VOLTAR

Com franqueza: reforma agraria para que?

OESP, Economia, p.B2
Autor: KUNTZ, Rolf
08 de Abr de 2004

Com franqueza: reforma agrária para quê? A AGRICULTURA BRASILEIRA MUDOU, MAS NÃO O DEBATE SOBRE A QUESTÃO FUNDIÁRIA
ROLF KUNTZ
Para que serve, afinal, a reforma agrária? Falta essa pergunta no debate político nacional. Nenhum governo brasileiro ousou descartar o assunto desde os anos 60. A reforma foi defendida pelo governo deposto em 1964, incorporada na agenda dos governos militares e mantida entre os compromissos de todos os presidentes civis a partir de 1985. Ficou o compromisso mas o País mudou. Não terá chegado o momento de reexaminar o assunto de forma clara, racional e sem timidez?
A resposta àquela pergunta - para que serve a reforma? - parecia muito mais simples há uns 20 ou 25 anos, quando a agropecuária, no Brasil, era muito menos eficiente e muito menos competitiva. Era muito mais fácil, naquele tempo, apontar a subutilização da terra e vincular a solução do "problema social" a uma política setorial de desenvolvimento.
Tinha sentido falar sobre a redistribuição da propriedade como forma de garantir ocupação a milhares de trabalhadores deslocados pela substituição de lavouras - por exemplo, a troca do café pela soja no Norte do Paraná - e pela implantação de pastagens. Pequenas unidades lavradas por essa mão-de-obra poderiam, além disso, reforçar a oferta de alimentos no mercado interno. A expansão da cana, estimulada pelo programa do álcool, também havia prejudicado, em áreas tradicionais, a produção de alimentos básicos.
Era razoável, enfim, denunciar o uso da terra como reserva de valor, num ambiente de alta inflação e de juros freqüentemente negativos.
Tudo isso mudou tremendamente nos últimos 25 anos. A agropecuária brasileira é hoje uma das mais competitivas do mundo. O custo da alimentação despencou, em termos reais, desde o final dos anos 80. Na última década, todos os centros de pesquisa de preços tiveram de rever a estrutura de seus indicadores duas ou três vezes, para recalcular as ponderações. O peso da alimentação foi reduzido seguidamente.
Até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de muito mal assessorado, já deve saber que não há nenhuma relação entre o problema da fome, no Brasil, e a oferta de alimentos. Só uma ignorância olímpica levaria alguém a afirmar, em 2004, que é preciso aumentar a produção de comida para matar a fome dos brasileiros mais pobres. A subnutrição é um problema de pobreza e desemprego, não de escassez de comida.
Mas não servirá a reforma agrária para que alguns milhares de pessoas possam produzir para o próprio consumo? Ou para ter uma produção que seja vendida e garanta o dinheiro necessário à sobrevivência?
Talvez seja uma solução para algumas famílias, mas não se alcançará a uma resposta satisfatória sem que o problema seja redefinido. Talvez a pergunta correta deva referir-se não à distribuição da terra, mas à criação de condições decentes de sobrevivência para alguns milhões de pessoas.
A concentração da posse da terra é uma característica histórica do Brasil.
Não faz muita diferença, nesta altura, imaginar como a história nacional poderia ter sido diferente, se fosse menor, desde a fase colonial, a concentração da propriedade fundiária. Em países com distribuição muito mais igualitária a concentração aumentou sensivelmente nas últimas duas ou três décadas. Isso ocorreu nos Estados Unidos e na França, para citar apenas um par de exemplos.
Essa transformação está associada a fatores econômicos e tecnológicos. A população ocupada na agropecuária tem diminuído, na Europa e na América do Norte, apesar dos enormes subsídios concedidos aos fazendeiros. No Brasil, a demanda de força de trabalho agrícola diminuiu 21,5% entre 1990 e 2000, segundo estimativa do Sensor Rural Seade, citada no ensaio O Emprego Rural nos anos 90, dos pesquisadores Walter Belik, Otavio Valentim Balsadi, Maria Rosa Borin, Clayon Campanhola, Mauro Eduardo del Grossi e José Graziano da Silva.
Essa redução do emprego não decorreu apenas da mecanização, mas também do uso crescente de insumos que elevam a produtividade do solo. Os autores não se aprofundam neste ponto, mas nesse período a produção de grãos e oleaginosas foi multiplicada por dois, enquanto pouco variou a área cultiva.
Eles também não acentuaram um detalhe técnico relevante: o uso de insumos que elevam a produtividade do solo desloca muito menos mão-de-obra do que a mera mecanização.
Os autores do trabalho têm o bom senso de não propor a adoção de tecnologias menos modernas. É preciso, portanto, buscar de outra forma a solução para o desemprego. Eles sugerem várias linhas de ação, como o desenvolvimento de atividades rurais não agrícolas e o apoio a algumas produções, como olericultura e fruticultura, mais propícias à utilização de mão-de-obra.
Esse artigo, incluído no recém-publicado volume sobre Trabalho, Mercado e Sociedade, organizado por Marcelo Weishaupt e Wilnês Henrique, contém elementos para o início de um debate mais racional e menos prejudicado pela barulho do MST.

OESP, 08/04/2004, p. B2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.