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Coletas científicas x biopirataria

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Liana John
18 de Jul de 2002

Falhas de legislação e comportamentos inadequados - de cientistas e fiscais - ainda geram conflitos nas coletas científicas de fauna e flora brasileiras.

Como em todos os procedimentos que pedem bom senso, no Brasil, a coleta científica de espécimes da fauna e flora nativas é um campo minado, que volta e meia explode em conflitos. O caso do primatólogo holandês, Marc von Roosmalen, autuado nesta semana pelo Ibama, no Amazonas, por estar de posse de 4 filhotes de macaco, sem licença de pesquisa ou transporte, é mais uma dessas explosões, geradas por falhas na legislação, excesso de burocracia, falta de informação, confusões em relação às atribuições dos órgãos fiscalizadores e comportamento inadequado dos cientistas e dos fiscais.

De acordo com a Lei de Fauna, de 1967, "poderá ser concedida a cientistas, pertencentes a instituições científicas, oficiais ou oficializadas, ou por estas indicadas, licença especial para a coleta de material destinado a fins científicos, em qualquer época". A lei é regulamentada pela portaria 332 do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que estabelece regras para a obtenção e renovação das licenças - de pesquisa e/ou transporte de espécimes - expedidas pelo órgão.

Os pesquisadores estrangeiros precisam de uma autorização do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, se vão lidar com espécies ameaçadas de extinção, de outra autorização do Ibama. Na Lei de Crimes Ambientais, de 1998, estão previstas punições para quem "matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida", com agravante para o caso de abuso da licença.

Há, ainda, a Medida Provisória de Biossegurança, que atribui à Comissão Técnica Nacional de Biosegurança (CTNBio) o controle de "atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM (organismos geneticamente modificados) e derivados". Isto é, se a coleta de espécies nativas for entendida como atividade relacionada à produção de OGM, em tese, a CTNBio também teria que dar sua licença.

A portaria 332 estabelece um prazo de 60 dias antes da coleta para solicitação da licença e diz que, se o Ibama não responder em 45 dias, a licença está automaticamente concedida, em caráter precário. Na realidade, apesar dos prazos legais, não são poucos os casos, sobretudo na Amazônia, em que a demora na concessão de licenças acaba inviabilizando ou atrasando significativamente as pesquisas, às vezes por meses ou mais de ano, mesmo quando existem recursos financeiros e pesquisadores já mobilizados.

Isso, sem contar, que a Lei de Fauna também diz que "aos cientistas das instituições nacionais que tenham por lei a atribuição de coletar material zoológico para fins científicos, serão concedidas licenças permanentes", dando margem para a prática, comum no país, de coletas realizadas sem licença específica, liberadas apenas com a apresentação de documento profissional, provando vínculo com instituições de pesquisa, nos casos em que há flagrante da fiscalização.

Esta prática favorece, de um lado, a ação de traficantes e biopiratas, inclusive estrangeiros, que já foram liberados pela Justiça brasileira após mostrar documentos fáceis de falsificar, como o traficante alemão de aranhas caranguejeiras, Marc Baungarten, preso duas vezes no Brasil.

Por outro lado, a prática de liberar materiais coletados com a apresentação de crachás também facilita a vida de pesquisadores sérios, muitas vezes defrontados com situações, que pedem providências imediatas e não podem entrar no ritmo da burocracia. É o caso de pesquisadores em trabalho de campo com o objetivo de avaliar impactos ambientais de uma rodovia - para tomar um exemplo real - que de repente se vêem diante de espécies potencialmente novas para a Ciência ou insuficientemente estudadas e as coletam. Ou de pesquisadores, que se deparam com animais abatidos por terceiros, cujas carcaças ainda podem ser usadas para estudos. Ou, como alega em sua defesa o primatólogo Roosmalen, quando encontram filhotes em cativeiro, porque a mãe foi capturada para consumo de subsistência, em comunidades tradicionais ou indígenas.

O problema é que há, ainda outras faces da mesma questão, com abusos tanto dos pesquisadores como dos fiscais. Porque existem também os pesquisadores exagerados, que se colocam acima da lei e saem coletando tudo o que vêem pela frente, montando coleções imensas de orquídeas, bromélias, borboletas, besouros e outros animais e plantas, que fazem falta no ambiente natural. Ou saem matando e prendendo animais já catalogados e extremamente conhecidos, cuja população selvagem é rara ou está ameaçada. Basta lembrar o caso ocorrido com um pesquisador de São Paulo, que matou uma harpia (maior ave de rapina brasileira) para empalhar, sendo que a ave está descrita há muitos anos e é bastante rara na natureza. Ou seja, sem necessidade alguma.

E existem igualmente as situações incongruentes da fiscalização, como o caso em que o pesquisador Robin Best, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), foi autuado por estar de posse irregular de peixes-boi amazônicos, sendo que o único fiel depositário desta espécie, registrado no próprio órgão de fiscalização, era ele mesmo. Ou seja, pela lei, Best deveria ter os animais confiscados para serem novamente entregues à sua própria guarda.

Em resumo, a multiplicidade de situações em que a coleta deve ser permitida ou proibida a cientistas ainda é muito maior do que alcançam as leis, que regulamentam a emissão de licenças. Por isso é necessário ter bom senso no julgamento de cada caso. Mas bom senso, no Brasil, ainda é um artigo raro ou, talvez, até ameaçado de extinção.

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