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Coiab solicita intervenção do Ministério Público Federal para garantir proteção a urnas funerárias indígenas descobertas

Coiab-Manaus-AM
25 de Set de 2003

no centro de Manaus

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), solicitou nesta quarta-feira, 24 de setembro, a intervenção do Ministério Público, se possível através de Audiência Pública, para que sejam atendidas as reivindicações do movimento indígena a respeito das urnas funerárias indígenas, com datação aproximada de 1.300 anos, localizadas em maio deste ano, por ocasião dos trabalhos de reforma e restauro iniciados na Praça Dom Pedro II, no Centro Histórico de Manaus.

O Coordenador geral da Coiab, Jecinaldo Saterê Mawé, manifestou ao Dr. Eduardo Barragan, da Procuradoria da República no Amazonas, o sentimento de indignação que tomou conta das lideranças indígenas, que integram a base política da organização, ao serem informados sobre a tentativa de remoção das urnas, por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para o Museu Amazônico, desconsiderando as propostas encaminhadas à Superintendente Regional deste órgão, ao prefeito de Manaus e ao Diretor do Museu Amazônico. Essa decisão estaria desrespeitando acordo verbal, decorrente de uma reunião realizada na sede da Coiab, que estabelecia a realização de uma outra reunião para discutir a minuta de um Termo de Compromisso, no qual constaria o repasse do achado arqueológico, por parte do órgão fiscalizador, ao controle do movimento indígena, quando forem criadas condições de infra-estrutura, técnicas e científicas para abrigá-lo, em parceria com os órgãos públicos competentes.

No entanto, o encaminhamento adotado pela Superintendente do Iphan, foi informar a Coiab, através de ofício circular de no 008/2003, sobre as competências deste órgão e a decisão de "elaborar a Minuta do Termo de Guarda Provisório de Bens Arqueológicos e materiais afins ao Museu Amazônico, por entender que este é o único local no Amazonas apropriado para tal fim", ressaltando que "o patrimônio arqueológico é bem da União e que é de interesse nacional que seja devidamente guardado...".

Mesmo com o esclarecimento de que o Iphan partilha o sonho da construção de um Museu Indígena e a afirmação de que, com "espírito democrático", mantém o seu compromisso de proteger o patrimônio arqueológico, a Coiab se considerou desrespeitada com o procedimento adotado por este órgão e as demais instituições, que continuaram se reunindo, sem querer ouvir mais os representantes do movimento indígena organizado, desconsiderando o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição Federal, Artigo 231, e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que no seu Artigo 7o, Parágrafo 1, estabelece:

"Os povos indígenas e tribais deverão ter o direito de decidir sobre suas próprias prioridades no que se refere ao processo de desenvolvimento na medida em que afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual...Além disso, deverão participar na formulação, implementação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de os afetar diretamente".

Baseada nestes fatos, a Coiab solicitou do Procurador Eduardo Barragan, a realização de uma Audiência Pública, que permita ouvir as instituições envolvidas, especialistas, representantes dos povos e organizações indígenas e, inclusive, de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para Educação e a Cultura (Unesco).

O Dr. Barragan reconheceu como oportuna a solicitação da Coiab e que ela vinha ao encontro da preocupação do Ministério Público em garantir o respeito a todos os elementos, as pessoas e instituições envolvidas no processo de proteção do achado arquelógico e na discussão sobre a destinação da área, ocupada atualmente pela Praça Dom Pedro II. "Nada pode ser decidido precipitadamente, sem que seja ouvido todo mundo", afirmou o procurador.

Nesse sentido, segundo o Dr. Barragan, nos primeiros dias do mês de outubro deverá acontecer uma reunião entre as diferentes instituições, incluindo o movimento indígena, e o Ministério Público, visando a busca da melhor solução para a proteção daquele patrimônio cultural. Enquanto isso, nenhuma ação está autorizada. Se nada disso não for possível, poderá ser feito um ajustamento de conduta em Audiência Pública.

Se a audiência acontecer, o Ministério Público entende que deverão também ser ouvidos especialistas de instituições de outras regiões do país e representantes de órgãos governamentais envolvidos com a proteção do patrimônio e os direitos dos povos indígenas, como a Fundação Nacional do Índios (Funai) e as 6ª. e 4ª. Câmaras da Procuradoria Geral da República. "Este pode ser um marco de mudanças na forma de trabalhar com o patrimônio cultural", explica o Dr. Eduardo Barragan.

As propostas da Coiab

O envolvimento do movimento indígena, articulado pela Coiab, na discussão sobre o destino das Urnas indígenas, começou quando pajés dos povos Apurinã, Tukano e Dessano, reunidos em Manaus, para se informar sobre as escavações e a possível exumação das urnas, enviaram, em 26 de agosto, carta à Coordenadora Regional do Iphan, Maria Bernardete de Andrade, manifestando-se contra a remoção dos objetos, em "respeito aos espíritos destes nossos antepassados", e para evitar "ser cobrados... , tornando cada um de nós sem força para guiar o nosso povo".

