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Com águas mais limpas, Lagoa vira berçário de animais

O Globo, Rio, p. 18
09 de Jul de 2017

Com águas mais limpas, Lagoa vira berçário de animais
Aves, lagartos e peixe de espécie ameaçada ressurgem após controle da poluição, mas fragilidade do ecossistema ainda preocupa especialistas
O local sempre foi um rico habitat. Mas também vem sofrendo com a presença de animais invasores, que podem desequilibrar a cadeia alimentar do lugar

CARINA BACELAR
carina.gomes@oglobo.com.br

Entre o vai e vem de carros, o som de buzinas e à sombra de prédios altos, o Rio tem uma ilha de biodiversidade - na verdade, uma lagoa -, que poucos cariocas prestam atenção na correria do dia a dia. No coração da Zona Sul, a Rodrigo de Freitas, que teve uma melhora na qualidade de suas águas nos últimos anos, vive um renascimento de seu ecossistema, com o ressurgimento de algumas espécies que há muito não eram vistas por ali. Mesmo antes da despoluição, garantem especialistas, o local sempre foi um rico habitat. Mas que também vem sofrendo, por outro lado, com a presença de animais invasores, que podem desequilibrar a cadeia alimentar local.
Para o biólogo Mário Moscatelli, que desde a década de 1980 levanta a bandeira da recuperação da Lagoa, o símbolo desse renascimento da biodiversidade é o frango d'água, uma ave preta, com crista vermelha, com pouca capacidade de voo, mas capaz de flutuar como um pato. Vive em pântanos e lagos, em ambiente de manguezal, que não existia na Lagoa antes de 1989, quando o próprio Moscatelli começou a plantar a vegetação de mangue nas margens do espelho d'água.
- Em 1989, eu nunca tinha visto um frango d'água. Essa ave apareceu, não sei como, em 1999 e hoje ela é o símbolo desse incremento da biodiversidade. A Lagoa virou um verdadeiro poleiro de frango d'água. A partir do momento que a gente consegue diversificar a cobertura vegetal com os manguezais e melhorar as condições da água, a Lagoa volta a assumir o papel de berçário que tem por natureza - diz Moscatelli.
Além do frango d'água, começaram a ser vistas pela Lagoa, nos últimos anos, outras aves, como o savacu, de pernas compridas e bico preto. Ela se alimenta de pequenos caranguejos de mangue. Já a marreca toicinho, que tem a base do bico vermelha e a cabeça metade branca e metade marrom, também tem passeado pela Lagoa com mais frequência.
LAGARTO É UM DOS NOVOS MORADORES
Moscatelli destaca que os animais chegam à Lagoa se deslocando das áreas do Maciço da Tijuca, pelas praias da região (no caso dos peixes, principalmente) ou com a "mãozinha de alguém". O frango d'água, por exemplo, tem baixíssima capacidade de voo, e reza a lenda que chegou ao local graças a um morador da Lagoa, que levou um casal para a região. Já o caranguejo guaiamum, que Moscatelli jura já ter visto cruzando as ciclovias, foi levado para Lagoa pelo próprio biólogo no fim da década de 1980, quando começou o plantio da vegetação de mangue. As capivaras, que viraram outro símbolo da fase mais recente (e menos suja) da Lagoa, também estão se reproduzindo.
No grupo dos répteis, um novo morador é o lagarto teiú. Segundo o biólogo e fundador do Instituto Jacaré, Ricardo Freitas Filho, trata-se de um dos maiores lagartos da América Latina, que pode chegar a 1,5 metro. Mas não espere vê-lo pela Lagoa no fim de semana: no período do inverno, ainda que de temperaturas cariocas, o bicho costuma hibernar. Por causa do seu porte, o lagarto, que é um predador, precisa de calor para metabolizar o que come. Na avaliação de Ricardo, o lagarto, que vive na Mata Atlântica, pode ter chegado à Lagoa atraído pelo plantio nas áreas de margem, e devido à proximidade com locais como o Parque da Catacumba, o Jardim Botânico e o Corcovado:
- Como o bairro vem ganhando uma oferta de arborização, tem uma passagem mais facilitada da fauna. Uma vez que o ambiente está revitalizado, tem recursos para oferecer. O teiú é um animal bem sensível a esse tipo de interação com o homem - aponta Ricardo, ressaltando que o Lagarto Verde (Ameiva Ameiva), que já era comum na Lagoa, também vem aparecendo mais.
