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Cocar de plástico

FSP, Mais, p. 5
Autor: LEITE, Marcelo
05 de Nov de 2006

Cocar de plástico

Marcelo Leite

Será lançada depois de amanhã em Brasília uma obra que deveria figurar na biblioteca de todo brasileiro que não se envergonhe de sê-lo: "Povos Indígenas no Brasil 2001/2005", editada pelo Instituto Socioambiental (ISA). O décimo volume da série iniciada em 1988 traça uma espécie de radiografia caleidoscópica de 225 povos -nove a mais que na edição anterior (1996/2000).
Cinco séculos depois, ainda há quem queira virar índio ou deixar de virar branco? Por que o IBGE registrou aumento de 294 mil para 734 mil no número de indígenas entre 1991 e 2000? Como entender que estejam identificadas, demarcadas ou homologadas 580 terras indígenas, abarcando quase 13% do território nacional? Por fim, como alguém ainda se dá ao trabalho de editar 866 páginas sobre gente que fala 180 línguas separadas?
Há algo de quixotesco no trabalho do ISA -ainda bem. Sem ele, seria complicado achar uma fonte capaz de responder rápido: quem fez mais pelas terras indígenas, FHC ou Lula? FHC, que declarou 273,8 mil km2 no primeiro mandato e 65,16 mil km2 no segundo (média de 169,48 mil km2), contra 87,49 mil km2 de Lula -que terá de correr, se almeja ultrapassar sua Nêmesis também nesse quesito.
É urgente parar e pensar no fato paradoxal destacado por Beto e Fany Ricardo na introdução: os indígenas estão proibidos por portaria da Funai de confeccionar adereços com partes de animais silvestres, embora o Itamaraty exiba sua arte plumária como símbolo autêntico da identidade nacional. (Não é de espantar, assim, que um caiapó substitua as penas de arara, papagaio e mutum por, hum, canudinhos de plástico.)
Identidade? Autenticidade? Nacionalidade? Aqueles que não alimentarem o receio de moer idéias feitas até o osso podem também recorrer a "Povos Indígenas".
Entre as páginas 41 e 49, encontrarão um triturador no depoimento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que se dispôs a "responder" (as aspas são dele) a pergunta: Quem é índio? Sua "conclusão": "Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é".
Começa amanhã no Quênia a 12ª Conferência das Partes da Convenção sobre Mudança Climática da ONU. A delegação brasileira vai chefiada por Marina Silva. A ministra do Meio Ambiente ostentará a estimativa de nova redução na taxa de desflorestamento e tentará levar adiante a proposta de compensação financeira por reduções voluntárias de desmate (responsável por três quartos das emissões nacionais de gases-estufa).
Proposta há anos por alguns pesquisadores e ambientalistas, a idéia sempre enfrentou bombardeio do Itamaraty e do Ministério da Ciência e Tecnologia. Supostamente, comprometeria a soberania sobre a região amazônica (pois implica monitoramento internacional). Nas últimas semanas, ganhou apoios de peso, como os do Banco Mundial e da "Revisão Stern", ampla revisão sobre economia e mudança climática encomendada pela governo britânico.
Se não se perfilar mais decidida e unificadamente por trás da proposta de Marina, o governo brasileiro corre o risco de ver formatada e faturada por outros uma fonte de recursos em que é o maior interessado do planeta. Além de perder, pela enésima vez, a chance de liderar alguma coisa, efetivamente, pela primeira vez na história deste país.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

FSP, 05/11/2006, Mais, p. 5

MAIS! (5.NOV, PÁG. 5) Estava errada a informação publicada no texto "Cocar de plástico", de que uma portaria da Funai proíbe indígenas de confeccionar adereços com partes de animais silvestres. Há uma proibição genérica de comercialização na Lei de Crimes Ambientais (no 9.605/1998), que motivou um memorando interno (no 099/2004) da presidência da Funai proibindo a venda desses artefatos nas Lojas Artíndia mantidas pela fundação.

FSP, 08/11/2006, Erramos, p. A3

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