Diante as evidências de se tratar de um cemitério indígena, prova material da existência milenar de povo indígena na região, provavelmente o povo Jurupixuna, e ciente de sua responsabilidade em garantir a promoção dos direitos dos povos indígenas, a Coiab decidiu se manifestar sobre o acontecimento, através de correspondência enviada ao Prefeito de Manaus, Sr. Alfredo Nascimento; à Superintendente Regional do Iphan, Maria Bernardete Mafra de Andrade; e ao Diretor do Museu Amazônico, Professor Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro. A carta reúne as propostas que a Coiab apresentou na reunião realizada na sua sede, no dia 02 de setembro, com representantes destes órgãos, além da Empresa Municipal de Turismo, a Manaustur, e de técnicos responsáveis pelas escavações.

No documento, a Coiab defende "a necessidade de se proteger os objetos achados, como memória e parte da história dos nossos povos e da Amazônia", e exige:

"1 - Que as obras em execução se direcionem imediatamente para a construção de infra-estrutura adequada que proteja a Urna já escavada de quaisquer riscos de deterioração, vandalismo e furto, garantindo por parte da autoridade competente vigilância permanente do local;

"2 - Se houver desacordo em construir essa infra-estrutura no local que garanta a proteção desse patrimônio dos nossos povos, a Coiab é contrária a que ele seja transportado para outro local que não seja a sede da nossa organização, decisão apoiada pelos pajés, onde as autoridades e instituições responsáveis da proteção do patrimônio nacional deverão criar condições climáticas e de proteção da Urna escavada.

"3 - Que a prefeitura paralise de imediato as obras de revitalização para garantir a preservação in loco do conjunto dos achados, até as entidades envolvidas e o movimento indígena organizado definirem com exatidão e critérios técnicos e científicos a forma que esse patrimônio deverá ser preservado para o futuro;

"4 - A Coiab entende que as evidências falam por si, que o local em que se localiza a praça Dom Pedro II é Terra Indígena. Portanto, solicita dos órgãos competentes que esta área seja declarada como tal, para ser devidamente protegida, enquanto terra da União, conforme estabelece a Constituição em vigor e o procedimento de demarcação das terras indígenas;

"5 - O movimento indígena representado pela Coiab recomenda que se promovam todos os trâmites necessários para que o espaço ocupado pela área que circunda a Praça Dom Pedro II seja tombado de imediato pelo Iphan como patrimônio histórico etnográfico indígena, para sua devida proteção de quaisquer outros empreendimentos de escavação e seu posterior reconhecimento como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

"6 - Se houver acordo em deixar no local as Urnas achadas, conforme a primeira carta dos pajés, por se tratar de um espaço sagrado, a Coiab propõe que seja projetado e construído no próprio local um Museu Indígena, onde possam ser reunidos todos os objetos guardados em outros espaços públicos ou particulares, e aqueles que sejam achados em outros locais e obras de revitalização da cidade de Manaus."

A Carta conclui: "Esperamos que no processo de decisão sobre o futuro do espaço arqueológico em questão sejam levados em conta o ponto de vista aqui manifesto por nós, apoiado pelas nossas organizações e lideranças de base."

Alguns dos representantes dos órgãos presentes à reunião na sede da Coiab, reagiram em tom agressivo, dizendo que não esperavam um posicionamento desta natureza, como se esperassem que o movimento indígena apenas dissesse sim aos encaminhamentos por eles previamente determinados. Os líderes da Coiab lamentaram a reação preconceituosa e sustentaram que ninguém deveria se surpreender mais, pois o movimento indígena de hoje tem avançado muito na compreensão, na formulação e defesa de seus direitos, e como tal busca ser respeitado e tratado em condições de igualdade, em ruptura com práticas coloniais e autoritárias, que tradicionalmente ignoravam o ponto de vista dos primeiros habitantes destas terras. Mas por outra parte, as lideranças deixaram claro que o Documento não seria uma proposta fechada, e sim um ponto de partida, para a uma discussão transparente, de parceria, e respeitosa dos anseios indígenas.

A pesar da proposta de dar continuação ao diálogo, as instituições públicas em questão, como já foi dito, continuaram reunindo-se, desconsiderando o movimento indígena, cuja participação não seria tão justificável quanto a dos "cidadãos amazonenses".

Para o Coordenador Geral da Coiab, Jecinaldo Saterê Mawé, este é o momento político oportuno para se pensar não só no destino das urnas indígenas, sob a responsabilidade de arqueólogos reconhecidos e não só de técnicos, mas também no destino da própria praça onde foram localizadas, convertendo-a, por exemplo, num espaço que abrigue um Museu ou um Memorial Indígena, que preserve o patrimônio material e a memória histórica e espiritual do povo que aqui habitava e dos indígenas que sobreviveram à invasão européia. Esta é, por outra parte, segundo Jecinaldo, a oportunidade para que as autoridades competentes e o governo do Estado dêem uma demonstração de reconhecimento, respeito e valorização da diversidade sociocultural que configura até hoje o Amazonas. "Tal decisão poderá significar um gesto simbólico e histórico, que sem dúvida alguma constituirá um marco de mudanças no relacionamento que o Estado e a sociedade brasileira sempre mantiveram com os povos indígenas. Os povos indígenas, a sociedade científica, política e civil, nacional e internacional, atualizadas na compreensão dos direitos indígenas e nas leis que os amparam, haverão de reconhecer e admirar essa determinação", conclui o coordenador da Coiab.

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