Nas águas, a Lagoa também tem novos moradores. De acordo com o biólogo Bruno Meurer, pesquisador da Universidade Santa Úrsula, o robalo, que é uma espécie ameaçada de extinção, tem nadado por lá, trazido pelo fio d'água do canal que liga o ecossistema à Praia do Leblon. Os pescadores da região, entretanto, vêm enfrentando problemas por causa de outro habitante "recente" da Lagoa: o mexilhão invasor.
Não há versão oficial sobre a chegada do mexilhão - uma das teses é que tenha vindo grudado à balsa da árvore de Natal que costumava ser montada no espelho d'água. Nos últimos anos, entretanto, o animal se multiplicou, inclusive por causa das boias e equipamentos que foram colocados ali para os Jogos Olímpicos e acabaram servindo de substrato. Como se alimenta de larvas de peixe, eles deixam a água da Lagoa mais clara, o que pode parecer bom, mas é uma ameaça ao ecossistema do local, porque eles acabam roubando alimento de outras espécies.
Para os pescadores, a água mais clara do que o normal é sinônimo de prejuízo: os peixes acabam enxergando a rede e fogem. As manjubinhas, pequenos peixinhos que são vistos nas praias em cardumes, também têm nadado na Rodrigo de Freitas de uns tempos pra cá. Menor que sardinhas, não têm valor comercial e sequer ficam presas nas redes dos pescadores.
- A qualidade da água melhorou, tanto é que não estamos tendo mortandade, mas a pesca não é a mesma de antigamente. Teríamos que ter uma rede miúda para pegar a manjubinha, mas é proibido na Lagoa. Só se pode usar rede que pega peixes de meio quilo para cima - afirma Orlando Marins Filho, de 60 anos, que é da terceira geração de pescadores de sua família. - A claridade da água tem atrapalhado. Você até consegue que o peixe entre quando a rede está branquinha, mas quando ela suja o peixe não entra mais.
Ao contrário dos animais que vêm povoado a Lagoa, os pescadores têm sumido. São um grupo cada vez menor porque, segundo Orlando, os mais jovens não querem seguir o ofício. Os mais antigos "vão morrendo e não tem ninguém para entrar no lugar". Se em 1980 havia cerca de 32 pescadores, hoje são apenas 22.
- Tende a acabar, como em várias partes do Brasil - lamenta Orlando.
Apesar da melhora na sua qualidade, a Lagoa não se livrou das ameaças. Desde o fim do ano passado, o monitoramento das águas, que era feito por uma empresa contratada pela prefeitura, parou de ser realizado. O município alega que o contrato acabou e que um novo edital de licitação ainda está em processo de conclusão. Em outro ponto da cidade, por causa da crise no estado, o Complexo Lagunar da Barra e de Jacarepaguá também sofre. As obras de recuperação da região tiveram o contrato suspenso em setembro do ano passado.
Enquanto o monitoramento da Rodrigo de Freitas não volta, Meurer já observa que a água está sendo menos renovada do que o esperado pelo canal que liga a Lagoa ao mar. A baixa salinidade favorece a reprodução do mexilhão invasor. Há indícios ainda de que a concentração de coliformes fecais voltou a subir além do aceitável:
- O que nós percebemos no ano passado é que o limite de coliformes estava sendo ultrapassado, especialmente ali na saída de uma tubulação do Jockey Club. A Lagoa sempre vai ser um berçário e uma área de proteção e de alimentação para as espécies. Por isso, a qualidade da água tem que estar boa para que não tenhamos uma mortandade de peixes alta - afirma.
RISCO DE CONTRAIR DOENÇAS
De acordo com a última medição registrada em boletim pela prefeitura, a Lagoa estava em estágio de "equilíbrio" em relação ao nível de oxigênio dissolvido na água (que tinha índices maiores ou iguais a 4 miligramas por litro). Também foi considerada "própria em termos de coliformes fecais, ao contato secundário". Isso significa que é possível praticar esportes aquáticos ali, mas não tomar banho.
Segundo especialistas, a liberação do mergulho na Lagoa é quase impossível. Ainda hoje, nas margens, há risco de um banhista desavisado contrair leptospirose ou hepatite, observa Moscatelli. No meio, a água é mais limpa e causaria menos problemas à saúde. O biólogo destaca que a Lagoa nunca será totalmente limpa:
- Há 200 anos, a barra que a separava do mar era instável. Quando tinha ressaca ou chuva forte, ela se rompia e os peixes, que não tinham como lidar com a salinidade, morriam. Isso sem um pingo de esgoto.

O Globo, 09/07/2017, Rio, p. 18

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