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Coca vs. guaraná

FSP, Mais, p. 9
Autor: LEITE, Marcelo
12 de Nov de 2006

Coca vs. guaraná

Marcelo Leite

A matriz energética brasileira é incensada no mundo todo por obter mais de 80% da eletricidade com o barramento de rios, fonte renovável e dada como "limpa" (contra termelétricas que queimam combustíveis fósseis, agravando o efeito estufa, ou nucleares, que empilham lixo atômico). A unanimidade ignora, porém, uma controvérsia sobre a provável contribuição de hidrelétricas para o aquecimento global.
Entre leitores do periódico especializado "Climatic Change", a polêmica ganhou a marca de uma disputa entre duas variedades de refrigerante, uma americana, outra brasileira. A caracterização tem algo de ideológico e obscurantista. No caso, as idéias opõem cientistas respeitados no Brasil, Philip Fearnside e Luiz Pinguelli Rosa.
A contenda ganhou agora mais divulgação com o documento da Rede Internacional de Rios (IRN) intitulado "Fizzy Science" (www.irn.org/ pdf/greenhouse/FizzyScience 2006.pdf), ou "Ciência Efervescente". A ONG, que no Brasil combate hidrelétricas na Amazônia (como Belo Monte, no Xingu), se alinha com Fearnside, um dos primeiros críticos de barragens na floresta.
O busílis não está no gás carbônico (CO2) das borbulhas refrescantes mas no metano (CH4) produzido por represas, que também é um gás-estufa (contribui para reter calor na atmosfera terrestre, aquecendo-a). A discordância se dá quanto à magnitude da emissão de metano pela decomposição de matéria orgânica submergida nos reservatórios. Seria ela comparável ou até mesmo maior que as descargas de CO2 das termelétricas a carvão, óleo ou gás natural?
Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), norte-americano radicado há três décadas no Brasil, acha que sim. Uma hidrelétrica como Tucuruí, em seu cálculo, emitiria mais que uma cidade como São Paulo.
O metano fabricado nas profundezas do lago artificial emanaria tanto de sua superfície quanto seria liberado na ejeção da água depois de passar pelas turbinas. Um processo de desgasificação, mais ou menos como o gás carbônico é liberado com a abertura de uma garrafa de Coca-Cola, na comparação de Fearnside em artigo de 2004 para a "Climatic Change".
Pinguelli Rosa, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), brasileiro que foi presidente da Eletrobrás (estatal geradora de hidreletricidade) no governo Lula, acha que não. Escrevendo no mesmo periódico, criticou a analogia a refrigerante de Fearnside e questionou as taxas de desgasificação usadas nos seus cálculos. Entre os argumentos estava que a bebida de guaraná, sendo translúcida, tornaria mais fácil observar que o CO2 se separa lentamente do refresco...
Não é de estranhar, em vista de tanto gás, que Danny Cullenward e David Victor, da Universidade Stanford (Estados Unidos), tenham criticado a controvérsia tupiniquim em editorial na própria "Climatic Change": "Infelizmente, embora as questões técnicas pareçam abordáveis, a disputa em curso não se mostra inclinada a semear os mecanismos normais de resolução científica".
A produção de hidreletricidade é importante demais, no Brasil, para permanecer sob tal suspeita. Se a emissão de grandes quantidades de gases-estufa se confirmar, um novo e portentoso flanco se abriria nas negociações internacionais sobre mudança climática. Num país só um pouco mais sério, entidades como a Academia Brasileira de Ciências já teriam montado um grupo de especialistas para dirimir a questão.

Marcelo Leite, é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

FSP, 12/11/2006, Mais, p. 9

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