políticas sobre fatores econômicos com profunda influência social.

Por que os países desenvolvidos insistiram tanto em tentar provar que os custos da mitigação podem ser maiores?

Não devemos tentar distinguir países ricos de países pobres. Vivemos em um mundo no qual a competição é a regra. E as pessoas não gostam de assistir à perda de sua capacidade de competição. O que está em jogo são técnicas, estratégias e infra-estruturas de desenvolvimento que custam muito. Estamos falando de capacidade de disputa de mercados consumidores, de geração de divisas, empregos, renda. Tudo isso é muito complexo. Outro ponto importante é o fato de ser difícil convencer pessoas a tomarem decisões que envolvem grandes volumes de verbas, públicas ou privadas, quando os resultados serão a longo prazo e apenas para evitar um dano maior, como é o caso do aquecimento global. Políticos pensam nas eleições seguintes. Cabe aos cientistas convencê-los, influenciá-los sobre a importância de tomarmos medidas de longo prazo a partir de agora.

Mas as divergências entre desenvolvidos e emergentes aconteceram. Que delegações interferiram mais nas discussões?

Países ricos perguntam quanto vai custar a estabilização do aquecimento global. Países pobres perguntam como podem alterar suas plataformas de desenvolvimento para se adequar às exigências ambientais. Nesse jogo de interesses, há conflitos. Não se trata de chegar a um número, mas de orientar o crescimento.

A intervenção da China no último relatório foi de fato relevante?

A China tem sido sempre muito ativa no que diz respeito aos relatórios do IPCC. Mas todos os países têm suas demandas e seus interesses. Não podemos esquecer que a China está se tornando uma potência econômica movida pelo maior número de habitantes que a humanidade jamais viu. O crescimento na China é incrível, de 10% há quase dez anos, e envolve uma população superior a um bilhão de pessoas. Os interesses chineses são completamente diferentes dos demais. O mundo nunca teve uma experiência de negociação com as circunstâncias que verificamos no IPCC. O que estamos tentando fazer é indicar caminhos para que o desenvolvimento seja sustentável justo no momento em que essa potência cresce mais e que novas tecnologias de energia surgem. Tudo isso mexe com interesses. Ninguém quer sacrificar suas taxas de crescimento.

E quanto à delegação do Brasil?

A delegação brasileira tem sido sempre muito ativa nos relatórios do IPCC. Os brasileiros propuseram uma contribuição de PIB igual ao crescimento da temperatura, o que vem sendo uma idéia muito popular entre cientistas. A delegação brasileira também é muito ativa em termos de manejo da terra, por exemplo. Evidente que o país tem seus interesses, como quando falamos de desmatamento. O fato é que os estudiosos falam do Brasil quando o tema é meio ambiente. É necessário que os brasileiros também falem do Brasil.

A energia nuclear foi citada como alternativa à produção de eletricidade, para insatisfação de ambientalistas. Por que a comunidade científica decidiu citá-la?

É um dos pontos que geraram mais reflexão no IPCC. O relatório menciona todas as opções de mitigação, mas também fala dos problemas da energia nuclear. Ninguém está aqui para dizer que a energia nuclear é perfeita, é boa ou muito ruim. No entanto, precisamos discuti-la como uma alternativa, por ser muito usada em todo o mundo. É preciso ainda que discutamos seus custos, elevados demais. Muitos países não querem ou não podem investir em energia nuclear em razão dos investimentos que demandam.

Por que os biocombustíveis são tratados de maneira tão discreta nos relatórios do IPCC? O documento, na parte sobre as alternativas aos combustíveis fósseis, se mostra superficial sobre a opção.

O relatório não é superficial, é claro sobre biocombustíveis. Eles são divididos em duas categorias. A primeira delas engloba a biomassa, na qual precisamos avançar. Agora o mundo está evoluindo em outras direções, no sentido do etanol e do biodiesel, que não causam tantos problemas ambientais, mas que têm impactos sociais e econômicos importantes. O etanol é usado em circunstâncias muito específicas. Sabemos que o Brasil é líder na produção de tecnologia para sua exploração comercial, mas é preciso fazer várias outras análises concomitantes. Ninguém pode simplesmente deixar de usar a terra para outros fins que não o de geração de energia. É uma questão a se pensar. O que precisamos hoje é propor análises sobre a viabilidade dessa produção em paralelo a todas as outras, de alimentos. Precisamos também melhorar a qualidade de grãos que dão origem ao combustível, para que rendam mais. Há muitas vantagens em biocombustíveis, mas há muito o que pesquisar ainda.

O documento propõe um patamar de concentração de CO2 na atmosfera entre 445 ppm (partes por milhão) a 710 ppm, uma margem muito larga. Por que não ser mais específico?

Quando falamos em estabilizar os níveis de concentração de CO2 na atmosfera em 2030 precisamos ter como meta algo realista, em torno de 600 ppm (hoje a concentração é de 379 ppm). Da mesma forma, precisamos ter em mente uma informação: esse nível de concentração é perigoso. Para ser franco, considero realmente difícil conseguirmos atingir esse o nível de concentração. É possível. Mas eu não estou certo de que conseguiremos.

Com 600 ppm, o aquecimento global será da ordem de 4oC, quando 2,4oC já poriam em risco 30% das espécies vivas, conforme o segundo relatório do IPCC.

Sim, o impacto vai ser muito severo. Veremos muitos países sofrerem de stress climático, em especial os pobres e em desenvolvimento. Claro, precisamos de mais e mais análises. Mas as informações que temos nos levam a entender que precisamos ficar preocupados com o que está a caminho de acontecer no planeta, em especial em algumas regiões. Dois graus de elevação na temperatura será demais. E pode ser ainda maior.

Bom senso para evitar o apocalipse

Paulo Skaf

O filme Apocalypse Now (EUA/1979), do diretor Francis Ford Coppola, mostra os danos psicológicos num grupo de soldados e o caos do conflito do Vietnã, que abalou esse país e chocou o mundo nas décadas de 60 e 70. Há toda uma analogia com as conseqüências atuais da secular guerra da humanidade contra a natureza, dentre elas as mudanças climáticas, indutoras de um futuro assustador: até 2080, 3,2 bilhões de pessoas deverão enfrentar severa escassez de água e 600 milhões poderão passar fome, devido às secas, degradação e salinização do solo. A cada ano, entre 2 e 7 milhões sofrerão com inundações.

Reverter tal vaticínio do estudo "Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade", divulgado em 6 de abril pelo IPCC, exige ações mais efetivas e menos políticas do que o lobby de alguns países para atenuar o tom dos alertas feitos pelo órgão da ONU. E a viabilidade das soluções ficou patente na terceira parte do relatório, divulgada ontem em Bangcoc: é possível combater as mudanças climáticas, desde que se desencadeie ação política urgente. Deve-se reduzir o uso de combustíveis fósseis e promover as energias renováveis e a maior eficiência na agricultura (tudo o que o Brasil pode oferecer). Isso bastaria para manter o aumento de temperatura abaixo de 2oC, ao custo de até 3% do PIB mundial, até 2030. Estamos falando de US$ 1 trilhão. A cifra parece alta, mas é ínfima se analisada sob a perspectiva do desenvolvimento sustentável.

Mesmo restringindo o debate ao foco econômico-financeiro, qual montante as indústrias terão de investir na adequação de suas plantas à realidade de um mundo 6% mais quente, com escassez de água e matérias-primas? Não será muito maior o custo social do trabalho, dadas a insalubridade e faltas de funcionários doentes? Serão viáveis sistemas públicos de saúde onerados pelo previsível aumento da demanda de pacientes vitimados pelo contra-ataque da natureza? São perguntas incipientes até agora na discussão do tema. As soluções não estão "orçadas", mas, com certeza, custariam significativamente mais do que os 3% do PIB mundial regateados pelo olhar imediatista de algumas nações.

Por outro lado, independentemente de governos, a sociedade deve mobilizar-se contra as mudanças climáticas. É o que vem fazendo a Fiesp: estimulando a produção limpa e a consciência ecológica no processo produtivo. A entidade assessora os sindicatos e empresas no cumprimento dos requisitos ambientais, conciliando-os com os interesses de seus negócios. Organizamos anualmente a Semana do Meio Ambiente, seminário internacional com workshops e entrega do Prêmio Fiesp do Mérito Ambiental. Visando estimular a preservação dos mananciais hídricos, criamos também o Prêmio Fiesp de Conservação e Reúso da Água.

Nosso Departamento de Meio Ambiente tem como base a Agenda da Conformidade Ambiental, que contém propostas e projetos - destinados a elevar a indústria paulista à excelência nesse campo - estruturados nos estágios: conformidade legal (respeito à legislação); conformidade normativa (cumprimento de normas técnicas); ecoeficiência (produção de acordo com requisitos ambientais e identificação de oportunidades); econegócio (inserção em mercados de padrão de consumo ambientalmente responsável).

Mais do que nunca, é preciso saber que empresas ecologicamente corretas agregam valor à sua imagem e desfrutam vantagens comerciais, considerando que o consumidor-cidadão valoriza os princípios éticos. Encaixa-se nesse conceito, por exemplo, o mercado de carbono, previsto no Protocolo de Kyoto, que permite - literalmente - exportar consciência ecológica. A demanda por créditos de emissão em 2012 (quando expira esse acordo multilateral) deverá chegar a US$ 30 bilhões anuais. A participação brasileira é estimada em 10%. A expectativa em 2007 é de que esse mercado alcance US$ 13 bilhões no mundo. A Fiesp incentiva isso.

Quanto à posição do governo brasileiro frente aos relatórios do IPCC, é preciso bom senso, independência e, sobretudo, valorização da soberania que nos outorgam as maiores reserva hídrica e floresta tropical do planeta e o superlativo potencial de energia renovável, fatores estratégicos para conter o aquecimento. Por mais que tal postura possa implicar esforço diplomático exacerbado e desgaste em relações bilaterais, o Brasil precisa ser protagonista da luta contra o flagelo ambiental. Apocalipse, não. Nem agora, nem amanhã. Afinal, há analogias que extrapolam a mera semelhança semântica e fonética.

Paulo Skaf,É presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp)

OESP, 05/05/2007, Especial, p. H1-H4

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